04/10/2021

Uma escola preguiçosa, ou sobre pensar práticas de contra-governamento desde dentro

Jonathan Dalla Vechia Bugs

Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria

E-mail: jonathandbugs@hotmail.com


É preciso encontrar essa dupla condição: interromper a valorização, sair dos fluxos/consumo/produção e, nessa interrupção ou nessa saída, reencontrar a igualdade – condição da organização política. Para que uma subjetivação possa emergir, nós não temos mais necessidade de “tempo”, mas de um tempo de ruptura e de bloqueio da “mobilização geral”, fazendo emergir um tempo de suspensão de dispositivos de exploração e de dominação – um “tempo preguiçoso”.

 

- Maurizio Lazzarato, 2017, p. 231.

 

 

Se é verdadeiro o que Rubem Alves nos diz quando escreve que todo pensamento sai do ventre como o fio sai da teia e que todo escrito teórico é um acessório de biografia, então me permito ensaiar livremente algumas palavras sobre o que tem me dado a pensar meu encontro com o texto de Maurizio Lazzarato (O Governo do Homem Endividado, 2017). Meu porvir, até chegar aqui, encontrou sua possibilidade na leitura primeira e desinteressada do Em defesa da Escola: uma questão pública, 2017. É de lá que venho pensando e é a partir dele, e do incentivo de outros que por ele antes se deixaram afetar, que hoje me encontro com Hannah Arendt, Foucault, Marina Garcés, e agora com Lazzarato. As leituras que tenho feito descobrem na instituição escola uma potência: a guardiã dos possíveis novos modos de ser e estar no mundo e um forte na guerra contra a destruição do mundo comum – do reino da pluralidade onde os humanos podem aparecer como iguais.

Em uma aula na pós-graduação fiz uma atividade que me pedia para olhar algumas imagens e escrever a partir da estética e ética das sensações, relacionando com o que estávamos discutindo na disciplina – o que eu sentia? O que elas me diziam? O que elas davam a pensar? Eu me sentei, senti, pensei e escrevi sobre. Daquela escrita retomo a introdução; chamei meu texto de Uma imagem:

 

Mas antes: mais do que uma. Elas me olham. Eu olho para elas do conforto aqui da casa, desta que não é minha mas que ocupo com meu corpo e minhas coisas, sentado em frente ao meu computador em uma tarde absurdamente quente. Algumas me contam de faces deste mundo que chamais vi(vi). Algumas delas me dizem de sabores e de odores que jamais senti. Elas me fazem recordar da minha velha caixa de lápis de cor. Aquela que trazia em seu interior um lápis branco e sem utilidade no papel, igualmente branco, e que foi deixado dentro do estojo até que se perdeu em uma das inúmeras vezes em que esparramei pelo chão aquele colorido todo. Algumas daquelas imagens conversam comigo com a formalidade de quem ainda não tem grande intimidade mas divide um mesmo sentimento, que ainda é indizível. Talvez me digam da possibilidade de um futuro interditado. Outras fazem ruir a representação de um mundo ordenado. Ajustado. Explicado. Pensado. Um mundo em que as mazelas existem pela culpa própria dos que a sofrem no corpo e na alma. Elas dizem, a quem as deixa falar, dos desajustes deste mundo. Maldito lápis branco, desajustado, ocupante incômodo de uma espaço naquele velho e pequeno estojo. Talvez estas imagens operem como um martelo sobre aquela representação de mundo, Elas interpelam e ressoam como uma voz contra o vento, como uma denúncia que não quer ser ouvida mas é feita e por isso incomoda e desacomoda – ela exige ser olhada, descoberta e por isso ameaça destruir a tranquilidade da ordem das coisas. E se o lápis branco pudesse existir em um papel diferente? E se eu pudesse pintar a neve em um papel pardo? E se, talvez, o lápis branco não estivesse ali para servir ao papel branco? E se? ... “E se” que me fala das inúmeras possibilidades de ser (do que for que pensemos) que nos escapam. Como nos escapam? Aaaarrrrrg! Quantas perguntas. Quantos problemas. Parem de me pedir o que eu não sei!! E se eu só fechar os olhos? Elas ainda estarão ali! E se eu fechar o arquivo e desligar o computador? – Elas ainda estarão aí! Então: e se eu me importar? E se nós nos importarmos? Se dermos importância a isso que elas nos dizem? E se nós pudéssemos olhar para isto que fizeram e fazemos do mundo e ..

