Resenha do livro 'Relativizando: uma introdução a Antropologia' de Roberto DaMatta
Roberto Damatta graduou-se e fez Licenciatura em História pela Universidade Federal Fluminense (1959 e 1962). Especializou-se em Antropologia Social do Museu Nacional (1960); Mestrado (M.A) e Doutorado (Ph.D) em, respectivamente, 1969 e 1971 pelo Peabody Museum da Universidade de Harvard. Foi Chefe do Departamento de Antropologia do Museu Nacional e Coordenador do seu Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (de 1972 a 1976). É Professor Emérito da Universidade de Notre Dame (USA), onde ocupou a Cátedra Rev. Edmund Joyce, c.s.c., de Antropologia de 1987 a 2004. Atualmente é Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Realizou pesquisas Etnológicas entre os índios Gaviões e Apinayé. Foi pioneiro nos estudos de rituais e festivais em sociedades industriais, tendo investigado o Brasil como sociedade e sistema cultural por meio do carnaval, do futebol, da música, da comida, da cidadania, da mulher, da morte, do jogo do bicho e das categorias de tempo e espaço.
Na obra aqui resenhada, o autor, já em seu início, tenta aclarar a Antropologia como ciência. Para tanto, estabelece uma diferenciação entre ciências naturais (ou da natureza) e ciências sociais (ou humanas).
Destaca que as ciências naturais consagram estudos de fatos simples, com causas de fácil identificação e que poderão facilmente ser isoladas, e partindo de observações, a teoria que dela se origina poderá ser testada várias vezes por diferentes observadores, em locais diversos, o que lhe inflige um caráter objetivo.
Assim, um cientista natural pode presenciar os modos de reprodução de formigas (já que pode ter um formigueiro em seu laboratório), pode estudar os efeitos de um dado conjunto de anticorpos em ratos e pode, ainda, analisar o quanto quiser a composição de um dado raio luminoso (DAMATTA, 2000, p. 18).
Não obstante esta facilidade observativa e de manipulação dos fenômenos das ciências naturais, a aplicabilidade de suas teorias é carregada de dificuldades, pois “na maioria dos casos, o cientista natural resolve um problema simplesmente para criar tecnologias indesejáveis e, a longo prazo, mortíferas e daninhas ao próprio ser humano” (p. 20).
Em contrapartida, Damatta nos mostra que as ciências humanas trabalham com fenômenos mais complexos, com causa e determinação complicadas. Quase sempre é improvável ser criada uma teoria que se digne a ser a única causa de determinado fenômeno, bem como, inexiste a possibilidade de compartilhamento deste fenômeno em locais distintos com o mesmo resultado, pois eles não podem ser produzidos da mesma forma que ocorreram.
De fato, como poderemos nós reproduzir a festa do aniversário do Serginho? Ou o ritual do carnaval que ocorreu em 1977 no Rio de Janeiro? Mesmo que possamos reunir os mesmos personagens, músicas, comidas, vestes e mobiliário do passado, ainda assim podemos dizer que está faltando alguma coisa: a atmosfera da época, o clima do momento (DAMATTA, 2000).
Com efeito, estes eventos que não poderão mais ser reproduzidos com as mesmas características e intensidade de outrora, ou seja, que já ocorreram, mas, que não estão mais ocorrendo, passam então a ser objeto de estudo das ciências humanas. Eles não gerarão fontes tecnológicas ou ideológicas passíveis de mudanças drásticas na população em curta escala como os fazem os fenômenos advindos das ciências naturais, pelo contrário, suas reconstruções são incompletas e dependentes de documentos, de observações, e mais ainda, serão dependentes do ponto de vista subjetivo e da bagagem de quem os observará (experiências de vida, educação, preconceitos, interesses).
(...) temos de enfrentar a nossa própria posição, história biográfica, educação, interesses e preconceitos (...). Assim, classes de homens diversos observaram fatos e os registraram de modo diverso, segundo os seus interesses e motivações; de acordo com aquilo que julgavam importante. (DAMATTA, 2000, p. 22).
Assim, os resultados das ciências ditas humanas não possuem a mesma dimensão das produzidas pelos fenômenos das ciências naturais. A imediatividade reacional da população ao confrontar com as inovações tecnológicas (aquisição de um computador) se contrapõe a lentidão pelo aceite de novos valores simbólicos ou políticos (inserção de ideologias anti-homofóbicas).
Em continuidade, o autor contempla uma diferença fundamental entre as ciências naturais e sociais, ou seja, na primeira o objeto de estudo é completamente diverso do pesquisador. Damatta nos traz o exemplo das baleias explicando que ao estudá-las, o pesquisador nunca saberá de fato o que sente uma baleia, pois ele nunca será um ser daquela espécie. Neste mesmo raciocínio, pode-se teorizar sobre elas, pois elas nunca contestarão as teorias. É um conhecimento objetivo e, portanto, externo. Já nas ciências sociais, “tanto o pesquisador quanto sua vítima compartilham, embora muitas vezes não se comuniquem, de um mesmo universo das experiências humanas” (2000, p. 23). Assim, observando uma cultura diversa, percebe-se á própria cultura. Desta comparação, relativiza-se o sistema a que pertencemos.
