09/08/2018

Tensionamentos sobre o Ensino de Filosofia e o Perigo do Filosofar

Resumo: a escrita que segue tem por objetivo tensionar a discussão sobre as políticas desenvolvidas no âmbito da educação, mais precisamente no que se refere ao ensino de Filosofia. A partir de análise realizada na Legislação e documentos que visam adequar-se a mesma, procura-se dialogar com duas imagens de ensino de Filosofia: uma imagem historicamente construída e outra que se constrói a partir do que é escrito sobre essa atividade na documentação aqui selecionada. Tendo em vista esse pressuposto, este texto visa problematizar, inspirado na origem da história da Filosofia Ocidental, o ensino de Filosofia enquanto representação de um perigo, e como esse ensino se posiciona no discurso educacional. Levaremos em conta a relação intrínseca entre a ordem discursiva e o poder entendidos contemporaneamente.    

Palavras-chave: ensino de filosofia; perigo; poder      

Considerações Iniciais

O que pensar sobre ensino de Filosofia hoje? O que pensar da própria Filosofia hoje? O que significa pensar esses dois âmbitos no Brasil contemporâneo? O Brasil passa por um período político importante, crítico, estranho, caótico, complicado ou decisivo? Pode ser todas as alternativas ou cada uma delas em separado. Não que o Brasil sempre tenha vivido em marés tranquilas politicamente falando, mas de 2016 até então, está sendo um período de difícil compreensão. No Ensino Médio estamos vivendo sob a sombria Lei 13.415 de 2017 que prevê uma reformulação do ensino médio. Em um âmbito mais geral, tal reformulação prevê duas mudanças centrais: a primeira refere-se à organização pedagógica e curricular do Ensino Médio; a segunda: refere-se às regras dos usos dos recursos públicos para a educação. 

No que se refere ao ensino de Filosofia a reformulação prevê a retirada de sua obrigatoriedade do ensino médio público. Um roteiro velho com atores novos. É sabido que na LDB 9.394/96 a Filosofia não tinha presença garantida como disciplina da grade curricular das escolas ficando apenas como “conteúdo transversal” a ser desenvolvido pelas demais disciplinas do currículo, de forma a garantir o “filosófico” que a LDB 9.394/96 preconizava, a saber: formar cidadãos éticos e críticos, aptos a exercerem a cidadania de forma plena.

Na prática, para seguirmos a denominação dada por Alves (2002), o que ocorreu foi uma filosofia “diluída”, uma presença não presente, com o perdão da contradição. Nesse sentido a Ética necessária para tal projeto voltado para a formação dessa concepção de cidadão já estaria presente nas demais disciplinas do currículo. Outro importante documento criado, após a LDB 9.394/96, foram os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), que visava viabilizar as propostas da LDB 9.394/96 nas instituições escolares. Nos PCNEM a presença da Filosofia era valorizada, mas, ainda assim, nada garantia, legalmente, sua presença no currículo. Somente em 2008 com a Lei 11.684/2008 é que a Filosofia passaria a ser obrigatória no currículo como disciplina propriamente dita.

Para além da Lei 13. 415 de 2017 há, também, o Projeto de Lei intitulado “Escola sem Partido” (PL 1411/2015, PL 867/2015 e PL193/2016), ou “Lei da Mordaça”, como ficou mais conhecido entre os profissionais da área da educação, tramitando no Congresso Nacional. É bem verdade que esse PL vem sendo discutido já há algum tempo em alguns Estados e até mesmo com aprovação em alguns deles, como o caso de Alagoas.  Em outros Estados a discussão vem ganhando em importância na medida em que vivenciamos um momento de crescente intolerância com relação a modos de vidas diferentes, às maneiras de pensar diferentes, a modos de se estar no mundo que se contrapõe, sobretudo à uma visão que se diz defensora da  posição tradicional da família brasileira. 