 

Na ocasião dessa atividade, embora tenha tecido um comentário geral, escolhi uma imagem em particular. Uma imagem que focava um menino branco debruçado sobre uma mesa, apoiando com o braço e a mão o próprio queijo. Ele olha para o lado como quem está tomado pelo tédio. Como quem não está atento. Como quem não dá importância ao que acontece ao seu entorno. O que está ao seu entorno? Ao fundo da imagem – em desfoco – uma mulher segurando um giz sobre a lousa já rabiscada, há mais cadeiras. Isso me diz de uma sala de aula onde a professora rabisca e de um aluno que não se deixa atingir pelos códigos rabiscados na lousa – está de costas para ela. Uma situação típica de sala de aula. Sim. A imagem me diz sobre uma sala de aula: alguém que está para ensinar, alguém que está para aprender. Um espaço e dois mundos que hoje parecem não coexistirem na mesma galáxia.

Essa imagem me diz de um problema quase fatalista: como despertar o interesse, ou ainda: como ensinar quem não quer aprender? Como falar a quem não quer ouvir? Ou, estendendo a discussão ao plano mais geral do problema político contemporâneo: como discutir coisas públicas e de bem comum com quem não quer se implicar? Com quem se resigna em seu próprio umbigo, que vai muito bem?

Penso que no texto de Lazzarato (2017) tenho encontrado um caminho de compreensão desse processo de desinteresse, de não implicação. A descrição e analítica que o autor nos oferece toma minha atenção para um deslocamento nas práticas de subjetivação: das instituições de confinamento na sociedade disciplinar para os espaços e tempos abertos da vida na sociedade de controle. Não pretendo transpor aqui sua descrição e análise, apenas recorto algumas de suas conclusões e pontos importantes para pensar a escola como instituição preguiçosa, que pode barrar diante de seus muros e seus tempos esse governamento totalitarista do modo neoliberal de gerir a crise. Chamo de governamento pois tenho presente a modificação operada por Lazzarato no conceito de governamentalidade de Foucault, diante da crise: “A governamentalidade não se limita a incitar, solicitar e favorecer, mas ela proíbe, normatiza, dirige, comanda, normaliza e ordena” (LAZZARATO, 2017, p. 157). Chamo de totalitária porque além de uma “governamentalidade autoritária” ela é invasiva, não se limita aos espaços públicos e comuns, ela adentra o tempo livre e o íntimo de cada um por meio das mídias, linguagens, desejos produzidos, etc.; ela se fez totalitária, sanguinária quando aniquila, por meio do Estado, outras possibilidades de “reembolso”, ou de ser e estar no mundo – quando deixa morrer..

Lazzarato nos diz que é um governamento pela dívida. Logo no segundo capítulo o autor inicia a desconstrução da ideia de liberdade pregada pelo liberalismo, que vê na moeda, na troca e no mercado a liberdade do servo em relação ao seu senhor (no sistema feudal) ao qual ele era sujeito em uma relação pessoal e direta de obrigação/benefícios para a manutenção da vida. Lazzarato (2017, p. 64) discorda da tese propagada pelo liberalismo político no capitalismo financeiro afirmando que a dívida é outro modo de servidão. Por meio do anonimato e transferibilidade, garantidos pela moeda, a dívida é difundida e multiplicada (ele demonstra como isso se dá no caso da dívida adquirida pelos universitários norte-americanos) sujeitando os indivíduos a nada mais do que pagá-la.

A que ponto chegamos: o humano endividado. Negri e Hardt (2014, p.21) nos dizem que o neoliberalismo e sua crise não só mudaram, com seu triunfo, a economia e a política como foram capazes de produzir novas subjetividades, uma delas é o sujeito endividado. Nas palavras de Negri e Hardt:

 

Você é controlado pela dívida. Ela disciplina seu consumo, impondo-lhe austeridade e muitas vezes o submetendo a estratégias de sobrevivência. Mas, além disso, a dívida dita seus ritmos e escolhas de trabalho. Se você terminar um curso superior endividado, deverá aceitar o primeiro emprego oferecido a fim de honrar sua dívida. Se comprar um apartamento hipotecado, não deverá perder seu emprego, tirar férias, nem pensar em deixar o seu emprego. O efeito da dívida, com o da ética do trabalho, é força-lo a trabalhar arduamente. Enquanto a ética do trabalho nasce no interior do sujeito, a dívida começa como uma coação externa, mas logo segue seu caminho tortuoso rumo ao interior. A dívida exerce um poder moral cujas armas principais são a responsabilidade e a culpa, que podem rapidamente se transformar em objeto de obsessão. Você é responsável por suas dívidas e se culpa pelas dificuldades que elas criam em sua vida. O endividado é uma consciência infeliz, que faz da culpa uma forma de vida. Ao poucos os prazeres da atividade e da criação se convertem num pesadelo para aqueles que não possuem meios de aproveitar suas vidas. A vida foi vendida ao inimigo. (2017, p. 22-23).

