Resenha do livro ' Sobre o Artesanato Intelectual e outros ensaios’ de C. W. Mills
Resenha do livro 'Sobre o Artesanato Intelectual e outros ensaios’ de C. W. Mills[i]
Emerson Benedito Ferreira[ii]
Charles Wright Mills (Waco, Texas, 28 de agosto de 1916 — Nyack, Nova Iorque, 20 de março de 1962). Mestre em artes, filosofia e sociologia pela Agricultural and Mechanical College of Texas, instituição que por sua rigidez, influenciaria sua vida e obra, e tornaria sua personalidade rebelde. Em 1941, doutorou-se em sociologia e antropologia pela Universidade de Wisconsin.
Começou por lecionar na Universidade de Maryland e em 1945 mudou para a Universidade de Columbia onde permaneceu até ao momento da sua morte. Inobstante ter falecido com apenas 45 anos, Mills desafiou ideias e preconceitos sociais e se firmou como intelectual inovador no âmbito da sociologia. Em “A Imaginação Sociológica” de 1959, o autor criticaria a disposição de muitos em manusear evidências históricas no intuito de produzirem "coletes de forças trans-históricos", bem como, combateu o que chamaria de “Grã Teoria”, uma barreira para a evolução das ciências humanas, que seria uma teoria sistemática da natureza do homem e da sociedade. Em outras palavras, as ciências humanas ao voltar sua atenção para revelações abstratas da sociedade se esquecem de lidar com os grandes problemas socais. O autor acreditava que a sociologia deveria ser apresentada ao grande público, com o intelectual mantendo uma postura crítica e reflexiva perante a realidade de sua época, ou seja, “é melhor (...) que um estudioso ativo relate como está se saindo em seu trabalho do que ter uma dúzia de codificações de procedimento estabelecidas por especialistas que, o mais das vezes, nunca fizeram muitos trabalhos importantes” (MILLS, 2009, p.22).
Mills se destacou por possuir uma postura crítica e independente dos grandes centros. Este segmento de seu caráter transparece claramente na obra “A Elite do Poder” de 1956, onde trata das estruturas do poder nos Estados Unidos pós-guerra. O autor coloca como principais esferas da sociedade as políticas, industriais e militares, todas independentes, e aclara que o país é dominado por uma única elite composta por dirigentes destas esferas.
Suas principais obras foram: “O Poder dos Sindicatos (1948)”, “As Classes Médias na América do Norte (1951)”; “Carácter e Estrutura social, em colaboração com H. Gerth (1953)”; “A Elite do Poder (1956)”; “A Imaginação Sociológica (1959)”; “Escuta Yankee (1960)”; “Poder, política, povo (1963)” além de “Sobre o Artesanato Intelectual”, obra aqui debatida[iii].
Nesta valiosa obra, Mills explana suas ideias como se estivesse confeccionando uma cartilha de estudos para um aluno aprendiz das ciências humanas. “Este é necessariamente um relato pessoal, mas escrito na esperança de que outros, em especial, aqueles que estão iniciando um trabalho independente, o tornem menos pessoal através dos fatos de sua própria existência” (2009, p. 21).
Então, eis o colhimento dos pontos principais da obra:
Sobre conhecimento, o autor disserta que:
é uma escolha tanto de um modo de vida quanto de uma carreira; quer o saiba ou não, o trabalhador intelectual forma-se a si próprio a medida em que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício; para realizar suas próprias potencialidades (...) MILLS, 2009, p. 22).
Mills proclama que o estudioso das ciências humanas, especialmente das ciências sociais, deve usar a sua experiência de vida em seu trabalho intelectual. Este artesanato, segundo o autor, é feito dentro de cada um, usando as influências de seu passado em trabalhos futuros, enfim, elevar cada experiência em nível de reflexão, um moldar-se a si mesmo como um artesão o faz com suas confecções. Para tanto, Mills aconselha a invenção de um arquivo pessoal:
Uma resposta é que você deve organizar um arquivo, o que é, suponho, a maneira de um sociólogo dizer: mantenha um diário. (...) Num arquivo como eu vou descrever, há uma combinação de experiência pessoal e atividades profissionais (...). Nesse arquivo, você, como artesão, tentará reunir o que está fazendo intelectualmente e o que está experimentando como pessoa (MILLS, 2009, p. 22).
Mills reconhece que estas experiências nas ciências humanas é algo único, particular, individual, que não se repete nunca. É preciso sair do particular e de alguma maneira, levar o conhecimento adquirido e estudado ao campo geral. “Mantendo um arquivo adequado e desenvolvendo assim hábitos auto-reflexivos, você aprende como manter seu mundo interior desperto” (2009, p. 23).
O autor critica a maneira forçada que o intelectual das ciências sociais escreve. Ao contrário do que o autor aconselha, ou seja, adquirir o hábito de escrever pelo menos uma vez por semana, o cientista social só o faz para “pedir dinheiro para uma pesquisa científica” (MILLS, 2009, p. 24), ou seja, não escreve por prazer e sim, dedica-se ás escritas apenas quando obrigado.
