15/11/2019

As Políticas Públicas Antidiscriminatórias e a auditoria do TCU no Programa Brasil Quilombola

As Políticas Públicas Antidiscriminatórias e a auditoria do TCU no Programa Brasil Quilombola

 

Vanilda Honória dos Santos[1]

Doutoranda em Direito (UFSC) e Mestre em Filosofia (UFU)

vanydireito@gmail.com

 

A abordagem do Direito Antidiscriminatório, contemplando as interseções e multidimensionalidades ainda é um desafio no campo jurídico brasileiro, considerando que a ampla maioria dos profissionais do direito trabalham apenas com categorias referente à noção de discriminação direta. Em outras jurisdições houve um grande avanço na hermenêutica jurídica em relação às formas de discriminação (MOREIRA, 2017).

Ainda que de modo suscinto, pretende-se aqui estabelecer uma relação entre a discriminação institucional e as políticas públicas voltadas para a concretização dos direitos da população quilombola, considerando a gestão exercida pelas instituições responsáveis e os princípios da efetividade e eficácia. Esta relação se justifica uma vez que o fenômeno da discriminação pode envolver agentes públicos ou privados, práticas individuais ou coletivas, mas, sobretudo, ser produto do funcionamento de normas dirigidas diretamente a certos grupos, podendo ser consequência da relação de várias instituições estatais que reproduzem formas de exclusão (MOREIRA, 2017, p.194).

As políticas públicas são os instrumentos que objetivam dar concretude aos direitos e garantias constitucionais. No que concerne às políticas públicas para a população quilombola, faz-se necessário pensar a partir do local para nacional, com ênfase no espaço local. Isto porque cada lugar tem suas especificidades, e no caso dos quilombolas, a pluralidade de situações é evidente. Pensar em políticas públicas antidiscriminatórias para os quilombolas  no Brasil implica considerar as condições específicas de cada comunidade, valendo-se do princípio coletivo (COSTA NETO, 2018).

Contudo, nem todas as políticas, cuja fundamentação alegam estar pautadas no princípio da equidade, consideram de fato as especificidades locais. As pautas locais são baseadas em pleitos nacionais que não realizam na prática, uma vez que as bandeiras nas defesas dos direitos são na verdade nacionais, as comunidades acabam perdidas nesse espaço. As políticas públicas de igualdade racial direcionadas à população quilombola acabam por serem políticas universalistas e multiculturalistas, não atendendo às reais necessidades desse segmento, e não cumprindo com os objetivos de políticas de ações afirmativas ou específicas (COSTA NETO, 2018).

Ademais, para que as políticas públicas cumpram com seus objetivos é importante que o controle social seja exercido pelas comunidades. O controle social se dá a partir do acompanhamento da gestão pública, incluindo as políticas públicas, a partir de princípios: economicidade, eficiência, eficácia e efetividade (TCU, 2010). Tais princípios orientam as auditorias operacionais do Tribunal de Contas da União (TCU), mas mesmo sem o domínio do conhecimento técnico, cidadãos e cidadãs se reportam aos significados desses princípios para avaliarem as políticas públicas. Sobretudo, o princípio da efetividade, que diz respeito ao alcance dos resultados pretendidos, a médio e longo prazo, isto é, a relação entre os resultados de uma intervenção ou programa em relação aos efeitos sobre a população alvo (impactos observados) e os objetivos pretendidos (impactos esperados) (TCU, 2010, p. 12).

Para uma análise da situação do Programa Brasil Quilombola (PQB), instituído pelo Decreto 6.261/2007, a luz do tema desta pesquisa, os direitos territoriais quilombolas, e das condições das comunidades quilombolas, serão apresentados aspectos da auditoria realizada pelo TCU em 2014. A auditoria foi solicitada pelo Congresso Nacional e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados, após provocação do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) durante audiência pública da CDHM sobre a situação do PQB.

O principal argumento para o início do processo que levou à auditoria é de que o programa não possuía relatório de monitoramento e avaliação desde sua criação. Ademais, a situação fática das comunidades relatadas por denúncias de seus membros revelavam haver problemas quanto à efetivação da política pública. As denúncias vão desde a falta de infrainstrutura, desapossamentos até a violência e coação a lideranças quilombolas. Cabe ressaltar que durante a audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre os povos quilombolas no Brasil, realizada em 24 de maio de 2017 na cidade de Buenos Aires/Argentina, a posição do governo brasileiro foi de enfatizar, entre outras ações, as certificações emitidas pela Fundação Cultural Palmares e o PBQ. Destacou ainda o incentivo à participação dos quilombolas no controle da política pública.

O objetivo do PBQ é promover a melhoria das condições de vida das comunidades quilombolas e responder às seguintes questões: Como o orçamento do Programa Brasil Quilombola vem sendo executado pelos órgãos federais? Como técnicos da então Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) realizavam a articulação com os demais atores envolvidos no PBQ e coordenam sua implantação? Para tanto, foi estruturado nos seguintes eixos: acesso à terra, infrainstrutura e qualidade de vida, inclusão produtiva e desenvolvimento e direitos e cidadania. Diante disso, a auditoria objetivou analisar o cumprimento do objetivo segundo critérios de economicidade, a eficiência, a eficácia e a efetividade.

