08/10/2018

Simão Mago - Capítulo II A Bruxa

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II

A BRUXA

 

Era um domingo á tarde. Uma daquelas tardes macilentas de Outono em que se ouvia o grasnar das aves e as folhas que caiam copiosas das árvores secas... Meu irmãozinho mais novo e eu havíamos de averiguar um boato que corria acerca de nossa vizinha. Era uma casa de madeira, sem pintura com uma varanda portentosa e uma balaustrada de madeira torneada, belíssima, porém simples e austera. Sem pintura. Janelas grandes com venezianas de madeira abriam-se em linha, três à frente e três a trás da casa. Sem pintura. As paredes externas envelhecidas estampavam o acinzentado antigo das madeiras secas e as velhas telhas portuguesas adornavam o telhado. A fundação sobre toras de madeira fincadas no solo suspendiam a casa a quase dois metros no fundo e ao nível da rua à frente. O porão aberto para o fundo da casa era ladeado por paredes da mesma madeira antiga e tinha um ar sombrio e misterioso. Teias de aranha pendiam de cima, donde viam-se as vigas do assoalho de madeira da casa. O quintal era florido e varrido diariamente com vassoura de piaçava; De chão batido, quase lustroso. Caminhos ladeados por flores, rosas, jasmins, antúrios e gramíneas cuidadosamente cultivados, levavam á casinha, a latrina que ficava há poucos passos da casa e era edificada igualmente em madeira e abrigava um fosso onde jaziam os excrementos. Era todavia ladeada por flores e levava à ela um trilho de pedras cuidadosamente assentadas e pintadas de branco. Por certo para guiar o caminho em caso de uma necessidade noturna.

Nossa casa divisava com a casa da vizinha. Os terrenos eram separados por uma cerca de arame farpado, reforçada com uma cerca baixa de tabuas estreitas cuidadosamente fincadas lado a lado, para manterem cercados pequenas aves de criação, como as irritantes Galinhas de angola, patos, gansos e galinhas. Havia ainda uma barreira de capim limão plantada junto à cerca. Nada disso podia nos impedir de xeretar.

Havia uma estreita passagem, por baixo da cerca, entre o capim limão, de onde foram removidas algumas estacas de madeira da cerca e por onde fizéramos caminho. O caminho era uma antiga trilha de passagem, que usávamos costumeiramente, para ir até os vizinhos. Na casa funcionava um bar, ou taverna, ou comercio de secos e molhados como meu pai dizia. Comprávamos lá alguns mantimentos e eventualmente um garrafão de cachaça encomendado pelo pai. Um fumo de corda ou um punhado de balas.

 Morava lá um senhor grisalho que porfiava a enorme barba debruçado no peitoril da janela que abria para a rua. E dona Clarice. Ela era sua cunhada, a qual após a morte da irmã passou a tomar conta do cunhado, o senhor grisalho de barba branca que lembrava a barba de São Pedro, o apóstolo, o príncipe da Igreja. O senhor grisalho era uma alma caridosa e bondosa, a quem todos deviam respeito e consideração. Estava caquético e reumático. Era tísico e franzino, a barba parecia pesar-lhe no rosto. Movia-se empurrando uma cadeira pela casa e pelo bar. Exibia caroços nos membros das diversas fraturas que sofrera a cada queda que tivera. Fumava charutos de fumo de corda embrulhados em palha e bebia aguardente enquanto tomava chimarrão e escarrava desgraçadamente uma gosma esverdeada para fora da janela, tal qual ectoplasma ou algum rejeito radioativo. Muito simpático e amigável a todos cumprimentava e sua figura messiânica era vista diariamente pelos passantes e era sinal de boa sorte.

Dona Clarice era uma mulher balzaquiana por volta de 35 anos. Figura altiva e elegante, de postura ereta e firme. Vestia-se elegantemente, de maneira simples, mas vistosa. Saias até os joelhos, justas e discretas. Sapatos pretos, baixos e afivelados no peito-do-pé geralmente sem meias e blusas de mangas curtas ajustadas ao corpo. Os cabelos, os trazia bem penteados, presos por grampos ou laços de fitas. Era sempre vista com bacias de roupas para coarar, baldes de agua fresca que trazia do poço e colocava na varanda, cestas de frutas que colhia no quintal e ás vezes furtivamente remexendo um pequeno caldeirão de ferro que estava pendurado sobre uma fogueira que ela alimentava constantemente, no quintal, nos fundos da casa.