Em linhas gerais, esse projeto prevê a retirada da discussão ideológica partidária das escolas defendendo, assim, a neutralidade do conhecimento e o fim da assim chamada doutrinação ideológica nas escolas. O que na prática significa a retirada da autonomia do professor em sala de aula. Para exemplificar o tamanho do cerceamento da atividade de pensamento pretendida pela PLS 193/2016 apontamos como uma de suas metas a afixação, em cada sala de aula, de cartazes com indicações do que deve, ou não, ser realizado pelo professor em sala de aula.

Na prática o resultado é a transformação da atividade docente em transmissão de conteúdos tão somente preestabelecidos e dissociados dos problemas sociais, econômicos, políticos e religiosos, que emergem na contemporaneidade brasileira. Entendendo, aqui, liberdade de pensamento, de forma ampla, como sendo uma atividade que possibilita pensar as próprias bases de todo conhecimento possível, seus limites e consequências, conectados com outras áreas do saber construídas pela humanidade ao longo da história e potencializando outras formas de estar no mundo. Portanto, o PL Escola sem Partido retira o direito e a possibilidade dos estudantes de pensar de forma potente e, talvez, transformar-se e transformar o mundo à sua volta.

Os críticos da Escola sem Partido nos fazem lembrar e ao mesmo tempo nos alertam para os rumos que uma educação que se pretende neutra podem nos levar. É de domínio público a carta endereçada aos professores da Alemanha no final da segunda guerra mundial. Na mensagem da carta, retirada do texto de Durval Ângelo (2016), onde o mesmo comenta os efeitos do PL Escola sem Partido na escola, consta,

Prezado professor, sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a educação. Meu pedido é: ajude seus alunos a se tornarem humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e aritmética só são importantes para fazer nossas crianças mais humanas.

Esse é um exemplo extremado, é verdade, mas não menos verdadeiro, de como uma educação voltada somente para o desenvolvimento técnico em detrimento do desenvolvimento do pensamento que não vise somente os fins, pode nos levar, ou seja: à barbárie.

Portanto, há em andamento no Brasil uma dupla tentativa de cerceamento na educação. A primeira é a tentativa de cerceamento do pensamento que se queira livre e identificado com a Filosofia, como disciplina específica do currículo. Segunda: é a tentativa de retirada da possibilidade de pensamento que se pretenda livre, também nas demais disciplinas do currículo. Essas tentativas se materializam na Lei 13.415 e no PL Escola sem Partido. O interessante, para os fins desta escrita, é pensarmos o ensino de Filosofia nos termos de uma representação, na representação de um perigo, ou não, no ensino médio. Resumidamente podemos dizer que tivemos oito anos de Filosofia garantida legalmente no currículo. Lembro as palavras de Silvio Gallo com relação à volta da Filosofia como disciplina obrigatória no Ensino Médio.

Naquela época, logo após a efetivação da Lei 11.684/2008, Silvio Gallo dizia, em entrevista à seção Filosofia na escola, da Associação Nacional de Pós Graduação em Filosofia (ANPOF), que se a Filosofia não mostrasse a que veio ela sairia do currículo, assim como entrou, com a força de uma “canetada”. A intenção, aqui, obviamente, não é procurar culpados pelo fato da Filosofia estar “a perigo” novamente, mas sim nos propomos a pensar esse processo de tentativa de sua retirada do ensino médio.  Por que retirá-la do currículo do ensino médio? Uma das razões apresentadas em defesa seria para privilegiar um currículo mais enxuto, porque a Filosofia, entendida como um “conteúdo transversal”, já estaria contemplada nas demais disciplinas. Seria a Filosofia algo da ordem de um perigo a ponto de direcionarem esforços para sua retirada do currículo do Ensino Médio? Se ela for realmente um perigo, seria um perigo para quem?

