04/11/2019

RESPONSABILIDADE CIVIL NO CASO DAS MORTES EM PRESÍDIOS AMAZONENSES EM MAIO DE 2019

RESPONSABILIDADE CIVIL NO CASO DAS MORTES EM PRESÍDIOS AMAZONENSES EM MAIO DE 2019

 

CIVIL RESPONSIBILITYFOR DEATHS IN AMAZONIAN PRISONIN MAY 2019

 

RESUMO: Entre os dias 26 e 27 de maio de 2019, cinquenta e seis internos presos em quatro complexos prisionais no Estado do Amazonas foram assassinados dentro de suas celas por outros internos pertencentes a facção criminosa rival. Ainda que indiretamente o governador do Estado amazonenses imputou culpa pelos fatos à empresa Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda, enquanto o presidente do TJAM afirmou não haver responsabilidade estatal diante da surpresa e inevitabilidade. Investigou-se, neste artigo, a atribuição da responsabilidade civil pela chacina ocorrida, por meio do método hipotético-dedutivo, partindo da hipótese da responsabilidade civil objetiva do Estado, sendo examinada a evolução da responsabilidade do Estado, os editais de licitação, os termos de contratos com a empresa particular co-gestora, os projetos básicos, a legislação pertinente e o posicionamento de autores sobre o tema. Concluiu-se pela confirmação da hipótese proposta.

 

ABSTRACT: Between May 26 and 27, 2019, fifty-six inmates detained in four prison complexes in the state of Amazonas were murdered inside their cells by inmates belonging to a rival criminal faction. Although indirectly the Governor of Amazonas state blamed on the company UmanizzareGestãoPrisional e Serviços Ltda., while the president of the TJAM  stated that there was no State responsibility in the face of surprise and inevitability. In this article, we investigated the attribution of civil responsibility for the massacre that occurred, using the hypothetical-deductive method, based on the assumption of objective civil responsibility of the State, examining the evolution of State responsibility, bidding documents, terms of contracts with the co-managerprivate company, the basic projects, the pertinent legislation and the position of some authors on the subject. It was concluded by the confirmation of the hypothesis proposed.

 

PALAVRAS-CHAVES: Amazonas; responsabilidade civil; terceirização; morte; detentos.

 

KEY WORDS: Amazonas; civil responsability; outsourcing; death; inmates.

INTRODUÇÃO

 

Entre os dias 26 e 27 de maio de 2019, cinquenta e cinco internos encarcerados em quatro diferentes centros prisionais no Estado do Amazonas, sob a cogestão da contratada Umanizzare Gestão Prisional Privada Ltda foram assassinados por prisioneiros integrantes de facção criminosa rival.

A matança orquestrada dentro de presídios amazonenses repercutiu em todo o país em virtude da violência das ações e da semelhança com fato ocorrido no mesmo Estado há pouco mais de dois anos que culminou com a fuga de cento e dezoito internos e a morte de outros cinquenta e seis[1] no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj).

Agora a tragédia não esteve restrita ao Compaj, onde também foi contabilizado dezessete mortos, tendo se expandido para outras três unidades prisionais, Instituto Penal Antônio Trindade (IPAT), Unidade Prisional do Puraquequara (UPP) e Centro Detenção Provisória de Manaus - Masculino (CDPM1), respectivamente com vinte e sete, seis e cinco mortos.

Frente à grande repercussão nacional da tragédia, o governador do Estado do Amazonas, Wilson Lima (PSC) fez o seguinte pronunciamento oficial:

 

O contrato com a Umanizzare já está se encerrando e já estamos começando o processo de cotação de preço para contratação de outra empresa para administrar o Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim). Desde o início do ano, estamos trabalhando na formatação de uma licitação para que empresas sejam contratadas para a administração do sistema prisional. Isso leva um tempo e há um processo de transição (AMAZONAS, 28 mai. 2019).

 

Ainda que não tenha afirmado que a Umanizzare Gestão Prisional Privada Ltda tenha alguma responsabilidade frente ao trágico episódico denota-se por meio do pronunciado supracolacionado a insatisfação da Administração Pública, como se acreditasse que os fatos ocorridos tivessem contado com a colaboração, ainda que omissiva da contratada, tanto que o governador afirma que pretende a “contratação de outra empresa para administrar o Compaj”, ainda que, diga-se de passagem, nada impeça a atual administradora de submeter-se ao procedimento licitatório a ser convocado.

A intensa repercussão da tragédia que se repetia em tão curto prazo, fez com que, após a reunião do Gabinete de Crise do Sistema Prisional que contou com a presença de representantes dos poderes Judiciário e Legislativo, Ministério Público do Estado Amazonas, Defensoria Pública do Estado do Estado do Amazonas e Ordem dos Advogados do Brasil, o Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJAM), Desembargador Yedo Simões, viesse a afirmar:

Aconteceu dentro das celas, sem nenhuma possibilidade de intervenção imediata. A intenção dos internos não era fazer reivindicação, não era algum pedido de providência, a questão deles é uma disputa interna, é uma situação atípica. Isso demonstra que está dando certo o controle feito pelos órgãos de segurança do Estado, que tem conduzido isso de uma forma muito responsável (AMAZONAS, 28 mai. 2019).