 

Em uma sociedade governada pela dívida, cada dia vivido é um dia a ser pago. A partir da analítica de Lazzarato, e com ele, podemos concluir que a nossa sociedade não é mais a do confinamento, mas a do endividado. Trata-se, conforme a Leitura que Lazzarato faz de Nietzsche, Deleuze e Guattari, de uma dívida infinita e impagável monetariamente cuja única forma de nos livrarmos dela é através de um reembolso político (2017, p. 80). Isso porque o sucesso do governo da dívida vem da eficiência e eficácia com que o Estado social, moldado pela governamentalidade ordoliberal, naturaliza e molda a sociedade a se conformar com a “acumulação capitalista”, conforme Lazzarato (2017, p. 100).

Se o reembolso é político e passa pela não conformação, o que podemos nós?

Antes de tudo, tentar compreender o que é o político. Se a não conformação com o modo como nos governam tem ligação com o político, não estamos falando simplesmente das instancias que o Estado dispõe para a participação da população. Assim, gostaria de dar notícia sobre a forma como penso que caberia pensar o político em acordo com a analítica empreendida por Lazzarato, cujo apoio teórico encontro em Hannah Arendt e Marina Garcés, tento sintetizar aqui para seguir minha reflexão.

Ao contrário do que se solidificou dentro da tradição da filosofia política, política não é o reino da manutenção da conservação individual, da gerencia por meio de técnicas e da pragmática econômicas – isso nos trouxe ao governo pela dívida. O reino do político é o reino do comum, da pluralidade de singularidades que se reúnem em torno de algo comum entre os humanos: a capacidade de discursar, de discutir, de pensar e agir coletivamente sobre algo. O reembolso é político nesse segundo sentido, quando reconhecermos nossa interdependência e nos coimplicamos na situação problema e movimentamo-nos na direção da não conformação, da desnaturalização, da não servidão, da não dividuação, quando fizermos o Estado fracassar na sua missão de modelar-nos. Por conseguinte, quero pensar a contribuição que pode dar a educação institucional nesse processo de resistência.

O que podemos nós como professores/as? O que pode a escola?

É nesse momento que retomo a epigrafe deste texto e convido Maarten Simons e Jan Maschelein a conversar conosco no exercício de pensar uma escola preguiçosa. Nas conclusões de sua analítica, até então fatalista, Lazzarato anuncia ao leitor/a uma possibilidade: a preguiça como recusa desse governamento totalitário. Nas palavras do autor: (...) chamo “preguiçosa” a ação política que, ao mesmo tempo, recusa e expulsa os papéis, funções e significações da divisão social do trabalho e que, por meio dessa suspensão, cria novos possíveis. (2017, p. 231). E cá nós: uma relação pedagógica preguiçosa? Uma escola preguiçosa? Que tal?

Mas o que é a escola? Qual o seu sentido na sociedade do humano endividado? Ambas as questões permitem dois tipos de respostas. A primeira se utiliza das ciências positivas: tais como a psicologia, ciências sociais e história, a fim de buscar  as respostas na escola em ato e oferecer um diagnóstico do que fizemos com o que chamamos de escola, o outro tipo busca respostas em outras possibilidades de pensar e fazer a escola, olhando para esse diagnóstico e questionando se a escola em ato corresponde com a sua potência, com o dever ser da ideia ‘escola’; havendo incompatibilidade a conclusão é uma: erramos o caminho, e quem erra o caminho na impossibilidade de seguir: retorna e recomeça.

Para os filósofos da educação Masschelein e Simons (na obra Em defesa da Escola: uma questão pública, 2017) o central da escola é a democratização do tempo livre, entendido como tempo não produtivo. Os autores retomam a ideia grega de skholé – tempo livre – para retornar ao que seria a “essência” da escola. Na Grécia antiga, e talvez no Brasil da desigualdade social também, esse tempo não existiu naturalmente para todos, ele era privilégio do aristocrata grego que tinha o direito natural sobre ele. O tempo livre da escola é produzido, ou possibilitado, por meio do que os autores chamaram de suspensão e profanação.

A suspensão consiste em deixar fora dos muros da escola as normas sociais e familiares que operam sobre os alunos, de suspender, mesmo que temporariamente, as interdições advindas das categorias sociais e familiares. Conforme os autores, o central da suspensão consiste no rompimento com o tempo linear, possibilitando a emergência do princípio de igualdade próprio e necessário para a experiência escolar.