Por um lado, procurarei sustentar que a caracterização que encontramos do ensino de Filosofia, tanto na LDB 9.394/1996, quanto nos PCNEM, de certa forma tendem, a despotencializar esse âmbito do ensino. Por outro, intento pensar o ensino de Filosofia associado a um perigo e tomo como inspiração a própria origem da história da Filosofia Ocidental. No entanto, o texto tem o propósito de evidenciar algumas características de tal ensino que predominaram e ainda predominam em documentos educacionais oficiais ou documentos cujos valores são de orientação.

É amplamente conhecido o fim que o Estado Ateniense reservou à atividade filosófica exercida em praça pública, livremente, na antiga Grécia, a saber: a morte dessa atividade exemplificada na figura de Sócrates; a acusação é igualmente conhecida: corromper a juventude e questionar os deuses oficiais. Desde então a Filosofia apresenta a tensão existente entre Estado, os objetivos que devem guiar a educação e a atividade filosófica enquanto ensino.

Implícito à tríade supracitada e que se define nos termos do Estado, objetivos da educação, e ensino de Filosofia, pode-se visualizar, para os fins dessa escrita, duas relações. A primeira concerne à relação entre Estado Brasileiro e discurso educacional voltado ao ensino de Filosofia no Ensino Médio. A segunda relação se percebe ao pensar o ensino de Filosofia como uma atividade que se aproxima a algo da ordem de um perigo.

Portanto, trabalharei com essas duas imagens: sobre o que é dito do ensino de Filosofia, seja na Legislação, seja em documentos que visem adequar-se a mesma, e com a imagem da atividade filosófica assemelhada a uma atividade perigosa. Trabalhemos, por ora, com o que se diz do ensino de Filosofia nos documentos oficiais de modo a evidenciar uma possível regularidade sobre o que é escrito sobre  essa disciplina.  

Ensino de Filosofia: legislação e atividade perigosa

Ao analisarmos os documentos que tratam sobre o ensino de Filosofia percebe-se a associação realizada entre esse ensino e um âmbito do conhecimento que, de alguma forma, oportuniza ao educando obter os conhecimentos necessários ao exercício da cidadania.

Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre: (...) III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania. (LDB, 1996, p. 48)

A segunda associação que podemos perceber é entre o ensino de Filosofia e o possível movimento que essa disciplina poderia provocar na consciência dos educandos, desenvolvendo a crença de que, desta forma, se levaria o estudante a pensar de forma crítica. “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico.” (PCN, 2002, p. 22)  

Por mais que tenhamos em vista que nos PCNEM/Filosofia (2002) a especificidade da mesma seja mais detidamente trabalhada, depositando no texto filosófico e na História da Filosofia sua centralidade, ainda assim as reverberações da relação entre pensamento crítico e exercício da cidadania se fazem presentes de maneira fundamental com relação a esse ensino. “Afinal, a LDB e as Diretrizes contentam-se com a fórmula vaga do “pensamento crítico”, traço característico, mas não definitivo da filosofia.” (Salles; Birchal; Paschoal, 2004, p.388)

Outra caracterização associada ao ensino de Filosofia é sobre o poder de “reflexão” que a mesma oferece a quem com ela tem contato no Ensino Médio. No próprio PCNEM/Filosofia consta: “a especificidade da atividade filosófica consiste, em primeiro lugar, em sua natureza reflexiva”. (BRASIL, 2000, p. 47). Nas Orientações Curriculares Nacionais do Ensino Médio (OCNEM/2006), documento com valor de orientação, criado pós LDB/1996, encontramos outra referência à especificidade do ensino de Filosofia relacionando-a com a “atividade reflexiva”: “Com isso, a Filosofia costuma quebrar a naturalidade com que usamos as palavras tornando-se reflexão.” (BRASIL, 2008b, p. 22).