 

O pronunciamento do Presidente do eg. TJAM advoga em prol de abstrata e eventual excludente de ilicitude fundada em caso fortuito que merece maior exame.

Diante dos pronunciamentos das referidas autoridades em veículos oficiais, pretende-se investigar e opinar quanto à responsabilização civil pelas indenizações decorrentes dos danos causados pelos fatos ocorridos nas dependências dos centros prisionais Compaj, IPAT, UPP e CDPM1 ocorridos nos dias 26 e 27 de maio de 2019.

Buscando respostas para o problema apresentado, parte-se da hipótese de que a responsabilidade pelos danos causados é do Estado do Amazonas, que deve responder objetivamente, ainda que não tenha contribuído diretamente para a ocorrência do dano, ressalvado o direito de regresso, se comprovado dolo ou culpa de terceiros capaz de contribuir para o resultado.

A hipótese foi testada utilizando método hipotético-dedutivo, sendo observado inicialmente o cenário amplo sobre o tema, propondo a sua conversão à singularidade do problema por meio do levantamento bibliográfico atinente ao tema, assim como a análise dos editais de licitação publicados pelo Estado e vencido pela Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda.; os termos de contratos nos 018/2014-SEJUS; 002/2014-SEJUS; 020/2013-SEJUS; 003/2014-SEJUS e projetos básicos, com o objetivo de compreender a relação jurídica existente entre o Estado do Amazonas e a pessoa jurídica de direito privado contratada, para fixar parâmetros gerais a determinar, especificamente, a responsabilidade por danos causados, assim como a possibilidade de eventual exclusão de ilicitude em virtude de suposto caso fortuito.

A pesquisa foi divida em três partes, sendo a primeira direcionada à evolução das Teorias sobre a responsabilidade extracontratual do Estado por danos causados a terceiros, em virtude de suas atividades frente ao ordenamento jurídico nacional; na segunda parte, será analisada a natureza da relação jurídica entre o Estado do Amazonas e a pessoa jurídica de direito privado Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda.; na terceira e última parte, examinar-se-á a responsabilidade civil do Estado do Amazonas pelos danos causados a terceiros provenientes dos homicídios praticados em celas por detentos e a possibilidade de exclusão de ilicitude diante da impossibilidade de do estado impedir os acontecimentos.

 

1 EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO NO BRASIL

 

Restrito ao problema proposto cumpre ressaltar que o vínculo jurídico entre Estado e prisioneiro é extracontratual, em sentido restrito, oposto às relações oriundas dos contratos da Administração, e cuja responsabilidade “passou por processo mutativo na medida da evolução da sociedade e do Estado” (FARIA, 2015, p. 569).

Coerente com a Teoria do contrato social de Thomas Hobbes (2003, p. 148-149), que idealizava a instituição do Estado absolutista no momento em que determinada multidão de homens pactuou, majoritariamente, entre seus membros, condições de representação e acatamento incondicional a todos os atos e decisões do(s) representante(s), como se próprios dos representados e, portanto, inquestionável, foi desenvolvida a Teoria da irresponsabilidade do Estado frente aos danos causados a terceiros (DI PIETRO, 2018, p. 888-889).

Adverte Edimur Ferreira de Faria (2015) que o poder absoluto do Monarca, que se confundia com o próprio Estado, possui origem também na Teoria da divindade, segundo a qual o Rei seria o representante de Deus na Terra, sendo inconcebível o questionamento de seus atos, isso porque, “[...] o Rei não erra, não faz o mal ou, ainda, o que agrada ao Príncipe tem valor de lei” (FARIA, 2015, p. 570).

Sob tal estigma, seria inimaginável conceber a possibilidade do Estado indenizar o indivíduo por eventual dano material ou moral que viera a ser vítima em virtude de ação estatal, seja ela comissiva ou omissiva.

Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 1018) afirma que no período da irresponsabilidade estatal existiam leis a proteger terceiros perante o comportamento unilateral do Estado, quando presentes regras específicas a disciplinar a responsabilidade do Estado por danos causados a terceiros e também a responsabilidade de agentes estatais por danos provocados quando no exercício de suas atribuições, porém, tais legislações eram apresentadas como excepcionalidades.

Observe-se que o digitado autor, ao tratar a irresponsabilidade estatal como princípio, analisa o assunto em uma perspectiva prévia, que admite exceções posteriores incapazes de invalidar a proposição orientadora que funciona como fundamento geral, justificando assim o posicionamento que afirma a irresponsabilidade do Estado e, ao mesmo tempo, expõe exceções ao princípio proposto.

Compreendendo como Teoria e não como princípio, ainda que o Estado se portasse de forma irresponsável frente aos danos que, porventura, provocasse a terceiro, deveria manter a ordem pública e o bem-estar geral, impondo a vontade do Soberano a todos, sem, contudo, haver submissão de si mesmo às suas próprias decisões (MEDAUAR, 2003, p. 21).