O método utilizado pela auditoria se pautou em entrevistas com gestores, técnicos da SEPPIR, Ministério da Educação (MEC), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), prefeituras, especialistas em temas relacionados à auditoria e líderes comunitários. Também foram feitas visitas às comunidades e enviados questionários para prefeituras e líderes comunitários.

O relatório da auditoria emitido pelo TCU ressalta a importância da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que reconhece direitos que alcançaram as comunidades quilombolas e estabeleceu responsabilidades aos governos. Dentre os resultados da auditoria, destacam-se os aspectos que dizem respeito à execução financeira-orçamentária da ação “Reconhecimento, Delimitação e indenização de Territórios Quilombolas”.

Foi demonstrado que há excessivo contingenciamento de gastos, limitando os valores de execução orçamentária e financeira. Nos termos do relatório o “expressivo contingenciamento fatalmente refletirá na política de apoio às comunidades remanescentes de quilombo” (TCU, 2014, p. 13). Desse modo, o contingenciamento de parte da dotação orçamentária afeta a execução das ações, e, por conseguinte, a implantação das políticas de apoio aos quilombolas. O Contingenciamento é geral, mas evidente que ele afeta mais as pastas que trabalham com políticas públicas, porque essas pastas ou secretarias já recebem uma dotação orçamentária limitada em relação a outras secretarias ou ministérios. Dito de outro modo, esse cenário pode ser considerado discriminatório em relação aos direitos dos cidadãos quilombolas no Brasil.

Outro resultado importante para abordar as políticas antidiscriminatórias é a constatação de que há pouco comprometimento das administrações públicas municipais com a efetivação das políticas, e de que pelo menos 50% dos líderes comunitários e membros das comunidades entrevistados informaram não ter conhecimento de como acessar a política. Verificam-se os limites para a efetivação da política pública, que nem sempre contempla o pluralismo, as especificidades locais e uma governança que promova a ampla participação social. Existe uma deficiência da coordenação da política transversal quilombola – não foi detectado alinhamento de estratégias e objetivos entre as organizações envolvidos, nem mecanismos de articulação institucionalizados que permitam uma governança efetiva (TCU, 2014 p. 18).

Por fim, a conclusão da autoria foi publicada no acórdão do TCU, em 15 de outubro de 2014. A conclusão contribui com a reflexão aqui proposta, uma vez que tornar os direitos quilombolas efetivos, sobretudo os territoriais, pressupõe a articulação de políticas públicas que de fato alterem a realidade de discriminação à qual estão sujeitos os povos quilombolas e o reconhecimento da necessidade de reparação pelos danos causados pela negação de seus direitos.

Diante do exposto, é possível estabelecer como os direitos dos povos e comunidades tradicionais, expressos no direito internacional dos direitos humanos, sobretudo na Convenção 169 da OIT e no art. 68 do ADCT da  Constituição brasileira se coadunam com o direito antidiscriminatório. Trata-se de para além de refletir sobre a efetividade de políticas públicas com foto unicamente no papel do Estado, mas de ressaltar a importância das comunidades na construção e na materialização das políticas.

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Programa Brasil Quilombola. Decreto 6.261/2007. Disponível em: http://www.seppir.gov.br/portal-antigo/comunidades-tradicionais/programa-brasilquilombola. Acesso em: 10/10/2018.

 

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH/OEA). Audiência realizada em 24 de maio de 2017. Buenos Aires. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/audiencias/TopicsList.aspx?Lang=es&Topic=17. Assistir em: https://www.youtube.com/watch?v=12x5y9kL3VY. Acesso em: 04/10/2018.

 

COSTA NETO, Antonio Gomes da. Gestão e Políticas Públicas. Informação obtida por meio de documento eletrônico em agosto de 2018.

 

Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Audiência

 

MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação? Belo Horizonte (MG): Letramento: Casado Direito: Justificando, 2017.

 

SANTOS, Vanilda Honória dos. Os direitos dos povos e comunidades tradicionais: quilombos no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – Minas Gerais. Monografia (Graduação em Direito). Faculdade de Direito Prof. Jacy de Assis da Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia/MG, 2018, 72p.

 

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Manual de auditoria operacional. 3ª ed. Brasília:TCU, Secretaria de Fiscalização e Avaliação de Programas de Governo (Seprog), 2010.

 

_______. Relatório de auditoria operacional Programa Brasil Quilombola - PBQ. Brasília: TCU, 2014.

 

 

[1] O presente texto é parte da pesquisa desenvolvida e publicada como Monografia de conclusão do curso de Graduação em Direito, defendida em dezembro de 2018 na Universidade Federal de Uberlândia, cujo título é “Os direitos dos povos e comunidades tradicionais: quilombos no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – Minas Gerais”. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/24012. Acesso em: 15/11/2019.

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