27/05/2020

O paradigma do constitucionalismo multinível e o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos na efetivação dos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil

Vanilda Honória dos Santos

Doutoranda em Teoria e História do Direito (CCJ/UFSC)

vanydireito@gmail.com

 

 

 

 Adota-se nesta reflexão[1] a perspectiva do constitucionalismo multinível para empreender uma breve análise da adoção dos documentos do direito internacional sobre os direitos dos povos e comunidades tradicionais pelo ordenamento jurídico brasileiro e pela Administração Pública. O constitucionalismo multinível diz respeito à adoção de ferramentas e possibilidades no sistema jurídico nacional em diálogo com o sistema internacional, no caso brasileiro, sobretudo com o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos.

Nesse sentido, uma breve análise do que se denomina “proteção multinível dos direitos humanos” contribui para esclarecer o papel dos diálogos constitucionais e das cortes no que se refere aos direitos dos povos e comunidades tradicionais. A proteção multinível dos direitos humanos significa no contexto europeu, um sistema composto por governos nacionais e por instituições que existiam além do Estado-nação, isto é, em âmbito supranacional, a governança multinível.

Em relação à América Latina, considera-se que por um lado existe uma proteção nacional e uma internacional, o Sistema Interamericano de Proteçaão dos Direitos Humanos, representado pela Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), a denominada Pacto de San José da Costa Rica. Por outro lado, não se verifica a proteção no âmbito supranacional, demonstradas pelas experiências do Mercosul e da Comunidade Andina (URUEÑA, 2014, p. 19). Há, portanto, interação entre os sistemas jurídicos nacionais e o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos[2].

No que diz respeito à relação entre o direito interno brasileiro e o direito internacional, alguns fatores devem ser considerados. Em primeiro lugar, a previsão de que os Estados partes se comprometem a cumprir a decisão da corte em todos os casos em que forem parte, conforme disposto no art. 68 (11) da Convenção Americana de Direitos Humanos[3], encontra limites de aplicação no âmbito interno, mesmo que o controle de convencionalidade[4] seja obrigação jurídica internacional. O juiz é obrigado a fazer o controle de convencionalidade ao mesmo tempo que está submetido ao controle de constitucionalidade. Caso ocorram divergências entre as duas ordens, sua lealdade maior deverá ser à Constituição (URUEÑA, 2014, p. 246).

Alguns constitucionalistas defendem que “as autoridades internas levam tanto em conta normas internas constitucionais como a norma convencional na decisão sobre um caso de violação de direitos humanos ou fundamentais” (URUEÑA, 2014, p. 246). Entende-se aqui ser este o entendimento mais adequado no tocante à efetivação dos direitos quilombolas e o direito internacional.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) tem avançado quanto ao controle de convencionalidade, ao atribuir o efeito erga omnes às decisões que envolvem questões complexas, que exigem respostas contundentes e de amplo alcance. Esse entendimento apresenta uma problemática, impor a supremacia do direito internacional, correndo o risco de violar direitos fundamentais internos, desrespeitando o princípio do pluralismo jurídico[5], convívio entre ordens jurídicas que partem de experiências plurais (URUEÑA, 2014, p. 248-249).

Objetivando superar a possibilidade de hierarquização que apresenta o efeito erga omnes  destaca-se a perspectiva do diálogo entre as Cortes e o transconstitucionalismo (URUEÑA, 2014, p. 253). Essa proposta pode ser delineada da seguinte maneira: “As decisões da Corte devem estar mais sintonizadas com as realidades internas dos Estados se pretendem ser efetivamente respeitadas” (URUEÑA, 2014, p. 254). Tal visão está de acordo com proposição de Neves (2014, p. 287):

O transconstitucionalismo implica o reconhecimento de que as diversas ordens jurídicas entrelaçadas na solução de um problema-caso constitucional a saber, de direitos fundamentais ou humanos e de organização legítima do poder que lhes seja concomitantemente relevante, devem buscar formas transversais de articulação para a solução do problema, cada uma delas observando a outra, para compreender os seus próprios limites e possibilidades de contribuir para solucioná-lo.