A evidente incongruência entre a imposição de padrões e a não submissão a estes pelo próprio Estado trouxe instabilidade ao Antigo Regime, sendo combatida a Teoria da irresponsabilidade “por sua evidente injustiça; se o Estado deve tutelar o direito, não pode deixar de responder quando, por sua ação ou omissão, causar danos a terceiros, mesmo porque, sendo pessoa jurídica, é titular de direitos e obrigações” (DI PIETRO, 2018, p. 889).

Com a queda do Antigo Regime e a ascensão do Estado de Direito, duas Teorias sobre a responsabilidade civil extracontratual do Estado surgiram no século XIX: a Teoria civilista e a Teoria publicista.

Na Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, não houve previsão de responsabilidade civil extracontratual direta do Estado por danos provocados a terceiros, porém, em seus arts. 156 e 179, reconhecia a responsabilização pessoal dos empregados públicos pelos abusos e omissões praticadas no exercício da função, prevendo ainda a completa irresponsabilidade pessoal do Imperador, conforme art. 99 da mesma Constituição. O Estado, portanto, não era responsável, mas garantia à vítima o direito de postular indenização contra o empregado público causador do dano.

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, também seguiu a mesma orientação da Constituição anterior, agora em seu art. 82, que imputava ao ofendido o ônus probatório relativo ao abuso ou omissão, culposa ou dolosa, de agente público, não excluindo mais o chefe do Executivo, capaz de causar dano a terceiro passível de reparação civil.

Adverte Maria Sylvia Zanella Di Pietro que, no Brasil, jamais se admitiu a Teoria da irresponsabilidade, pois, no período de vigência das referidas Constituições, existiam “leis ordinárias prevendo a responsabilidade do Estado, acolhida pela jurisprudência como sendo solidária com a dos funcionários; era o caso dos danos causados por estrada de ferro, por colocação de linhas telegráficas, pelos serviços de correio” (DI PIETRO, 2018, p. 892).

A leitura ampla do ordenamento jurídico realizado pela referida autora, portanto, não restrita ao texto constitucional, parece correta e suficiente a afastar a conclusão segundo a qual vigorou no Brasil a Teoria da irresponsabilidade do Estado por danos causados a terceiros em virtude de previsão legal expressa, ainda que excepcional, sobre o tema, como se colhe das normas capitaneadas no Decreto nº 1.930, de 26 de abril de 1857 e Decreto nº 9.417, de 25 de abril de 1885, que tratam dos danos causados por estradas de ferro a terceiros; assim como no Decreto nº 1.663, de 30 de janeiro de 1894, e disciplina a reparação de eventuais prejuízos decorrentes de colocação de linha telegráfica; e também dos Decretos nº 1.692-A, de 10 de abril de 1894 e nº 2.230, de 10 de fevereiro de 1896, que tratam dos danos que possam causar os serviços de correios.

Examinando os instrumentos normativos acima identificados, sabe-se que estavam direcionados à satisfação de contingências gerenciadas pelo Estado, sendo, nesse caso, atos de gestão, “no sentido de que não são essenciais para a existência do Estado, mas este, não obstante, as realiza para satisfazer necessidades sociais, de progresso, bem--estar, e cultura” (CAHALI, 2007, p. 22), sendo forçoso concluir que a responsabilidade do Estado estava condicionada à sua natureza.

Nessa concepção, a responsabilidade por dano a terceiro seria possível quando praticado ato de gestão, tido este como exceção frente aos atos impostos a indivíduos, capaz de sacrificar-lhes direitos, impor-lhes obrigações em benefício da coletividade ou interesse público típicos do Estado, denominado ato de império, sobre o qual pairava a irresponsabilidade.

Assim, tem-se que a Teoria da irresponsabilidade jamais foi aceita no Brasil em virtude da existência de normas infraconstitucionais que atribuíam, excepcionalmente, responsabilidade direta ao Estado pelo dano causado a terceiros, algo próximo da Teoria civilista da responsabilidade do Estado por danos extracontratuais em uma perspectiva teórica.

Contudo, com a edição do Código Civil, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, tanto a Teoria da irresponsabilidade como o princípio da irresponsabilidade do Estado pelo dano causado a terceiro foram fulminadas, isso porque as pessoas jurídicas de direito público passaram a ser civilmente responsáveis por todos os atos de seus representantes que, nessa qualidade, viessem a causar danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao Direito ou faltando ao dever previsto em lei, sendo assegurado, em todo caso, o direito regressivo a ser exercido pelo Estado contra os causadores do dano.

O Código Civil de 1916 adotou o princípio da imputação volitiva, corolário da Teoria do órgão, em virtude da determinação de que toda atuação do representante público deve ser imputada ao órgão que ele representa e não à sua pessoa, admitindo, assim, a responsabilidade civil direta ao Estado.