 

O que queremos enfatizar é que é através dessa suspensão que as crianças podem aparecer como alunos, os adultos como professores, e os conhecimentos e habilidades socialmente importantes como matéria na escola. É essa suspensão e essa construção do tempo livre que instilam a igualdade no escolar, desde o início. [...]. A escola cria igualdade precisamente na medida em que constrói o tempo livre, isto é, na medida em que consegue, temporariamente, suspender ou adiar o passado e o futuro, criando, assim, uma brecha no tempo linear. O tempo linear é o momento de causa e efeito: “Você é isso, então você tem que fazer aquilo”, “você pode fazer isso, então você entra aqui”, “você vai precisar disso mais tarde na vida, então essa é a escolha certa e aquela é a matéria apropriada”. Romper com esse tempo e lógica se resume a isso: a escola chama os jovens para o tempo presente (“o presente do indicativo” nas palavras de Pennac) e os libera tanto da carga potencial de seu passado quanto da pressão potencial de um futuro pretendido planejado (ou já perdido). (MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M., 2017, p. 36).

 

Por meio da profanação, os conhecimentos e técnicas também são desligados de seus usos privados na sociedade e são libertados na escola para o estudo e a prática. Isso quer dizer que na escola o aluno não vai aprender da matemática o que ele precisa saber somente para operar uma função técnica específica a fim de sanar uma demanda imediata e externa a escola, nela, a matemática e os demais saberes são libertados de suas finalidades sociais e apresentados à nova geração (os alunos) para o estudo e a prática.

 

Um tempo e lugar profanos, mas também as coisas profanas, referem-se a algo que é desligado do uso habitual não mais sagrado ou ocupado por um significado específico, e, portanto, algo no mundo que é, ao mesmo tempo, acessível a todos e sujeito à (re)apropriação de significado. É algo, nesse sentido geral (não religioso), que foi corrompido ou expropriado; em outras palavras, algo que se tornou público. O conhecimento, por exemplo, mas também as habilidades que têm uma função especial na sociedade, são tornados gratuitos e disponíveis para o uso público [o estudo e a prática]. (MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M., 2017, p. 39, [grifo nosso]).

 

A partir dessa suspensão temporária e da profanação que liberta o mundo na escola, os alunos são tomados como iguais na capacidade de estudo e prática sobre algo do mundo, portanto, essa igualdade não é sobre assumir equivocadamente que todos são iguais, de que não há diferença de condições entre eles, mas de assumir como um imperativo pedagógico que todos são capazes de estudar e praticar a matemática, o português, a filosofia, a sociologia, as artes e literatura, a química e física, de treinar o corpo na educação física. Nas palavras dos autores:

 

Para a escola e o professor, a igualdade do aluno é uma hipótese prática – não é uma certeza científica – que alguém se esforça para verificar enquanto leciona. Naturalmente, ao realizar essa verificação, o professor pode e vai levar em consideração o aluno individual, sua situação e suas questões. Mas essa atenção às diferenças pertence ao reino do próprio ensino e é separada da construção de um sistema de ensino baseado nas chamadas diferenças e desigualdades factuais ou naturais.

Isso não significa que não pode haver diferenciação dentro da escola. O que é problemático é a diferenciação imposta pela sociedade sobre a escola em nome de uma necessidade natural ou outra qualquer. (MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M., 2017, p. 71).

 

Na escola do escolar, do tempo livre para o estudo e a prática, o lápis branco ganha sentido e não se perde dos demais. A recuperação do escolar passa pela recusa das práticas de governamento, por meio das políticas públicas, que querem forçosamente transforar a educação em mais uma mercadoria dando vasão ao princípio do “empresário de si”. Nesse sentido, a educação institucional, seja na escola ou na universidade, tem potência para instituir lugar, tempo e espaço, para o encontro de singularidades podendo nos arrancar da individualidade e (co)implicar-nos no pensamento sobre outros modos de ser e estar no mundo.

 

Referências

 

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa. São Paulo: perspectiva, 2016.

 

GARCÉS, Marina. Um mundo común. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2013.

HARDT, A.; NEGRI, A. Declaração: isto não é um manifesto. Tradução Carlos Szlak. São Paulo: N-1, 2014.

LAZZARATO, Maurizio. O Governo do Homem Endividado. Tradução Daniel P. P. da Costa. São Paulo: n-1 edições, 2017.

MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução Cristina Antunes. 2. ed. Belo Horizonte: Autência, 2017.

 

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