 Além dos diálogos constitucionais entre Cortes, é igualmente importante o diálogo entre ordens jurídicas, o transconstitucionalismo, segundo o qual a responsabilidade não está restrita ao Poder Judiciário:

Os problemas transconstitucionais emergem e são enfrentados fora das instâncias jurídicas de natureza judiciária, desenvolvendo-se no plano jurídico da administração, do governo e do Legislativo, assim como no campo dos organismos internacionais e supranacionais não judiciais, dos atores privados transnacionais e, inclusive, especialmente na América Latina, no domínio normativo das comunidades ditas “tribais” (NEVES, 2014, p. 260).

 A proposta do transconstitucionalismo suscita questões sobre as decisões judiciais e administrativas que são inerentes à perspectiva do pluralismo jurídico e do direito democrático, considerando uma sociedade plural, como é a brasileira. Questões estas que não serão respondidas nesta pesquisa, mas que norteiam a reflexão jurídica sobre os direitos dos povos e comunidades tradicionais na atualidade. São elas:

De que forma age o juiz internacional? Como ele se relaciona com juízes internos? Como a realidade interna é considerada em julgamentos internacionais? Que maneiras alternativas podem ser encontradas para fazer valer uma decisão internacional? Quais as diferenças de poderes entre tribunais internacionais e internos? (GALINDO, 2014, p.253)

No Brasil, o controle de convencionalidade é realizado por meio do controle de constitucionalidade, sendo que as leis e atos normativos da Administração Pública são verificados conforme os tratados de direitos humanos que tenham sido constitucionalizados e por meio do controle de supralegalidade, no caso de tratados de direitos humanos que possuem caráter supralegal (GALINDO; MAUÉS, 2014, p. 306). Quanto à incorporação e adoção das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é preciso ir além da “função apenas de confirmar um entendimento já anteriormente estabelecido sobre um ponto jurídico específico” (GALINDO; MAUÉS, 2014, p. 311).

Essa abordagem é fundamental para tratar dos direitos dos povos tradicionais, sobretudo indígenas e quilombolas no Brasil, considerando que não bastam as garantias do direito internacional, da Convenção 169 da OIT e da CF/88, para o seu cumprimento de forma efetiva. São necessárias políticas públicas que contemplem instrumentos para efetivação dos direitos, envolvendo sobremaneira a atuação da Administração Pública em suas esferas federal, estadual e municipal. E isto, certamente é ir além da formalidade jurídica para implementar o direito material, que no caso dos direitos quilombolas e indígenas, trata-se também de reparação histórica.

 No tocante à jurisprudência da Corte IDH, o direito brasileiro ainda tem muito a avançar, ressalvadas todas as questões que suscita a aplicação do direito internacional dos povos e comunidades tradicionais no ordenamento jurídico interno. As referências às decisões da Corte são, em grande medida, pouco significativas para causar impacto no direito interno, uma vez que a menção a elas tem como função unicamente a ilustração ou esclarecimento acerca de algum ponto controverso (GALINDO; MAUÉS, 2014, p. 310). Dito de outro modo, não são consideradas possuidoras de autoridade própria, portanto, não cumprem a função para a qual foram elaboradas.

Cabe destacar que os casos emblemáticos dizem respeito aos direitos dos povos indígenas, uma vez que só recentemente a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) manifestou preocupação com o caso do desrespeito aos direitos dos povos quilombolas, em decorrência de frequentes denúncias e o longo e moroso julgamento da ADI n. 3.239 acerca da constitucionalidade do Decreto n. 4.887/2003, que regulamenta a efetivação do direito constitucional ao território, e da falta de efetividade na aplicação das políticas públicas direcionadas aos povos quilombolas[6]. Em fevereiro de 2018, a CIDH e o Escritório Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) expressaram preocupação quanto a possíveis restrições aos direitos dos povos quilombolas[7].