Contudo, a imprecisão do Código Civil de 1916 fomentou duas Teorias acerca da responsabilidade, subjetiva (civilista) ou objetiva (publicista) (DI PIETRO, 2018, p. 889-892), até a edição da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, que acolheu o princípio da responsabilidade solidária entre funcionário público e o poder público e, por conseguinte, a responsabilidade subjetiva.

Com a promulgação da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, a responsabilidade do Estado por danos causados a terceiros, que era subjetiva, passou a objetiva, ou seja, o poder público passou a responder diretamente pelo dano causado ao terceiro, independentemente de culpa, respondendo o funcionário público em ação regressiva caso tenha agido com culpa.

Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público foi estendida também à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços públicos, mantendo a possibilidade de ação de regresso contra o agente público que agir com culpa ou dolo.

A Constituição da República substituiu também a expressão “funcionário público”, presente nas Constituições anteriores, por “agentes públicos” (BRASIL, 1988), termo mais abrangente por compreender todas as categorias de pessoas naturais que, em decorrência de vínculo jurídico, prestam serviços aos entes federados, nas atividades administrativas, legislativas, judiciárias, segurança pública e de defesa, em todos os cargos, postos e níveis.

A Constituição de 1988, ao estabelecer o princípio da responsabilidade direta e objetiva do Estado, assim como das pessoas de direito privado prestadoras de serviços públicos por danos causados a terceiros estabeleceu critérios cumulativos para que se declare a responsabilidade estatal, cabendo à vítima comprovar apenas dano e nexo causal.

Ao aderir à Teoria da responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito público e de direito privado prestadora de serviços públicos, a Constituição de 1988 reconheceu em seu art. 37, § 6º, a subteoria fundada no risco do serviço ou risco administrativo que admitem excludentes e atenuantes do nexo causal, enquanto no art. 21, XXIII, d, por sua vez, acolheu, excepcionalmente, a subteoria do risco integral que atribui à União a responsabilidade pela reparação do dano causado a terceiros, afastando a possibilidade de alegação direcionada às excludentes de causalidade (DI PIETRO, 2018, p. 912).

O Código Civil de 2002, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, repete, em seu art. 43, a previsão constitucional prevista no § 6º do art. 37 da Constituição, regra geral, deixando, contudo, de estender a obrigação às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos[2], enquanto a Lei nº 10.309, de 22 de novembro de 2001 e Lei nº 10.744, de 09 de outubro de 2003 prevêem, excepcional e especificamente, a responsabilidade objetiva integral da União por danos a terceiros resultantes de atentados terroristas ou atos de guerra contra aeronaves de empresas aéreas brasileiras ou eventos correlatos, contra aeronaves de matrícula brasileira operadas por empresas também brasileiras de transporte aéreo público, excluídas empresas de táxi aéreo.

A evolução legislativa brevemente descrita demonstra o esforço em promover a distribuição equitativa do ônus decorrente da atividade estatal que, invariavelmente, apresenta riscos, sendo flagrante a atual distância entre a Teoria da irresponsabilidade estatal inicialmente abordada e a atual Teoria da responsabilidade objetiva aplicada não apenas ao Estado, mas às demais pessoas jurídicas de direito público e também às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos.

Contudo, mesmo prevista explicitamente há mais de oitenta anos, em cinco[3] Constituições sucessivas e também em dispositivos infraconstitucionais, a responsabilidade extracontratual do Estado por danos causados a terceiros ainda causa controvérsia.

 

2 NATUREZA DO VÍNCULO JURÍDICO EXISTENTE ENTRE O ESTADO DO AMAZONAS E A UMANIZZARE GESTÃO PRISIONAL E SERVIÇOS LTDA.

 

Em pronunciamento oficial o governador do Estado do Amazonas, Wilson Lima (PSC), pressionado em face da gravidade dos fatos, declarou que providencias já estariam sendo tomadas, dentre as quais a decisão de não aditar o termo de contrato firmado com a Umanizzare Gestão Prisional Privada Ltda relativo aos serviços prestados no Compaj, além do pedido de colaboração junto ao Ministério da Justiça para oferecimentos de homens para integrar a equipe precursora da Força Tarefa de Intervenção Penitenciária no Estado (AMAZONAS, 2019, p s/p).

Ainda que não tenha afirmado categoricamente que a Umanizzare Gestão Prisional Privada Ltda possua alguma responsabilidade sobre o fatalidade ocorrida é possível colher do teor da declaração a intenção de se atribuir ou compartilhar responsabilidade junto à contratada, como também foi a postura do Executivo ao tratar da tragédia ocorrida em 2017[4], sendo necessário verificar qual a natureza do vínculo jurídico existente entre o estado do Amazonas e a Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda.

O Complexo Penitenciário Anísio Jobim, foi inaugurado em 1982 inicialmente destinado ao recolhimento de apenados em regime semiaberto como estabelecimento agrícola, passando, em 1999, após a inauguração de nova edificação, a receber detentos do regime fechado, com capacidade para abrigar 450 internos[5]. Por sua vez o IPAT, inaugurado em maio de 2006, possui capacidade para 496[6] internos provisórios se tratando de edificação pública, assim como também a UPP, inaugurada em dezembro de 2002, contando com população carcerária de 950[7] internos, e ainda CDPM, inaugurado em abril de 2011, com capacidade de 568[8] internos (SEAP, 2019, p. s/p). Todas as edificações foram construídas pela Administração Pública a quem também cabe a manutenção estrutural.