Obviamente, o ensino de Filosofia ganha outros contornos em tais documentos, mas o objetivo aqui é evidenciar escritos que, de certa forma, se mantem. Quando essas caracterizações sobre qual seria o papel, por assim dizer, do ensino de Filosofia no Ensino Médio são acentuadas em detrimento de outras, podemos pensar que essas tênues caracterizações estão para além da, não menos importante, despotencialização dessa prática. Essas imagens, que emergem nos documentos analisados, sobre o que seria a prática filosófica na escola, podem estar a obedecer a certas leis e regras discursivas. 

Essas características, mencionadas anteriormente, como bem sabemos, não são especificidades da prática filosófica, cabendo a todas as demais disciplinas essa responsabilidade. A consequência da acentuada centralidade do ensino no pensamento “crítico”, “reflexivo” e no “desenvolvimento da cidadania” é o próprio esvaziamento da prática filosófica.  

O argumento que defende a não centralidade do ensino de Filosofia nessas caracterizações é amplamente conhecido, mas o que nos interessa, por hora, é que essa imagem do que seria essa atividade no Ensino Médio emerge com certa regularidade em documentos oficiais. Podemos pensar que o discurso que mantém e acentua a centralidade do ensino de Filosofia como “exercício da cidadania”, “desenvolvimento do pensar crítico” e “exercício da reflexão”, se torna visível a ponto de não emergirem outros ditos sobre o que possa vir a ser este ensino no nível médio.

Voltemos ao caso de Sócrates e admitamos, por um segundo, que dentre as várias caracterizações que a Filosofia possa ter recebido ao longo da história, uma delas é a referência que fiz aqui, a saber: que, pelo menos, em seu início seu ensino estava vinculado a uma atividade perigosa perante o Estado Ateniense. Será possível a Filosofia ter guardado algo dessa natureza, ou seja, algo de perigoso a ponto do Estado Brasileiro querer sua “morte” no Ensino Médio? Se a resposta for positiva, quais mecanismos emergem para que isso seja possível?

Se a Filosofia manteve, em sua gênese, algo da ordem do perigo, a pergunta que podemos fazer é: como manter um ensino de Filosofia perigoso e ao mesmo tempo instituído? Como manter esse ensino institucionalizado sem matá-lo, assim como ocorreu com Sócrates? Segundo Cerletti, (2009, p.66)

Pareceria que a filosofia deve negociar, tal como qualquer saber ou prática que aspire a ser ensinado em instituições oficiais, as condições de sua inclusão nos planejamentos de estudo ou nos programas curriculares. Mas a questão é se nessa negociação a filosofia não perde o essencial de si mesma e se o custo de sua aceitação não significa sua transformação em mais um conhecimento, isto é, num conjunto de informações que devem ser reproduzidas de acordo com pautas prefixadas

Se, por um lado, podemos vislumbrar algo de positivo nessas tentativas de coerção ao pensamento que se pretende livre é porque, talvez, a Filosofia ainda tenha mantido nesse curto período de estabilidade obrigatória no Brasil, algumas de suas características essenciais. Sua radicalidade do pensamento, sua inquietação com o status quo, problematização de temas como moralidade, sexualidade, contradições sociais de sua época, ou seja, uma possível aproximação com uma atividade perigosa. Portanto, por mais que a vinculação da Filosofia com o “exercício crítico”, “reflexivo”, “exercício para a cidadania” seja tênue, essa imagem do que seria a prática desse ensino dentro das escolas parece incomodar, tendo em vista que todas essas caracterizações são diametralmente opostas ao que o PL Escola sem Partido visa estabelecer. Por outro, seguindo o pensamento de Cerletti (2007), podemos perguntar: o que fora colocado em negociação, entre o ensino de Filosofia e a instituição Escolar, para além de uma possível transformação em mais um conhecimento? O que há de diferente entre nossa época e a Grécia Antiga do séc. V a.C,  onde o Estado, não suportando a circulação do pensamento perigoso, acabou por retirar de circulação, eliminando-o de vez com a morte de Sócrates?