O autor dá exemplo de como transformar anotações simples (por ele denominadas esquema tosco), em uma obra. A citação, embora longa, é essencial:
Por exemplo, a primeira coisa que fiz após decidir iniciar um estudo sobre a elite foi elaborar um esquema tosco baseado numa lista de tipos de pessoas que eu queria compreender. (...) escrevi um livro sobre organizações trabalhistas e líderes trabalhistas – um empreendimento politicamente motivado; depois um livro sobre as classes médias -, um empreendimento motivado principalmente pelo desejo de expressar minha própria experiência na cidade de Nova York desde 1945. Logo a seguir, amigos sugeriram que eu completasse essa trilogia escrevendo um livro sobre as classes superiores. (...) eu havia lido Balzac (...) ele se atribuíra de cobrir todas as classes e tipos principais da sociedade de sua época. (...) (MILLS, 2009, p. 27).
Claramente, o autor vai demonstrando como todas as experiências adquiridas no transcorrer dos dias podem ser aproveitadas. Eis o arquivo a que ele se refere. E este trabalho transforma-se em algo artesanal pela constante busca dos termos, palavras, leituras e experiências, transformando-as e construindo o conhecimento. Aliás, todo conhecimento intelectual é um reconhecimento, ou seja, um conhecimento em segunda instância. Ele sai do particular (daquilo que é vivido) e vai para o campo do conceito (geral). Nas palavras do autor:
No presente caso, comecei também a usar minhas observações e experiências diárias. Pensei primeiro em minhas experiências anteriores relacionadas a problemas de elite, depois fui conversar com aqueles que, a meu ver, podiam ter experimentado ou considerado tais questões. De fato, comecei nessa altura a alterar o caráter de minha rotina de maneira a incluir nela (1) pessoas que estavam entre aqueles que eu queria estudar, (2) pessoas em estreito contato com eles e (3) pessoas usualmente interessadas neles de alguma maneira profissional (MILLS, 2009, p.28).
Ademais, Mills orienta que “é tolice projetar um estudo de campo se for possível encontrar a resposta em uma biblioteca” (2009, p. 33). Em outras palavras, não arrombar portas já arrombadas. Ainda, aconselha o uso da palavra simples, abolindo deste modo o rebuscamento excessivo, pois “sei que você concordará que deveria apresentar seu trabalho numa linguagem tão simples e clara quanto seu assunto e seu pensamento sobre ele o permitam” (2009, p. 48).
Estas constantes escritas rebuscadas parecem bem usuais nas ciências humanas, contempla Mills. Mas ele acrescenta que “técnico não significa necessariamente difícil, e certamente não significa jargão” (2009, p. 51). Realça que o sociologuês geralmente é usado “para fazer reivindicações para si mesmo, que o autor está certo, mas não tem certeza do que sabe. Em seguida, Mills recomenda que não se deve parar de pensar cedo demais, e nem se deve pensar pelo resto da vida, “ou você mesmo explodirá” (2009, p. 55).
Em conclusão, o autor assim resume suas recomendações, e aqui são colocadas em síntese:
1 – Seja um bom artesão, evite todo conjunto rígido de procedimentos (...);
2 – Evite a estranheza bizantina de conceitos associados e desassociados, o maneirismo de verborragia (...);
3 – Faça todas as construções trans-históricas que achar que seu trabalho requer, investigue também minúcias sub-históricas (...);
4 – Não estude meramente um pequeno ambiente após outro; estude as estruturas sociais em que os ambientes estão organizados (...);
5 – Perceba que seu objetivo é uma compreensão comparativa completa das estruturas sociais que apareceram e que existem agora na história do mundo (...).
6 – (...) Elabore e reveja continuamente suas idéias sobre os problemas de história, os problemas de biografia e os problemas de estrutura social em que biografia e história se cruzam (...);
7 – (...) tente compreender o homem não como um fragmento isolado, não como um campo ou sistema inteligível em si e por si mesmo. Tente compreender homens e mulheres como atores históricos e sociais, e os modos como a variedade de homens e mulheres são intricadamente selecionados e formados pela variedade das sociedades humanas (...)
8 – Não permita que questões públicas tal como oficialmente formuladas, ou dificuldades tal como privadamente sentidas, determinem os problemas que você tomará para estudar. (...) (MILLS, 2009, p. 56/58).
Neste desígnio, desnecessárias demais palavras.
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MILLS, C. W. Sobre o Artesanato Intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
[i] Trabalho oriundo da disciplina Epistemologia e Educação I, do curso de Mestrado em Educação da Universidade Federal de São Carlos.
[ii] Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Desenvolve investigações vinculadas à linha de pesquisa "Diferenças: relações étnico-raciais, de gênero e etária" e participa do grupo de estudos sobre a criança, a infância e a educação infantil: políticas e práticas da diferença vinculado à UFSCar. É também Advogado, especialista em Direito Educacional e Filosofia da Educação pela FESL.