Durante audiência[8] realizada na CIDH, em 24 de maio de 2017 em Buenos Aires, para tratar dos direitos dos povos quilombolas, a posição do governo brasileiro destacou as certificações já efetuadas pela Fundação Cultural Palmares, o Programa Brasil Quilombola e a outras políticas sociais, como o Programa Minha Casa Minha Vida. De igual modo, ressaltou a política de permanência estudantil ampliada para os estudantes quilombolas e a suposta efetividade da participação desses atores sociais no controle da política pública[9]. Nota-se que pouca importância foi dada à questão do direito ao território, ao orçamento destinado à política[10] e à morosidade do processo de demarcação e titulação dos territórios. Este último fator configura-se como motor de conflitos e violência no território nacional.

Será publicada posteriormente a análise de alguns casos importantes sobre direitos territoriais de povos tradicionais indígenas e algumas decisões que tramitaram/am na CIDH e na Corte IDH, uma vez que as violações reconhecidas nas sentenças estabelecem estreita relação com a experiência brasileira em relação aos povos indígenas e aos quilombolas.  

O direito internacional dos direitos humanos e o direito interno dos povos e comunidades tradicionais, expressos pela Convenção 169 da OIT, a Convenção Americana de Direitos Humanos, a CF/88 e o Estatuto da Igualdade Racial permitem compreender o reconhecimento dos direitos territoriais quilombolas como categoria constitucional, e para que se tornem efetivos faz-se necessário articular tais instrumentos numa perspectiva multinível, isto é, adotando interpretações e práticas do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, notadamente os casos e jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos nas ações da Administração Pública e a ampla participação das comunidades interessadas.

 

REFERÊNCIAS

CHAGAS, Afonso Maria das. Direitos Territoriais: identidades, pertencimentos e reconhecimentos. Revista Acesso à Justiça e direito nas Américas. Brasília, vol. 1, n. 001, 2017.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12/02/2018.

BRASIL.  Lei Federal 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. (Estatuto da Igualdade Racial) Acesso em: 27 mai. 2020.

GALINDO, George Rodrigo Bandeira. O valor da jurisprudência da Corte Intramericana de Direitos Humanos. In George Rodrigo Bandeira Galindo, René Urueña, Ainda Torres Pérez (Coordenadores).  Proteção Multinível dos Direitos Humanos. Manual. Barcelona: Rede Direitos Humanos e Educação Superior, 2014, p. 235-258.

GALINDO, George Rodrigo Bandeira; MAUÉS, Antonio. O caso brasileiro. In George Rodrigo Bandeira Galindo, René Urueña, Ainda Torres Pérez (Coordenadores).  Proteção Multinível dos Direitos Humanos. Manual. Barcelona: Rede Direitos Humanos e Educação Superior, 2014, p. 289-312.

HESPANHA, António Manuel. Estadualismo, Pluralismo e Neorrepublicanismo. Perplexidades dos nossos dias. In: WOLKMER.A.C.; VERAS NETO, F.Q.; LIXA, I. M. (Org.). Pluralismo Jurídico. Os novos caminhos da contemporaneidade. 2ª ed.. São Paulo: Editora Saraiva, 2013a, p.139-172.

HESPANHA, António Manuel. Pluralismo Jurídico e Direito Democrático. São Paulo: Annablume, 2013b.

JUNIOR, Valdir Ferreira de Oliveira. Constitucionalismo Multinível – contribuição para compreensão da interconstitucionalidade no Estado Constitucional. Revista Eletrônica do Direito do Estado (REDE). Número 10, abril/maio/junho de 2007. Salvador-Bahia, p. 1-15.

