Trajetórias da Política de Educação a Distância no Setor Público Brasileiro: Da Indução à InstitucionalizaçãoTrajetórias da Política de Educação a Distância no Setor Público Brasileiro: Da Indução à Institucionalização
Trajetórias da Política de Educação a Distância no Setor Público Brasileiro: Da Indução à Institucionalização
RESUMO. Este artigo examina a evolução das políticas públicas de Educação a Distância (EaD) no Brasil nas últimas três décadas, com foco no setor público. A análise parte da premissa de que a EaD transitou de uma posição marginal para se tornar um elemento central na agenda educacional, impulsionada principalmente por políticas de formação de professores. Utilizando como referencial teórico-metodológico o modelo de Múltiplos Fluxos de John Kingdon, argumenta-se que a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em 1996 funcionou como uma "janela de oportunidade", alinhando o fluxo de problemas (déficit na formação de professores), o fluxo de soluções (a EaD como alternativa viável) e o fluxo político (clima nacional favorável à valorização docente). A criação do sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB) é analisada como o ápice dessa fase de fomento federal. Conclui-se que, esgotado em parte o modelo de indução, a agenda contemporânea da EaD pública se deslocou para o desafio da institucionalização, buscando integrar a modalidade de forma perene e sustentável às estruturas administrativas, pedagógicas e orçamentárias das instituições de ensino superior.
Palavras-chave: Políticas Públicas Educacionais, Educação a Distância, Institucionalização, Múltiplos Fluxos, Formação de Professores.
1. INTRODUÇÃO
A Educação a Distância (EaD) no Brasil vivencia um momento de redefinição estratégica. Superada a fase de expansão massiva, capitaneada por programas de fomento governamental, as instituições públicas de ensino superior (IPES) deparam-se com o desafio de consolidar a modalidade em suas estruturas permanentes. Para compreender a complexidade deste cenário atual, é imperativo analisar a trajetória histórica que permitiu à EaD emergir como um tema relevante na agenda de políticas educacionais do país.
Este artigo propõe-se a investigar essa trajetória, cobrindo o período dos últimos 30 anos, um marco temporal que abarca desde a sua regulamentação oficial até os debates correntes sobre sua institucionalização. Argumenta-se que a ascensão da EaD pública não foi um processo linear, mas sim o resultado de uma confluência de fatores políticos, sociais e legais, que podem ser mais bem compreendidos à luz de modelos de análise de políticas públicas.
Nesse sentido, o texto mobiliza o arcabouço teórico do modelo de Múltiplos Fluxos (Multiple Streams Framework), de John Kingdon, para explicar como a EaD se converteu em uma solução governamental prioritária, especialmente ao se associar a outra agenda premente: a formação inicial e continuada de professores para a educação básica. Analisa-se, portanto, como a LDB de 1996 e os Planos Nacionais de Educação (PNEs) subsequentes criaram as condições ideais para a formulação de políticas de larga escala, como o Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB). Por fim, discute-se a transição de uma agenda focada na oferta de vagas para uma nova agenda, centrada na sustentabilidade e na integração definitiva da EaD ao cotidiano das universidades.
2. A ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS COMO FERRAMENTA DE INVESTIGAÇÃO
O estudo de políticas públicas oferece ferramentas analíticas robustas para compreender como determinadas questões ganham proeminência e se transformam em ações governamentais. Embora a realidade seja fluida, o modelo de "ciclo de políticas" (policy cycle) oferece uma heurística útil, dividindo o processo em fases como formação de agenda, formulação, implementação e avaliação (Gomes, 2020).
A fase de formação de agenda é particularmente crucial, pois nela se define quais problemas merecem a atenção do governo. O modelo de Múltiplos Fluxos de John Kingdon (2014) oferece uma explicação dinâmica para este processo. Kingdon postula a existência de três fluxos independentes:
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Fluxo de Problemas (Problem Stream): Composto por questões que são percebidas como problemas públicos. Essa percepção é moldada por indicadores (estatísticas sobre evasão, dados de censo, etc.), eventos-foco (crises, desastres ou marcos simbólicos) e o feedback de políticas existentes.
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Fluxo de Propostas/Soluções (Policy Stream): Um "caldo primordial" de ideias e alternativas que circulam entre especialistas, acadêmicos, burocratas e grupos de interesse. Soluções sobrevivem e se tornam proeminentes se forem tecnicamente viáveis, consistentes com os valores dominantes e capazes de antecipar futuras restrições.
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Fluxo Político (Political Stream): Engloba o "humor nacional", o balanço de forças entre grupos de interesse organizados e as mudanças na administração governamental (eleições, trocas de ministros, etc.).
Segundo Kingdon, a mudança mais significativa na agenda ocorre quando esses três fluxos se encontram, um momento que ele denomina "janela de oportunidade" (policy window). Nessas ocasiões, um problema é reconhecido, uma solução viável está disponível e a conjuntura política é favorável, permitindo que o tema ascenda na agenda decisória. Este modelo é particularmente elucidativo para analisar a trajetória da EaD no Brasil.
3. A CONSTRUÇÃO DA AGENDA DA EAD PÚBLICA: MÚLTIPLOS FLUXOS EM CONVERGÊNCIA
Até o início da década de 1990, a EaD no Brasil era uma modalidade marginal, associada a cursos profissionalizantes de baixo prestígio e a iniciativas de educação supletiva, com pouca ou nenhuma presença nas universidades e na agenda do Ministério da Educação (Belloni, 2009). Sua imagem era marcada pela desconfiança acadêmica e por limitações tecnológicas, não sendo considerada uma alternativa séria para os grandes desafios educacionais do país.
Esse cenário começa a se transformar com a confluência dos fluxos descritos por Kingdon, catalisada por um evento-foco de grande magnitude: a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/1996.