Hoje em dia, Sócrates não morreria, se bem que pelo PL Escola sem Partido ele poderia ser preso se descumprisse a cartilha estipulada. Mas, para além da privação de ir e vir, hoje teríamos uma espécie de cooptação sutil do nosso próprio pensamento, da nossa imaginação, da nossa capacidade criativa e consequentemente do que significa estar no mundo como crítico, reflexivo e como indivíduo que exerce sua cidadania de forma plena. Isso tem haver, talvez, com o próprio modo como se articula a relação entre poder e vida na contemporaneidade.

  Em suas investigações sobre o fenômeno do poder como bem descreve PELBART (2007), Foucault identificou dois regimes paradigmáticos: o regime de poder soberano e o regime de poder biopolítico. O que caracterizava o regime de poder soberano, segundo Foucault, é que nele o soberano fazia morrer aqueles que colocassem em risco o seu poder, fazendo da morte um espetáculo. Já no regime de poder biopolítico ocorreria o contrário, ou seja, uma preocupação em manter a vida por meio dos biopoderes locais que se concretizam na gestão da saúde, higiene, alimentação, sexualidade, natalidade e podemos acrescentar, aqui, as políticas voltadas à educação. No contexto biopolítico as políticas são voltadas a manter a população viva e com isso se desenvolvem mecanismos de controle que visam manter a população sob essa condição.   

A vida passa a ser maximizada, a vida se torna o centro das atenções, e o poder, nesse contexto, se torna mais penetrante e invasivo. O conceito de poder, na forma como é entendida por Foucault, é algo diferente do poder concebido pela tradição filosófica. O autor não compreende o poder como algo estável e centralizado, mas sim como algo da ordem das relações. O poder na biopolítica é entendido como algo flexível, que se exerce uns sobre os outros, é algo molecular, acentrado, micro. O poder não mais emanaria, por exemplo, somente do Estado, mas de outros pontos como, capital, mídia, ciência etc. A consequência de entendermos o poder nesses termos seria a quase inevitável invasão, um tipo de atravessamento, pelo poder, de todos os espaços que poderíamos supor que, de alguma maneira ou de outra, estivessem sob nosso domínio pleno. Nas palavras de Pelbart (2007,57)

Os mecanismos diversos pelos quais se exercem esses poderes são anônimos, esparramados, flexíveis. O próprio poder se tornou pós moderno. Isto é, ondulante, acentrado (sem centro), em rede, reticulado, molecular. Com isso, o poder, nessa sua forma mais molecular, incide diretamente sobre as nossas maneiras de perceber, de sentir, de amar, de pensar, até mesmo de criar.

Aqui podemos traçar um paralelo entre o regime de poder soberano, condenação dispensada a Sócrates, regime biopolítico e os fins ao qual essa escrita visa. Podemos forçar a imaginação e colocarmos o personagem Sócrates vivendo no regime soberano, onde qualquer movimento que desafie a ordem desse regime, o mesmo o eliminará. Sócrates representou um perigo como “professor de filosofia”, portanto mereceu o cálice de cicuta. Já no regime biopolítico, como já fora mencionado, é a vida que ganha relevância em detrimento da morte. Portanto, não é mais permitida, pelo menos legalmente, a morte do “professor” Sócrates.

Aqui podemos visualizar a diferença crucial entre as duas imagens que venho trabalhando até o momento. A própria vida cooptada.  Não mais a eliminação da vida através do corpo, mas sim o fenômeno do poder atravessando a vida e a expropriando no que ela tem de mais singular.

Desde os genes, o corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade. Tudo isso foi violado, invadido, colonizado; quando não diretamente expropriado pelos poderes. (Pelbart , 2007,p.57)

Hoje, seria permitido ao “professor” Sócrates viver, e mais do que isso, seria estimulado a viver intensamente, viver plenamente, viver criativamente, viver criticamente. No entanto, nos vemos em um paradoxo. Ao mesmo tempo em que vivemos em uma sociedade que pede que se viva intensamente, criticamente, inteligentemente, ao mesmo tempo são pensados Projetos de Leis que visam retirar essa criticidade, inteligência, criatividade etc. Talvez, esteja em jogo a própria noção de “crítica”, “reflexão” e “exercício da cidadania”.