NEVES, Marcelo. O diálogo entre as cortes supremas e a corte interamericana de direitos humanos ao Transconstitucionalismo na América Latina. In George Rodrigo Bandeira Galindo, René Urueña, Ainda Torres Pérez (Coordenadores).  Proteção Multinível dos Direitos Humanos. Manual. Barcelona: Rede Direitos Humanos e Educação Superior, 2014, p. 259-288.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Convenção Americana de Direitos Humanos (1969). Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 27 mai. 2020.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Convenção 169 sobre os Povos Indígenas e Tribais (1989). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm. Acesso em: 20 out. 2018.

SANTOS, Vanilda Honória dos. Os direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais: Quilombos no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – Minas Gerais. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito). Faculdade de Direito Prof. Jacy de Assis da Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2018, 76.

SANTOS, Vanilda Honória dos. As Políticas Públicas Antidiscriminatórias e a audiência do TCU no Programa Brasil Quilombola. Gestão Universitária, 15/11/2019. Disponível em: http://gestaouniversitaria.com.br/artigos/as-politicas-publicas-antidiscriminatorias-e-a-auditoria-do-tcu-no-programa-brasil-quilombola. Acesso em: 26 mai. 2020

URUEÑA, René. Proteção Multinível dos direitos humanos na América Latina? Oportunidades, desafios e riscos. In GALINDO, George Rodrigo; URUEÑA, René; PÉREZ, Aida Torres (Coordenadores). Proteção Multinível dos Direitos Humanos: Manual. Dhs. Rede de Direitos Humanos e Educação Superior. Barcelona: Universidade Pompeu Fabra, 2014, p. 15-48.

WOLKMER, A. C; SOUZA FILHO, C. F. M; BLANCO TARREGA, M. C. V. Os direitos territoriais quilombolas: além do marco temporal. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2016.

WOLKMER, A. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3ª ed., São Paulo, Brasil: Alfa-Ômega, 2001.

WOLKMER, A. Pluralismo Jurídico: os novos caminhos da contemporaneidade. In: WOLKMER, A.C.; VERAS NETO, F.Q.; LIXA, I. M. (Org.). Pluralismo Jurídico. Os novos caminhos da contemporaneidade. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p.139-172.

 

 

 

 

 

[1] O presente texto é parte da pesquisa que originou o Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Direito “Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais: Quilombos no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – Minas Gerais” na Faculdade de Direito Prof. Jacy de Assis da Universidade Federal de Uberlândia – Minas Gerais, defendido e publicado em 2018. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/24012. Acesso em: 25 mai. 2020.

[2] Veja-se também: JÚNIOR (2007).

[3] 1. Los Estados Partes em La Convención se comprometen a cumplir La decisión de la Corte en todo caso em que sean partes.

[4] Submeter atos normativos internos e decisões judiciais à conformidade com os Tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

[5] Sobre pluralismo jurídico ver também: WOLKMER (2001, 2013, 2016), HESPANHA (2013a, 2013b), CHAGAS (2017).

[6] O julgamento ocorreu em 08 de fevereiro de 2018: Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a validade do Decreto 4.887/2003, garantindo, com isso, a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=369187. Acesso em: 26 mai. 2020.

[7] Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2018/022.asp. Acesso em 02 abr. 2018.

[8] Participaram da Audiência Cambiosen políticas públicas y leyes sobre pueblos indígenas y quilombolas en Brasil: Estado de Brasil, Fundación para elDebidoProceso Legal (DPLF), Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIC), Associação Terra Indígena Xingu (ATIX), Associação Wyty-Catë dos Povos Timbira do Maranhão e Tocantins (Wyty-Catë), Conselho Indígena de Roraima (CIR), Conselho das Aldeias Wajãpi (Apina), Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Organização dos Professores Indígenas do Acre (Opiac), Organização Geral Mayuruna (OGM), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC), Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras – Valedo Ribeira (EAACONE), Hutukara Associação Yanomami (HAY), Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), Instituto Socioambiental (ISA), Plataforma de Direitos Humanos

[10] Acerca dessa questão, veja-se: SANTOS (2019).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                                               

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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