Damatta dá continuidade dividindo a Antropologia em três esferas de interesse: Antropologia Biológica, Arqueologia e Antropologia Cultural. A primeira esfera, em poucas palavras, diz respeito à visão do homem como um ser biológico, com ênfase em sua forma física, sua carga genética, sua forma de evolução e como se interage com os demais seres vivos. “Hoje, o especialista em Antropologia Biológica dedica-se á análise das diferenciações humanas utilizando esquemas estatísticos (...)” (2000, p. 28). Já a Arqueologia concentra-se em estudos de sociedades pretéritas, e para tanto, fazem uso de pistas deixadas por estas sociedades, como “pedaços de cerâmica, cemitérios milenares, cacos de pedras e restos de animais (...)” (2000, p. 29). Estes resíduos permitirão ao pesquisador deduzir como eram as relações sociais existentes nestes ambientes antes de sua extinção.
O Arqueólogo estuda esses resíduos deixados por uma sociedade, depois que seus membros pereceram. E sua tarefa é a de reconstruir o sistema agora que ele somente existe por meio de algumas de suas cristalizações. (DAMATTA, 2000, p. 29).
Por derradeiro, temos a Antropologia Cultural. Também denominada Antropologia Social, esta facção antropológica acastela a idéia de que cultura e sociedade que foram ao longo do tempo formadas por um determinado povo não se deram somente através de superação dos obstáculos naturais, mas ocorreram principalmente pela capacidade do homem de refletir sobre os acontecimentos e sobre o ambiente em que vive. Damatta relata e subdivide esta esfera da Antropologia em dois grupos: Instrumental (onde as respostas dadas pelos indivíduos são diretas, sem reflexão aprofundada sobre suas ações) e Cultural/Social, onde, não obstante haver a interação homem/ambiente, este reflete sobre seus atos, não os fazendo apenas pelo impulso momentâneo.
Dando seqüência, o autor nos traz três planos de Consciência Antropológica. No primeiro, o da consciência física, constitutivo da Antropologia Biológica, aborda e estuda as mudanças calhadas no corpo humano e suas conseqüentes evoluções. O estudo é feito por comparação com demais espécies e contempla uma época longínqua (milhões de anos), onde as transformações eram realizadas lentamente. A segunda consciência é a arqueológica, e já pertence a uma escala temporal mais próxima da atualidade, pois trata-se de milhares de anos, onde os acontecimentos já possuem uma importância mais estabelecida, permitindo a diferenciação de civilizações, de suas produções e mesmo de regimes políticos já formalizados por algumas delas, embora ainda apresentem uma evolução relativamente lenta de seus costumes.
A terceira consciência pertence à Antropologia Cultural ou Social, o tempo a que se refere é o da história atual e os fatos e as sociedades passam a serem vistos de uma forma complexa e racional.
Continuando, Damatta passa a mostrar como existe quase que uma necessidade de correntes Antropológicas em colocarem o Biológico em contraposição ao social. Explica que o senso-comum vê o homem como saindo da natureza e depois voltando-se contra ela. Numera uma cadeia de acontecimentos, que ainda na atualidade, é defendida com vigor por cientistas sociais, contemplando: 1 – a natureza é hostil e ameaçadora, reinando absoluta, possuindo em seu interior animais monstruosos e fenômenos perigosos como vulcões e vendavais; 2 – aqui aparece o homem (ser único e universal), está nu e é frágil, porém, tem inteligência superior; 3 – Sua inteligência é estimulada pela hostilidade do mundo, e vai aprendendo pela experiência (o fogo pela fagulha das lavas vulcânicas, as armas pelo ódio dos animais); 4 – percebendo a dimensão da natureza e sua fragilidade, resolve o homem agrupar-se, formando a sociedade; 5 – já em sociedade, carrega impulsos anti-sociais e individualistas de outrora, inventa as instituições como o direito, a família, o trabalho. (2000, p. 41/42). O autor chama esta forma classificativa de teatro da origem do homem, apresentando ao leitor os vários enganos desta enumeração. Diz que o homem é uma invenção social, e quando se fala em homem, deve-se falar em sociedades e culturas. Acrescenta que não se referindo á sociedade e cultura, oculta-se as diferenças ali existentes, e não explicando as diferenças, o homem torna-se um ser que apenas reage ao mundo á sua volta, deixando de contemplar e pensar. Ainda, Damatta contempla que ao se fazer esta classificação da origem humana na forma de uma evolução cultural e social, acaba por reduzir-se as diferenças sociais e respostas culturais, sem o devido pensar voltado para a diversidade humana.
(...) tomar instituições culturais e sociais e tratá-las como um biólogo, em termos de conceitos como adaptabilidade, estímulo, etc. a mudanças supostamente ocorridas no meio exterior, é evitar penetrar na razão crítica das diferenças entre as sociedades e penetrar nesta área é estar começando a ficar preparado para discutir o mundo social e cultural – o mundo da diversidade, da história e da especificidade. (DAMATTA, 2000, p. 44/45).