No regime biopolítico é permitido viver e as políticas são voltadas a manter a população viva, mas há, também, o fenômeno de cooptação de todos os predicados já mencionados e que poderíamos supor estar ao nosso controle. Um poder que se exerce não mais de fora, mas sim por dentro. Um exercício do poder que incide no pensamento, na criatividade e por consequência na própria maneira como entendemos o modo de sermos críticos, de como entendemos estar no mundo como cidadãos, em pleno exercício da cidadania e de como entendemos o próprio modo se sermos indivíduos reflexivos.

Assim, o PL Escola sem Partido emerge como materialidade que implica no comportamento dos indivíduos, nas normas de conduta de uma sociedade. Ao mesmo tempo em que mantêm uma noção de criticidade garantida na LDB, a PL Escola sem Partido também induz a como ser crítico, uma crítica que não ambiciona problematizar normas e valores historicamente arraigados na sociedade. No regime biopolítico, o poder perpassa a tudo e a todos, tanto documentos educacionais, tratados aqui, quanto normas de conduta dos indivíduos. Os próprios documentos oficiais voltados à educação são resultados de lutas que incidem no comportamento dos indivíduos em determinada época.

Nesse sentido, o próprio discurso educacional voltado para o ensino de Filosofia no Ensino Médio se encontra na posição de produtor e mantenedor do discurso que retira a potência do ensino de Filosofia se aproximando, assim, não a um Estado que elimine o indivíduo, mas antes preferindo a eliminação da própria atividade filosófica enquanto um devir perigo. Sócrates vivo, porém   descaracterizado, cooptado, não perigoso. Segundo Foucault, (1996; p.9)

[...] em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

Concordando com Foucault, temos que o próprio discurso educacional se encarregaria de criar e manter certos mecanismos e dispositivos que manteriam a atividade filosófica, no ensino médio, controlada e dominada.  Esse mesmo discurso que produz e ao mesmo tempo é produzido no interior de uma ordem discursiva, voltado para o ensino de Filosofia, faz circular certas imagens do que se deve entender por esse ensino.   

A regularidade em acentuar a caracterização da atividade filosófica na “criticidade”, no “desenvolvimento da cidadania” e na “reflexão”, como foi possível demonstrar nessa breve exposição, para além da despotencialização, essa mesma regularidade estaria imersa em outro cenário. Tendo em vista a própria ressignificação do que seriam essas qualidades no contexto biopolítico, o discurso que mantem visíveis essas imagens sobre o que deve ser o ensino de Filosofia faz com que outras formas de se caracterizar esse ensino fiquem invisíveis na ordem do que é dito ou escrito sobre essa atividade em um determinado período.

  Estando a Filosofia na posição de “conteúdos transversais”, se encontra, então, submetida a uma ordem, a uma ordem que define seu lugar. Esse lugar ao qual está destinada é o lugar onde se encontra sem potência; lugar do não perigoso. Lembremos, a ordem discursiva e as regras com as quais ela se define são intrínsecas ao exercício do poder e esse, como dissemos, é flexível e acentrado, emanando de vários pontos, sejam eles os pontos políticos, econômicos, midiáticos etc. Portanto, quando perguntamos juntamente com Cerletti (2009) sobre o que estaria em negociação na relação entre o ensino de Filosofia e a instituição Escolar, podemos pensar que está em jogo o próprio ensino de Filosofia como uma representação de um perigo à ordem discursiva. A mesma ordem discursiva que faz emergir uma caracterização bem definida do que seria ensinar filosofia e assim, tornando visível ditos e escritos em torno desse ensino no Ensino Médio no Brasil.    