O Artigo 80 da LDB conferiu, pela primeira vez, um estatuto legal claro à EaD, determinando que "o Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino". Simultaneamente, a mesma lei, em seu Artigo 62, estabeleceu a exigência de formação em nível superior para todos os professores da educação básica. Esta exigência explicitou um problema de enormes proporções: o Brasil possuía um contingente de centenas de milhares de professores leigos ou com formação inadequada atuando nas redes públicas. Os dados dos censos educacionais funcionavam como indicadores que, ano após ano, reforçavam a gravidade do problema, tornando-o incontornável para os formuladores de políticas.
Nesse contexto, a EaD, que vinha amadurecendo em experiências isoladas e se beneficiando dos avanços das tecnologias de informação e comunicação, emergiu no fluxo de soluções. A modalidade apresentava-se como uma alternativa tecnicamente viável e financeiramente eficiente para qualificar, em larga escala e com capilaridade nacional, o gigantesco contingente de professores, superando barreiras geográficas e a capacidade limitada de vagas no sistema presencial (Kenski, 2012).
O fluxo político também se tornou favorável. Havia um "humor nacional" de valorização da educação básica e de seus profissionais, e a formação docente tornou-se pauta prioritária nos governos que se seguiram, sendo consolidada como meta nos Planos Nacionais de Educação. A conjunção desses três fluxos abriu uma clara janela de oportunidade.
O resultado mais emblemático dessa convergência foi a criação do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB), pelo Decreto nº 5.800/2006. A UAB materializou a EaD como política pública de Estado, articulando universidades federais e estaduais, polos de apoio presencial nos municípios e o financiamento do MEC para atender, prioritariamente, à demanda por formação de professores da educação básica (Santos & Costa, 2021). A UAB representou o auge da agenda de fomento, permitindo uma expansão sem precedentes da EaD pública no país.
4. DO FOMENTO À INSTITUCIONALIZAÇÃO: A NOVA AGENDA DA EAD PÚBLICA
A política de indução federal, personificada na UAB, foi crucial para a democratização do acesso ao ensino superior e para a legitimação da EaD no ambiente acadêmico. Contudo, esse modelo também gerou dependências e desafios estruturais. Em muitas universidades, a EaD operou como um projeto apartado, com financiamento externo, equipes temporárias e pouca integração com os cursos e a administração central (Vieira & Almeida, 2020).
Com a instabilidade e a redução do fomento federal nos últimos anos, a fragilidade desse modelo se tornou evidente, impulsionando uma mudança crucial na agenda. O debate, antes focado em "como expandir a oferta", passou a ser sobre "como garantir a sustentabilidade e a qualidade". Emerge, assim, a agenda da institucionalização.
Institucionalizar a EaD significa integrá-la plenamente à estrutura organizacional da universidade. Isso implica:
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Integração Curricular e Pedagógica: Tratar a EaD não como um apêndice, mas como uma modalidade regular, prevista no projeto de desenvolvimento institucional (PDI) e nos projetos pedagógicos dos cursos (PPCs).
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Integração Administrativa e Orçamentária: Incorporar os custos da EaD no orçamento regular da instituição, criando cargos efetivos para profissionais da área (designers instrucionais, tutores, gestores) e unificando processos acadêmicos e administrativos.
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Cultura Organizacional: Promover uma cultura que valorize a EaD, capacitando docentes e técnicos do ensino presencial para atuar na modalidade e fomentando a pesquisa sobre suas práticas e tecnologias.
Essa nova agenda é complexa e enfrenta resistências, mas é vista como o único caminho para assegurar a perenidade e o desenvolvimento qualificado da educação a distância pública no Brasil, para além da dependência de programas governamentais transitórios.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da trajetória da EaD pública no Brasil nas últimas três décadas, sob a lente do modelo de Múltiplos Fluxos, revela um percurso dinâmico e intrinsecamente ligado a outras agendas políticas, notadamente a da formação de professores. A LDB de 1996 foi o evento catalisador que permitiu a convergência dos fluxos de problemas, soluções e vontade política, abrindo uma janela de oportunidade para a criação de programas de fomento de escala nacional, como a UAB.
Essa fase, marcada pela indução federal, foi fundamental para expandir e legitimar a modalidade. Contudo, o cenário atual demonstra os limites desse modelo e impõe uma nova prioridade à agenda: a institucionalização. O desafio contemporâneo das instituições públicas é transformar a EaD de um projeto financiado externamente em uma parte integrante e sustentável de sua missão, estrutura e cultura.
As reflexões aqui apresentadas buscam contribuir para a compreensão desse processo, evidenciando que os caminhos futuros da EaD pública dependerão da capacidade das instituições de superar o paradigma do fomento e abraçar a complexa, porém necessária, tarefa de sua plena integração institucional.
6. REFERÊNCIAS
BELLONI, M. L. Educação a Distância. 5. ed. Campinas: Autores Associados, 2009.
GOMES, G. M. O Ciclo de Políticas Públicas: uma abordagem crítica. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, p. 1-15, jan./fev. 2020.
KENSKI, V. M. Educação e Tecnologias: O novo ritmo da informação. 8. ed. Campinas: Papirus, 2012.
KINGDON, J. W. Agendas, Alternatives, and Public Policies. Update Edition. Boston: Pearson, 2014.
SANTOS, E. M.; COSTA, R. L. O Sistema UAB e seu impacto na formação de professores no Brasil: balanços e perspectivas. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 37, e25430, 2021.
VIEIRA, A. F. S.; ALMEIDA, M. E. B. Desafios da Institucionalização da Educação a Distância na Universidade Pública. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, v. 36, n. 2, p. 453-472, maio/ago. 2020.