Agora, dando continuidade ás suas explanações, Damatta diferencia o social do cultural. Como são temas que se complementam, para um melhor entendimento, o usa o exemplo das formigas para explicar o contexto:
Posso ver uma sociedade de formigas em funcionamento. Mas formigas não falam e não produzem obras de arte que marquem diferenças entre formigueiros específicos. (...) esse ambiente é modificado sempre do mesmo modo e com o uso das mesmas matérias químicas (...) Existe sociedade, mas não existe cultura. Ou seja, existe uma totalidade ordenada de indivíduos que atuam como coletividade (...) Mas não há cultura porque não existe uma tradição viva, conscientemente elaborada que passe de geração para geração, que permita individualizar ou tornar singular e única uma dada comunidade relativamente á outras (...) (DAMATTA, 2000, p. 47/48).
Esta diferenciação era necessária, pois em seqüência, o autor trataria do tema do racismo, e para tanto, o conceito de sociedade e cultura deveria estar fluindo na cabeça do leitor.
Damatta, entre outras observações, vai traçando o ambiente que originaria o que ele denominou de racismo à brasileira, e para tanto, faz explanações sobre o modo de vida da sociedade hierarquizada portuguesa no quinhentismo, e de como aquela sociedade se acoplou ao modo de vida dos nativos brasileiros. Ensina que nos Estados Unidos não existem mistificações, “ou você é índio ou negro ou não é” (2000, p. 63). Relata o autor que “o marco histórico das doutrinas raciais brasileiras é o período que antecede a proclamação da República e a Abolição da Escravatura” (p. 68), e que a real intenção da elite quando libertou os escravos seria “manter o status quo, libertando os escravos juridicamente, mas deixando-o sem condições de libertar-se social e cientificamente” (p. 69), e o fez através do mito das três raças (branco, amarelo, negro), pois este mito “une a sociedade num plano biológico e natural, domínio unitário, prolongado nos ritos de umbanda, na cordialidade, no carnaval, na comida, na beleza da mulher, na música ...(...) (2000, p. 70).
O autor contempla as narrativas apocalípticas de alguns autores, sobretudo de Gobienau, que em meados do século XIX via a mistura das raças no Brasil como forma de extinção de toda a sociedade em um curto espaço de tempo. Difere a escravidão Brasileira da Americana, onde lá possuía a característica de regionalizada, e define como ponto crítico do sistema brasileiro a desigualdade: “o ponto crítico de todo o nosso sistema é a profunda desigualdade, ninguém é igual entre si ou perante a lei (...)” (DAMATTA, 2000, p. 76).
Damatta coloca como diferença crucial entre o racismo Brasileiro e o Norte Americano o fato de que na América o mestiço era visto como peça indesejável, considerado como inferior ao inferior. Enxergava-se alguns pontos positivos nas demais cores e raças, mas não se aceitava de forma alguma a mistura entre elas, pois “o mal não está nas diferenças entre as raças, diz o racismo arianista, mas nas suas relações” (2000, p. 77). Nos Estados Unidos, após a libertação dos escravos, a massa de negros livres tornou-se um grande problema, pois estes negros doravante competirão com os pobres, principalmente sulistas, para sobreviverem na sociedade pós sesseção. Desta feita, o caminho americano para convivência entre as raças em um país que pregava a igualdade foi a segregação. Lá todos tinham direitos iguais, porém, negros e índios eram socialmente separados dos brancos, enquanto no Brasil, embora a raça branca permanecesse como superior, todos se contatavam. Enquanto lá a diferença de sangue estigmatizava negros e índios, aqui se aturava e de certo modo, se nivelava o negro com posses quase ao patamar do branco, porém, a posição de superioridade política e social dos brancos sempre foram protegidas pela engrenagem do sistema, pois:
Em nosso sistema, portanto, o branco está sempre unido e em cima, enquanto que o negro e o índio formam as duas pernas da nossa sociedade, estando sempre embaixo e sendo sistematicamente abrangidos (ou emoldurados) pelo branco. (DAMATTA, 2000, p. 82).
Damatta contempla que as nossas autoridades sempre permitiram a criação de religiões intersticiais (como a Umbanda), para manter a ideologia dominante, evitando desta feita “o conflito e o confronto” (p. 83).
Conclui desta maneira:
Por que, colocando tudo em termos de raças e nunca discutindo suas relações, reificamos um esquema onde o biológico se confunde com o social e o cultural, permitindo assim realizar uma permanente miopia em relação á nossa possibilidade de autoconhecimento. Num mundo social determinado por motivações biológicas, desconhecidas de nossas consciências, pouco ou quase nada há para se fazer em termos de libertação e esperança de dias melhores.
E assim, é o caminhar, que como o próprio autor dissertou, cria-se uma cortina de fumaça, em uma sociedade fundada na hipocrisia, onde até os diferentes acabam por se contaminar com o preconceito, e muitos deles o aceitam e vivem o dia a dia em cima de uma ideologia das diferenças, pois desta ideologia, alguns deles e em algumas oportunidades, acabam tirando alguma vantagem, seja social ou política da própria ideologia combatida.
__________________________________________
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.