A César o que é de César
Heitor Baltazar¹ - Publicado em 24/02/2025 Este texto estava rascunhado desde o dia 10 de dezembro do ano passado. Demorei mais de dois meses para soltá-lo por diversos motivos: minha recém-nascida exige toda minha atenção; apesar de curto, procurei rematá-lo ao máximo para evitar, digamos, um desaguisado qualquer com 'gente grande'; e, mais importante, quem seria eu para contestar conselho profissional? Resolvi publicar mesmo assim porque me lembrei que sou ressabiado com esse assunto faz muito tempo - pelo menos desde 2017, quando publiquei, na Revista Gestão Universitária, um outro texto sobre mais ou menos o mesmo assunto: entidade de fiscalização de profissão regulamentada querendo "meter o bedelho" em assuntos estritamente acadêmicos. Torço para que este mini-artigo sensibilize os conselhos profissionais a reverem ou suspenderem ações nesse sentido e exorte as IES a se posicionarem de forma incisiva e enfática contra esse tipo de... 'conflito' com a autonomia universitária. ______________ Dizem que “aprender com os erros dos outros” é uma grande virtude. Infelizmente, vemos cada vez menos desse tipo de virtude. Causou espanto a publicação, no Diário Oficial da União de 9 de dezembro de 2024, de uma resolução do Conselho Federal de Fonoaudiologia que estabelece, para a concessão de título profissional de especialista, “modelos de certificado e do histórico escolar emitidos por cursos de especialização”. Mais uma vez, temos um órgão de fiscalização de profissão definindo regras e normas para Instituições de Ensino Superior e outras organizações ministrantes de cursos de pós-graduação. Poderíamos citar uma mão-cheia de pareceres do Conselho Nacional de Educação reforçando o absurdo que é a ingerência desses órgãos na autonomia das IES (especialmente o Parecer CES/CNE nº 209/2020, que, embora seja extenso e não tenha sido homologado, merece leitura atenciosa), mas achamos por bem sermos diretos e destacarmos o art. 8º da Resolução CES/CNE nº 1, de 6 de abril de 2018, que regulamenta os cursos de especialização, ministrados em nível de pós-graduação lato sensu: Art. 8º Os certificados de conclusão de cursos de especialização devem ser acompanhados dos respectivos históricos escolares, nos quais devem constar, obrigatória e explicitamente: I - ato legal de credenciamento da instituição, nos termos do artigo 2º desta Resolução; II - identificação do curso, período de realização, duração total, especificação da carga horária de cada atividade acadêmica; III - elenco do corpo docente que efetivamente ministrou o curso, com sua respectiva titulação. § 1º Os certificados de conclusão de curso de especialização devem ser obrigatoriamente registrados pelas instituições devidamente credenciadas e que efetivamente ministraram o curso. § 2º Os certificados dos cursos ofertados por meio de convênio ou parceria entre instituições credenciadas serão registrados por ambas, com referência ao instrumento por elas celebrado. § 3º Os certificados previstos neste artigo, observados os dispositivos desta Resolução, terão validade nacional. § 4º Os certificados obtidos em cursos de especialização não equivalem a certificados de especialidade. [...] Art. 15. Excluem-se desta Resolução: I - os programas de residência médica ou congêneres, em qualquer área profissional da saúde; [...] No que se refere à resolução do CFFa, para além dos já assustadores arts. 2º (informações do certificado) e 3º (informações do histórico escolar), o disparate maior está no art. 4º, que reproduzimos abaixo: Art. 4º Os cursos que optaram por seguir os critérios dos cursos de especialização para pontuação máxima para concessão ou renovação de Título de Especialista pelo CFFa, dispostos no Anexo III da Resolução CFFa nº 721, de 14 outubro de 2023, devem ajustar seus certificados e históricos em conformidade com a normativa. Parágrafo único. Os cursos que optarem por seguir os critérios do Anexo III deverão seguir todas as disposições que constam nesta Resolução. As IES precisam consignar nos certificados e históricos escolares dos cursos de especialização, obrigatoriamente, apenas as informações definidas nos incisos I, II e III da Resolução CES/CNE nº 1/2018, além, é claro, do Selo