Em análise aos Termos de contrato firmado entre o Estado do Amazonas, por intermédio da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejus) e a Empresa Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda., os projetos básicos que integram os referidos termos e os editais de licitação, tem-se por afastada tanto a figura do Programa Estadual de Parceria Público-Privada, Lei Estadual nº 3.363, de 30 de dezembro de 2008, como da Parceria Público-Privada, Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, em qualquer de suas modalidades, patrocinada ou administrativa, pois, conforme se infere do § 1º do art. 2º da Lei nacional, a modalidade de concessão patrocinada exige que a remuneração da concessionária se dê por meio de tarifa cobrada dos usuários, garantida também por contraprestação pecuniária do parceiro público[9], sendo, portanto, “chamada de subsidiadas, subvencionadas ou, em alguns casos, de receita ou lucratividade mínima assegurada” (ARAGÃO, 2013, p. 670).

Contudo, conforme cláusula quinta[10] de todos os termos de contratos termo de contrato sob exame (018/2014-SEJUS; 002/2014-SEJUS; 020/2013-SEJUS; 003/2014-SEJUS), a remuneração pelos serviços prestados será arcada, exclusivamente, pelo Estado do Amazonas, razão pela qual, não se trata de concessão especial patrocinada e tampouco concessão comum disciplinada pela Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, principalmente pelo fato de inexistir contraprestação tarifária[11] imposta aos usuários dos serviços prestados.

A argumentação acima, que afasta a concessão especial patrocinada, não havendo compartilhamento de risco entre concessionária e Poder Público, não é suficiente para afastar a concessão especial administrativa, justamente porque, conforme dispõe o § 2º do art. 2º da Lei nº 11.079/2004, nessa modalidade, “não se fala mais sequer em tarifa a ser complementada por verbas do Estado, mas da inexistência tout court de tarifas devidas pelos eventuais usuários dos serviços” (ARAGÃO, 2013, p. 673).

Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2018, p. 396-397), a concessão administrativa se aproxima tanto da terceirização de serviços públicos (art. 10 da Lei nº 8.666/93) como da empreitada (art. 6º, VIII da Lei nº 8.666/93), sem, contudo, se confundir inteiramente com nenhuma delas, pois o art. 2º, § 4º, III, da Lei nº 11.079/2004 veda o fornecimento único de mão de obra, de instalação de equipamentos ou execução de obra pública, sendo indispensável a conjugação entre serviço, instalação ou obra, como também é a semântica estabelecida pelo parágrafo único do art. 1º da Lei estadual amazonense nº 3.363/2008.

A mesma autora afirma, ainda, que a delegação por meio de concessão administrativa restringe-se “apenas a execução material de uma atividade prestada à Administração Pública; esta é que detém a gestão do serviço.” (DI PIETRO, 2012, p. 154), não sendo, dessa forma, transmitida, a que título for, a gestão do serviço público, resumindo-se a atividades operacionais, meio, e não fim.

A Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda., em seu site, apresenta-se como concessionária de serviços públicos de gestão prisional, afirmando ter assumido a cogestão dos do Compaj, IPAT, UPP e CDPM, respectivamente em em 01 de junho de 2014; 11 de novembro de 2013; 15 de julho de 2013, e 15 de outubro de 2013 (UMANIZZARE, 2019). Contudo, após a tragédia com a morte de internos ocorrida em 2019, a concessionária publicou a seguinte nota em seu site, afirmando que:

Nota de Pesar – A Umanizzare lamenta a morte de 55 reeducandos em quatro unidades prisionais do Estado do Amazonas

 

A Umanizzare lamenta a morte de 55 reeducandos em quatro unidades prisionais do Estado do Amazonas. A empresa já criou uma força-tarefa de apoio psicossocial aos familiares.

A Umanizzare trabalha em conjunto com a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária – SEAP no apoio necessário à retomada da normalidade dentro das unidades, no escopo restrito de suas atividades que complementam a atuação do poder público.

A empresa reafirma seu papel de cumprimento das atividades-meio dentro dos presídios, como limpeza, alimentação, assistência material, cursos profissionalizantes, suporte psicológico, social, ocupacional e religioso e atendimento médico, farmacêutico e ambulatorial (UMANIZZARE, 2019a).

Os editais que deram origem aos termos de contrato digitados descrevem como objeto da licitação a prestação de serviço, inexistindo qualquer obrigação relativa ao fornecimento e instalação de equipamentos ou execução de obra pública, vindo, da mesma forma, a dispor a cláusula primeira[12] de todos os instrumentos de contrato firmado pelas partes. Tratando-se exclusivamente de contratação de prestação de serviços sem qualquer instalação de equipamentos ou execução de obra, sendo evidente a ausência de sintonia entre as disposições prescritas no § 2º do art. 2º da Lei nº 11.079/2004 e a relação jurídica entre Estado e a empresa privada.