Iríamos nos esgueirar pela estreita trilha, para espiar oque acontecia no quintal da casa vizinha. Seria ela uma bruxa? O chão batido, o capim limão, o arame farpado e o rastejar sorrateiro por entre as folhas secas caídas da plantação de aipim. O barulho era preocupante, o estalar das folhas poderia nos denunciar. Eu rastejava adiante, meu irmãozinho logo atrás.

Dona Clarice era uma carola devota e era sempre assídua na igreja. Celibatária, não tinha marido, não tinha namorado e não dava confiança aos intentos de homem nenhum. Eu costumava reparar em sua feição beatifica e quase que podia notar uma aura de santidade. Rezava fervorosamente e cantava os hinos à glória de nosso Senhor do altíssimo firmamento bem como dos anjos e santos. Santa Ana era sua Santa protetora, a mãe da Virgem Maria, a mãe de Deus. A ela, Dona Clarice, recorriam os enfermos e aflitos. Pois de todos ela cuidava. Uma oração, uma invocação, uma conjuração ou uma expulsão de maus espíritos, ninguém o faria melhor. A ninguém mais se confiava o alento ao terror noturno dos assombrados pelo mal, ou as enfermidades graves e leves, ou a bênção das gestantes e dos nascituros. Era ela quem fazia a ponte entre a Virgem Santa e nós degredados filhos de Eva que suplicamos gemendo e chorando no vale da morte, pela salvação divina.

Rastejamos lenta e silenciosamente até a borda da casa, donde se via a varanda e a balaustrada. Não havia ninguém. Nem o senhor grisalho, caquético de barbas brancas, nem a vizinha.

Coração acelerado, o medo de sermos flagrados em atitude suspeitíssima. As respirações ofegantes e o tremor constante. Vamos desistir? Não. Havemos de descobrir! A curiosidade nos impelia a continuar. Escondidos atrás da casinha, a latrina; ao longe víamos o porão da casa. Era um lugar lúgubre e misterioso.

Viam-se ao longe muitas ferramentas de entalhar, como cinzéis e malhos, ferramentas de aplainar madeiras, serras de mão, martelos, facas e facões, além de ganchos e lanças forjados em vergalhões de aço e muitas madeiras. Haviam também empilhadas ao largo centenas de garrafas, a maioria vazias, de aguardente e cerveja. Uma geladeira antiga da Figidaire, com uma espessa porta que se abria e fechava empunhando uma alça de fechadura que se levantava ao abrir e se baixava ao fechar. Dizia-se que ao fechar a pressão externa ara tanta que nem um halterofilista poderia abri-la imediatamente. Sobre a geladeira uma caixa de madeira com refrigerantes da Pepsi-Cola e ao lado algumas mais de Fanta laranja e Fanta uva, minhas preferidas. Tínhamos que chegar lá. Havia também uma serra elétrica de mesa, com muita serragem em volta. As irritantes galinhas de angola passavam em bando, cacarejando a plenos pulmões. Devíamos deixá-las se afastarem. Elas poderiam denunciar nossa presença. Estávamos tão perto. Após tudo silenciar e um silencio sepulcral apoderar-se da atmosfera de perigo, é que logramos alcançar o porão sem sermos vistos. Ficamos tentados a apanhar os refrigerantes e ao nos aproximarmos, silenciosamente notamos uma caixa de bolachas de mel. Concordamos imediatamente que iríamos pegar um refrigerante e uma bolacha para cada um de nós, apenas. Nesse interim um gemido assustador fez-se ouvir, provavelmente do interior da casa. Era um gemer de agonia, de dor e de aflição e seguido de passos apressados que pareciam vir-lhe ao socorro. O trepidar do assoalho da casa denunciava a movimentação que ocorria e parecia descrever a cena: Dona Clarice atendendo o velho cunhado acamado, com dor em agonia. Quem sabe acordado por um pesadelo horrível. Pegamos os refrigerantes e as bolachas e corremos mais depressa possível para nos ocultarmos por entre a plantação de aipim que ocupava maior parte do terreno. Coração a saltar pela boca, respiração ofegante, medo desolador.