Considerações finais

Para concluir, gostaria de trazer a noção de sobrevivência correlacionada com o conceito de vida nua desenvolvida por Giorgio Agamben (2002) e trabalhada por Pelbart no texto Biopolítica (2007). Segundo Agamben, no referido texto, a relação entre poder e vida na contemporaneidade produz sobrevida. É um poder que não elimina o corpo, mas, no entanto, mantem a vida em uma zona limítrofe entre a vida e a morte. Esse é um fenômeno do poder mais extremado, é onde se reduz vida a um fato biológico.

O poder assim compreendido se encarregaria de retirar toda a potencialidade da vida, e no caso do ensino de filosofia retiraria a potência do pensar filosófico, da criticidade, da imaginação, da criação, da reflexão. Se por um lado no regime biopolítico a vida é otimizada à exaustão, por outro, no contexto descrito por Agamben, o poder trata de eliminar a vida e manter um corpo exausto. Uma exaustão tão intensa que o corpo já não é capaz de sentir, apenas vive. Diante desse outro modo de se exercer o poder na contemporaneidade, podemos imaginar o “professor” Sócrates como um sobrevivente.

Um professor exausto demais para sentir, um professor exausto demais para experienciar. Assim também podemos pensar o ensino de Filosofia, entendido como “transversal”, “crítico”, para o “desenvolvimento da cidadania” e “reflexivo" como uma espécie de produção de sobrevida à essa disciplina no Ensino Médio. Se é correto pensarmos que o discurso, através de certas caracterizações, imagens ou ideias, mantém o ensino de filosofia conjurando a sua aleatoriedade e seus possíveis perigos, também é correto pensarmos que o ensino de filosofia ainda se mantém. Mas, se mantém como efeito de um discurso que o posiciona na ordem de uma sobrevida.

No entanto, por mais que tenhamos descrito, minimamente, as formas pelas quais o poder visa cooptar (biopolítica) ou exaurir (sobrevida) a vida na sua dimensão mais singular, ainda assim, esse mesmo poder produz focos de resistência à essa ordem estabelecida. Não esqueçamos que o discurso também convoca. A resistência, tanto no que se refere ao ensino de Filosofia, quanto à educação de modo geral, se dá na materialidade, por exemplo, do Manifesto do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio. Movimento composto por 10 entidades do campo educacional brasileiro e que se puseram a apontar os equívocos da Lei 13.415 de 2017 no que tange às mudanças no  currículo do ensino médio propostas pelo governo atual e ilegítimo. Assim como a própria Associação Nacional de Pós Graduação em Filosofia (ANPOF) que se colocou contrária às medidas tomadas com relação ao ensino de Filosofia. As ocupações em colégios e Universidades que ocorreram em todo o país, assim como inúmeras caminhadas pelas ruas do Brasil, são exemplos de como o discurso convoca modos outros de pensar a educação. 

Bibliografia

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Alves, Dalton José. A filosofia no ensino médio: ambiguidades e contradições na LDB. Campinas, SP: Autores Associados, 2002.

Ângelo, Durval. Escola sem Partido: a Lei da mordaça. Disponível em: http://www.brasil247.com/pt/colunistas/durvalangelo/247057/Escola-Sem-Partido-a-lei-da-morda%C3%A7a.htm

BRASIL. Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF, 1996.

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Cerletti, A. O ensino de filosofia como problema filosófico. Belo horizonte: Autêntica Editora, 2009.

Foucault, M. A ordem do discurso. Edições Loyola, São Paulo, 1996.

PELBART, P. Biopolítica. Revista Sala Preta, v. 7, n. 7, p. 57-66, 2007. Disponível

em: www.eca.usp.br/salapreta.   

SALLES, J. C; BIRCHAL, T.S; PASCHOAL, A. E. Filosofia. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares do Ensino Médio. Brasília: MEC/SEB, 2004.

 


 

 

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