Ainda, a cláusula terceira, parágrafo terceiro, de todos os Termos de contrato, também deixa explicito o limite da contratação, que não se relaciona à instalação de equipamentos ou execução de obra pública, quando disciplina:

Cláusula terceira - Das outras obrigações da contratada: A CONTRATADA é obrigada a adotar todas as medidas preventivas necessárias para evitar danos a terceiros em consequência da execução dos trabalhos, além das obrigações abaixo discriminadas:

[...]

Parágrafo terceiro: Quando da realização de manutenção predial, equipamentos e de veículos de qualquer natureza, a CONTRATADA, deverá encaminhar ao CONTRATADO, no prazo de 05 (cinco) dias, a contar da conclusão dos serviços, cópia da documentação que comprove a execução dos serviços (cláusula presente em todos os termos de contrato).

Inexistindo qualquer obrigação relativa ao fornecimento e instalação de equipamentos ou execução de obra pública, associada à prestação de serviços, fica afastada a também concessão especial administrativa, por não se enquadrando na hipótese da lei de regência da espécie.

O prazo de exploração do serviço praticado no termo de contrato firmado pelo Estado do Amazonas e a empresa Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda. Para cogestão do Compaj era de trinta meses[13], enquanto das demais unidades prisionais sob exame era de doze meses[14], lapso incompatível com as prescrições contidas no art. 2º, § 4º, II e art. 5º, I, ambos da Lei nº 11.079/2004 que preconiza prazo mínimo de cinco anos.

Também não se observa nos termos de contrato, em exame, a determinação exigida pelo art. 20, caput, da Lei estadual amazonense nº 3.363/2008, relativa à indispensável indicação, nos instrumentos convocatórios, da expressa submissão da licitação às normas do Programa Estadual de Parceria Público-Privada, não restando dúvida acerca da inaplicabilidade de seus dispositivos na relação jurídica firmada pelas partes.

Assim, temos que a natureza do vínculo jurídico entre a Administração Pública e a empresa contratada não perfaz parceria público-privada, restando observar a possibilidade de terceirização de serviço com a finalidade de se apurar eventual responsabilidade.

A cláusula primeira de todos os termos de contrato não compreende o fornecimento de mão de obra, mas de serviço, compatibilizando-se com o inciso II do art. 37 da Constituição da República de 1988 e também com o disciplinado no art. 6º, inciso II, da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993.

A prestação de serviço em exame se dá por conta e risco econômico da empresa particular mediante remuneração prefixada, em regime de execução por preço global, como se infere da cláusula segunda[15] presente em todos os Termos de contrato examinados.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2018, p. 1.051) argumenta que o prestador de serviço é simples executor material para o Poder Público, não lhe sendo transferido qualquer poder, não existindo, portanto, nenhuma relação direta entre o prestador de serviço e o usuário do serviço público, o qual compete ao Estado, ou ao concessionário, ou permissionário, na forma do art. 175 da Constituição da República de 1988 e não ao terceirizado, concluindo que a responsabilidade é, portanto, exclusiva do Poder Público pelos serviços que presta indiretamente, ainda que o contrato entre a pessoa jurídica de direito privado e o Poder Público se dê de forma ilícita, pois o agente é considerado público para fins de responsabilidade civil do Estado.

Contudo, o parágrafo primeiro[16] da cláusula primeira e também o caput da cláusula terceira[17] de todos os termos contratuais examinados, bem como os respectivos itens 3.1[18], 3.2[19] e 3.2.2[20] do projeto básico que compõe o referido termo, impõem obrigações à terceirizada cuja natureza perfaz a finalidade do serviço público prestado diretamente aos usuários/detentos, fato que distancia a espécie, locação de serviços disciplinada pelo art. 10, II, da Lei nº 8.666/1993 e se aproximando da concessão por envolver gestão e execução material, ainda que sobre temas indelegáveis, conforme estabelece o art. 83-B da Lei de Execução Penal (LEP), Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984.

Assim, o contrato existente entre o Estado do Amazonas e a Pessoa Jurídica de Direito privado não se ajusta, perfeitamente, à situação de locação de serviços por ser prestada diretamente a usuários; não se amoldando também ao regime de concessão comum ou especial patrocinado, por não haver tarifa a ser paga pelo usuário; e também não se compatibiliza com a concessão especial administrativa por não haver execução de obra ou fornecimento e instalação de bens conjuntamente com a prestação de serviços indireta.

Mesmo que a classificação do instrumento jurídico se apresente temerosa ao conjugar terceirização de serviços e concessão especial administrativa, bem como delegar atribuições indelegáveis a terceiros, contrariando frontalmente dispositivos legais, essa situação não tem o condão de afastar responsabilidade estatal decorrente do dever de incolumidade do preso, função disciplinar e de controle de rebeliões em presídios, todos indelegáveis.