Nacional (na forma do art. 27 da Lei nº 5.700, de 1º de setembro de 1971) e das informações da Lei nº 7.088, de 23 de março de 1983 (nacionalidade, naturalidade, data de nascimento e, no caso de maiores de 16 anos, número da cédula de identidade, cédula esta que, hoje, tem a designação de Carteira de Identidade Nacional - CIN). A própria instituição, a seu exclusivo critério, pode decidir incluir informações adicionais, complementares às definidas pelas normas citadas, especialmente considerando a recomendação nº 8 do anexo da Portaria DAU/MEC nº 33, de 2 de agosto de 1978, que explicitamente diz que “o modelo e o texto do diploma de pós-graduação será de livre escolha das Universidades”. De resto, não há nada que obrigue as IES a expedir esses documentos de uma determinada forma, ainda mais seguindo “determinações” de órgãos de fiscalização de profissão - que deveriam, na forma da legislação em vigor, se limitar a isso. Documento acadêmico é de responsabilidade da Academia. Do ensino, do registro desse ensino e dos documentos comprobatórios desse ensino, quem cuida é a IES; quem regula, avalia e supervisiona são os Sistemas Federal, Estaduais e Distrital de Educação, através do MEC, das respectivas Secretarias de Educação e dos órgãos vinculados, principalmente o CNE. Não há que se falar em conselho profissional ditando regras para IES. É entendimento pacífico de que especialização e especialidade não se confundem, como diversos pareceres do CNE e a resolução da especialização mencionam, mas talvez valha a pena explicitar mais uma vez. Especialização é curso de pós-graduação lato sensu, ministrado por instituição credenciada, na forma da Resolução CES/CNE nº 1/2018, com carga horária mínima de 360 horas – a Resolução, aliás, nem cita a concessão de “título” ou “grau” ao egresso desse curso; especialidade, por outro lado, é uma área de conhecimento, prioritariamente na área da saúde, que dá direito a título profissional de especialista, concedido por associação, sociedade ou conselho profissional. Condicionar a obtenção da primeira à concessão da segunda pode ser prerrogativa e objeto de deliberação dos órgãos de fiscalização, se assim desejarem, mas é importante dizer e repetir quantas vezes forem necessárias: Conselho profissional não legisla para Instituição de Ensino Superior nem pode estabelecer normas para expedição de documentos acadêmicos. Órgão de fiscalização se preocupa com as especialidades, não com a especialização. Este seria um momento para as associações de instituições, sindicatos, federações e até mesmo o próprio Ministério da Educação, se manifestarem - judicialmente, se preciso - contra essa e quaisquer outras normas, sejam de órgãos de fiscalização de exercício de profissões liberais ou de outras entidades, que extrapolem ou usurpem atribuições exclusivas das Instituições de Ensino Superior ou do MEC. Credenciadas, temos 2.580 IES, sem contarmos hospitais, centros de pesquisa e instituições do mundo do trabalho. É um grupo numeroso, forte, robusto e focado no progresso do país através da Educação. Não deveriam se sujeitar a desmandos de entidades que, por mais que possam compartilhar desse mesmo interesse, possuem atribuições distintas e que não se confundem de nenhuma maneira – ou, como dizem popularmente, “cada um no seu quadrado”. Infelizmente, é muito mais provável que vejamos alunos acionando as IES na Justiça e magistrados cobrando multas diárias até a expedição do certificado com base em norma irregular do que alguma manifestação dos órgãos que, em tese, deveriam se unir e defender as instituições. Os departamentos jurídicos das IES precisam se preparar.
RESOLUÇÃO Nº 749, DE 25 OUTUBRO DE 2024. CONSELHO FEDERAL DE FONOAUDIOLOGIA. Dispõe sobre os modelos de certificado e do histórico escolar emitidos por cursos de especialização, com vistas à pontuação para obtenção e renovação de Título de Especialista, no âmbito do Conselho Federal de Fonoaudiologia. ¹ Heitor Baltazar é pós-graduado na área de Administração Acadêmica e Universitária e Gestão de Processos. A Legislação e Jurisprudência citadas neste SIC foram obtidas em Legisle - Sistema de Informação em Administração de Ensino
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