Ocultos na plantação, com os produtos de nosso furto nas mãos trêmulas de medo e de remorso espreitávamos se algo haveria de acontecer. Longo tempo se passou sem que nada houvesse, bebemos os refrigerantes e comemos as bolachas e riamos secretamente, até que uma chuva repentina desabou. Corremos para nos abrigar em uma manjedoura que ficava a poucos passos e dava uma visão ainda mais privilegiada do porão do lado Oeste e um raio ao longe clareou o céu nublado e enegrecido, seguido de um trovão. Neste instante, quase que simultaneamente, nós o vimos. O caldeirão!

Era um caldeirão de ferro pequeno negro como a noite, suspenso sobre um fogão improvisado de duas fileiras de tijolos unidos por argamassa, em duas estacas de ferro com encaixe nas pontas como palmas de mãos pequenas a suspender um eixo que perpassava a alça de transporte do caldeirão. Não havia fogo. Havia, porém um feixe de lenha preparado. A visão era reveladora. Ela era uma bruxa! O olhar de meu irmãozinho, o silencio falava por nós dois. A perplexidade da terrível descoberta. Oque faríamos? Revelar o segredo seria como confessar o furto, a invasão. Éramos medo, angústia e desalento naquele momento.

Alguém se aproximava. Era Dona Clarice que vinha para o porão. Estava envolta em uma capa de chuva e usava um velho chapéu de palha. O rosto mal se via, ocultado pela gola da capa que encontrava com a aba do chapéu. Era ela. Os sapatos pretos, os tornozelos de marfim. Trazia uma bolsa de couro de onde tirou um pote, um livro de capa preta e um maço de ervas. Aproximou-se do caldeirão e espreitou se havia alguém por perto. Desabotoou a capa e ajoelhou-se para acender o fogo. Tirou o chapéu de palha molhado e o sacudiu. Abanou o fogo que lambia o caldeirão por baixo, as labaredas dançando ao ritmo das golfadas de ar de um lado para outro. Raios seguidos de trovões iluminavam a figura sombria envolta na capa molhada, que abanava o chapéu em largas braçadas dançando ao ritmo da tempestade. O clarão do fogo e dos relâmpagos revelavam nitidamente a sua figura. Cantava, ou balbuciava orações? Não se ouvia. Subitamente ela soltou o cabelo e com um movimento de cabeça o jogou para trás e abriu a capa. Estava nua. Jamais a vira desse jeito, com seus cabelos negros e volumosos soltos, tão pouco nua! Remexia o caldeirão com uma colher de madeira e acrescentava aos poucos o ramalhete de ervas enquanto orava, ou cantava. Fazia invocações de santos ou demônios? Imobilizados pelo terror e perplexidade assistíamos a tudo sem movermos um musculo sequer, sem pronunciar palavra, nem mesmo um suspiro de pavor.

O ritual macabro parecia não ter fim. D Clarice agora com os cabelos desgrenhados, a capa entreaberta, feições demoníacas, parecia estar possuída por um espírito do mal. Remexia o caldeirão e abanava o fogo, e cantava. Parecia retirar algo da bolsa que trouxera. Despejou dentro do caldeirão o conteúdo de um frasco pequeno, que parecia conter um pó amarelado como Cury ou enxofre. Derramou ainda um liquido de um segundo frasco, mexeu e uma reação aconteceu. O caldeirão transbordou uma espuma densa e um fumo espesso se ergueu. Era assombroso e fascinante ao mesmo tempo. A fumaça era amarelada e assumia contornos como a silhueta de um anjo. Meu irmão e eu nos olhamos estupefatos. Era a imagem do Arcanjo Uriel. Quando dei por mim, me encontrava sozinho na manjedoura, meu irmão havia sumido, também dona Clarice e a chuva havia cessado. O caldeirão o fogo se extinguiu assim como o medo e o horror que havia presenciado. Havia desmaiado e meu irmão sem saber oque fazer fugira apavorado, aparentemente sem ser notado.

Marcos Antonio Staub

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