 

3. RESPONSABILIDADE CIVIL NO CASO DAS MORTES EM PRESÍDIOS AMAZONENSES

 

Ainda que a natureza do vínculo jurídico entre o Estado do Amazonas e a Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda empresa assuma contornos peculiares, gris, a responsabilidade civil aquilina perante terceiros permanece dirigida ao Estado estando regida pelo art. 37, § 6º, da Constituição da República, primeiramente por inexistir relação jurídica entre as vítimas e a prestadora de serviço, e depois, por não ter sido transferida, validamente, o poder de polícia destinado à disciplina e contenção de rebeliões, prerrogativa indispensável ao exercício do poder de limitação de atividades em benefício do interesse público.

Em julgamento proferido em 10 de novembro de 2009, no recurso especial nº 817.534/MG, da relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade de delegação do poder de polícia consistente nas atividades de consentimento e fiscalização, sendo vedada, contudo, a transferência de execução de atividades relacionadas à legislação e sanção, cuja execução e responsabilidade pertencem ao Poder Público.

Tratando-se de responsabilidade civil do Estado, resta observar que os autores dos homicídios ocorridos dentro dos centros prisionais não eram  agentes estatais, mas internos pertencentes à facção criminosa diversa das pessoas que vitimaram, ou seja, o dano imposto não se deu diretamente por ato comissivo de agentes públicos.

Portanto, a responsabilidade a ser investigada compreende eventual omissão do Estado que tenha concorrido para o resultado danoso, assim como os elementos necessários à sua responsabilização, diante daquilo que dispõe o art. 37, § 6º, da Constituição da República de 1988.

A submissão da Administração Pública ao princípio da legalidade, estabelecido no caput do art. 37 da Constituição da República de 1988, impõe aos agentes que ajam ou deixem de agir em estrita obediência aos termos legais, não se podendo exigir algo diverso daquilo que a lei impõe, sob pena de ofensa ao referido dispositivo constitucional.

O princípio da legalidade dirigido ao Poder Público conduz à conclusão segundo a qual a responsabilidade estatal por omissão está condicionada ao descumprimento de determinada imposição legal específica, não se tratando, portanto, de omissão fática, mas exclusivamente jurídica.

Diante da assertiva, Marçal Justen Filho (2014, p. 1339-1340) compreende dois grupos, a que denomina: ilícito omissivo próprio e ilícito omissivo impróprio; no primeiro, a norma prevê o dever de atuação e a omissão corresponde à infração direta ao dever jurídico, sendo determinada e específica tanto a obrigação como a inação, portanto comparável ao ato comissivo e, por consequência, atrai a responsabilidade objetiva. Por outro lado, o ilícito omissivo impróprio é identificado quando a norma não prescreve uma ação a ser realizada, mas determinado resultado danoso a ser evitado, cujo acontecimento por ausência de cautela constitui ilícito, sendo indispensável, para tanto, atentar para a investigação da culpa em virtude da falta do serviço.

Entretanto, a omissão que caracteriza a falta do serviço já contém, em seu interior, o elemento subjetivo da culpa, não sendo atribuído ao ofendido o ônus de prova que, nesse caso, é dirigido ao Estado (DI PIETRO, 2018, p. 899).

Atento às considerações apontadas, Fernando Nascimento dos Santos (2014, p. 51) identifica o dever especial e específico do Estado em manter a incolumidade física e moral do preso estabelecido pelo art. 5º, XLIX, da Constituição da República de 1988, diante da imposição ao cárcere, ambiente potencialmente perigoso, devendo o Estado agir cautelosa e preventivamente com a finalidade de evitar danos em face do risco imposto ao detento. O inciso III do art. 83-B da LEP atribui de forma singular e indelegável ao Estado o dever de controlar rebeliões, atribuição esta que, adicionada ao dever específico de incolumidade, direciona à inquestionável conclusão acerca da responsabilidade objetiva do Estado em indenizar familiares e pessoas próximas dos falecidos pelo dano causado em face do descumprimento do dever especial e restrito trazido no inciso XLIX do art. 5º da Constituição da República de 1988, ao qual se omitiu.

O egrégio TJAM já teve a oportunidade de se manifestar acerca da responsabilidade objetiva do Estado sobre homicídios praticados por companheiros de cela sendo pacífico o entendimento da responsabilidade objetiva[21] diante do dever de incolumidade[22].

O dever de incolumidade do preso atribuído ao Estado possui força normativa nos termos do § 1º do art. 5º da Constituição, não se apresentando como mera promessa submissa aos fatores reais de poder, mas a exigir, também, postura preventiva dirigida ao especial dever de proteção da integridade física e moral daquele em situação de encarceramento.

Os danos apurados durante os assassinatos, a qual o Estado do Amazonas tinha o dever indelegável de evitar, assim como a infração ao dever específico de incolumidade do preso constituem elementos a condicionar a responsabilidade do Estado do Amazonas em indenizar os danos sofridos, nos termos do § 6º do art. 37 da Constituição da República de 1988, quando ausentes situações excludentes e ressalvado o direito de regresso contra a parceira, se ela tiver agido com dolo ou culpa.

A falha ao dever jurídico específico, quando passível de ser evitada a lesão, mediante fiscalização capaz de coibir a entrada de materiais lesivos no sistema prisional e controle ágil e enérgico de rebelião, impõe o dever de indenizar pelo dano, quando não for possível afastar causas anteriores ou concomitantes exclusivamente determinantes para o resultado, causas excludentes cujo ônus probatório recai sobre o Poder Público, como sedimentado no julgamento da repercussão geral no Recurso Extraordinário com Agravo nº 638.467 do Rio Grande do Sul, de relatoria do Ministro Luiz Fux, publicado em 1º de agosto de 2016.

Assim, é importante frisar que a responsabilidade estatal ainda que objetiva não comporta risco integral, sendo admitida, como assevera Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a demonstração pelo Estado de “que agiu com diligência, que utilizou os meios adequados e disponíveis e que, se não agiu, é porque a sua atuação estaria acima do que seria razoável exigir” (DI PIETRO, 2018, p. 899)

Conforme colacionado acima, o Presidente do egrégio TJAM, Desembargador Yedo Simões, afirmou que diante da atipicidade do fato o Estado teria sido surpreendido o que impossibilitaria qualquer ação capaz de impedir os acontecimentos (AMAZONAS, 28 mai. 2019).

Todavia, é importante destacar que o Estado do Amazonas é quem detém a função de dirigir, chefiar e coordenar o sistema penitenciário, bem como todas as atividades que exijam o exercício do poder de polícia dentro do sistema prisional e, salvo melhor juízo, o Estado falhou em sua dupla obrigação de evitar e controlar a rebeliões, valendo destacar que tragédia muito semelhante já havia ocorrido há menos de um ano em Manaus, quando em janeiro de 2017, cinquenta e seis detentos foram brutalmente mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim por facção criminosa rival que disputam território do tráfico de drogas e armas no Estado (REZENDE; FARIA, 2018, p. 456).

Novamente a tragédia se repete no mesmo complexo penitenciário e em mais três unidades (IPAT, UPP e CDPM), pelas mesmas facções e pelo mesmo motivo, não sendo razoável que o Estado não soubesse da potencialidade de novas ações quando declarada a guerra entre os rivais há mais de um ano, possibilitando o contato entre internos pertencentes a grupos criminosos adversário.

Assim, a omissão do Estado em promover a incolumidade do custodiado repercute em sua responsabilidade objetiva não podendo ser afastada por fato imprevisível em virtude de sua grande previsibilidade diante de acontecimentos pretéritos e potencialidade do risco no caso dos homicídios registrados no COMPAJ, IPAT, UPP e CDPM em março de 2019.

 

Conclusões

 

Com a queda do Antigo Regime e o estabelecimento do Estado de Direito, não se admite mais a irresponsabilidade do Estado diante de suas ações ou omissões capazes de causar danos a terceiros, vindo a Constituição da República de 1988 a disciplinar em seu art. 37, § 6º, a responsabilidade objetiva do Estado por danos que seus agentes, nessa qualidade, vierem a causar a terceiros, quando ausentes causas excludentes de ilicitude.

O vínculo jurídico existente entre o Estado do Amazonas e a empresa Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda instrumentalizado por meio dos contratos nos 018/2014-SEJUS; 002/2014-SEJUS; 020/2013-SEJUS; 003/2014-SEJUS e projetos básicos apresentam situação jurídica tormentosa por justapor elementos característicos e também incompatíveis da terceirização de serviços e a concessão especial administrativa.

Porém, em todo caso, a dificuldade em determinar a natureza do vínculo jurídico não afasta a responsabilidade civil do Estado do Amazonas em indenizar o dano causado, justamente em virtude da impossibilidade de delegação de atividades relacionadas ao poder de polícia de impor sanções, imprescindíveis à imposição de disciplina e controle de rebeliões em presídio, cuja execução e responsabilidade pertencem, exclusivamente, ao Poder Público, salvo causas excludentes de ilicitude anteriores ou concomitantes exclusivas e assegurado o direito de regresso em caso de dolo ou culpa.

A incolumidade moral e física garantida aos presos pela Constituição da República em seu art. 5º, XLIX constitui dever especial e específico do Estado decorrente da natureza da atividade e do risco administrativo impostos àqueles mantidos na situação de cárcere, sendo atribuída ao Estado a responsabilidade objetiva pelos danos causados em virtude do ilícito omissivo, caracterizado no caso dos homicídios ocorridos no Instituto Penal Antônio Trindade (IPAT), Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ), Unidade Prisional do Puraquequara (UPP) e Centro de Detenção Provisória de Manaus - Masculino (CDPM1), pelo descumprimento de obrigação específica de incolumidade com ações preventiva e repressora suficiente a assegurar o dever jurídico, gravado pelo conhecimento prévio das autoridades acerca da guerra declarada de facções criminosas rivais no Estado que inclusive protagonizaram a pouco mais de um ano cenas brutais de assassinato no Complexos Penitenciários citado.

 

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