Resenha do livro "Crônicas da vida e da morte" de Roberto DaMatta
“Para se entender Roberto DaMatta e a nós mesmos”
Escrito em memória de seu filho Rodrigo DaMatta, morto por enfarto aos 44 anos de idade, Roberto DaMatta, conhecido e reconhecido antropólogo brasileiro, descreve nas 233 paginas e 65 subitens de seu livro “Crônicas da vida e da morte”, de 2009, não só uma grande parte de suas teorias sobre o país, mas também uma série de reflexões sobre si mesmo. Ele repensa suas posturas antigas e novas, assim como olhar para seu país de origem hora como um nativo, hora como um turista e por vezes inclusive, como um estrangeiro.
Ao ser uma compilação de crônicas publicadas em diversos periódicos brasileiros, principalmente nos jornais “O Estado de São Paulo” e “O Globo”, este trabalho passeia por três conjuntos de discussões, assim colocadas:
I) Vida e Morte = subdividida em “Questionamentos”; “Memórias da antropologia”
II) Sociedade Brasileira = subdividida em “Velhos hábitos”; “Hierarquias, igualdade, calvinismo”; “Crise e identidade”
III) Crônicas do dia a dia
Em todas elas, a questão central de discussão de DaMatta acontece acerca da igualdade como valor na sociedade brasileira, uma vez que segundo ele este tema deveria ser cada vez mais estudado e detalhado como forma de se entender a própria democracia nacional atual, dado que no pais se tem um postura dúbia de rejeição e ignorância da importância da mesma. Igualdade aqui então pode ser entendida como um dos principais mecanismos de desenvolvimento social, educacional e institucional em uma nação pautada pelo ideário liberal que, no entanto, nunca se consolida.
Liberalismo aqui entendido poderia ser entendido também como a sociedade contemporânea de aumento do conhecimento e da inovação e que, ao mesmo tempo, coloca em contato atores sociais diferentes que buscam uma harmonia de relação frente aos desafios modernos, tanto na forma coletiva quanto individual.
Na parte I – Vida e Morte, DaMatta coloca em pauta uma série de questionamentos acerca do quanto realmente sabemos da vida e da morte. Ou melhor, de suas interpretações, que, sendo construídas coletivamente, muitas vezes nos fazem crer que dominamos mesmo as etapas de nossa formação, ou seja: “Viver é ser levado e, mais das vezes, arrastado pelo ralo da existência”.
É como se o autor nos fizesse a proposta de nos abrir à vida justamente através do reconhecimento de nossa finitude e desconhecimento frente aos fatos desta. Superar este espaço de entendimento poderá se dar pela reconstrução de nossa história, pela compreensão de que a vida imita a arte “ou vice-versa ao contrário”, como ele mesmo diz. O mais importante, porém, é se considerar que por mais que haja um fim último para (quase) tudo, “os elos entre as pessoas ficam”. Isto significa que o processo de aprendizagem, de (re) descoberta dos símbolos de interação do conhecimento pode nos tornar pessoas além de nosso tempo.
Na realidade, por vezes DaMatta se refere ao campo social na perspectiva de ser um instrumento para o entendimento do planeta na direção de preservá-lo, de se criar uma herança e um legado entre humanidade e natureza que possa ser duradouro. Ele nos incita então a perceber as potencialidades da vida compreendida como a construção de biografias que ultrapassem o comum (com orientação a um mundo melhor) e que, conseqüentemente, se eternizem.
É neste propósito que esta sugestão de sabedoria tenha a ver justamente com a questão colocada pelo autor de que um dos maiores problemas dos brasileiros é o de “saber demais”. Para tudo o que aqui se discute e se investiga já se tem uma resposta preliminar (e que longe de ser uma hipótese, é mesmo uma prerrogativa de resposta já dada), uma teoria e uma moral. Porém ao mesmo tempo, nada é resolvido, nada, depois do esforço da questão, é encaminhado para um final feliz. Assim, ao se admitir nossa compreensão limitada sobre o mundo, talvez tenhamos a possibilidade de avançar, de querer mais, de nos modificar para um bem maior.
E neste ponto que se alcança a maior prerrogativa do saber como instrumento de mudança em uma sociedade que ainda se encontra cercada e cerceada pelos mesmos círculos de poder de tomada de decisão. Uma das formas então de se aumentar a chance da igualdade social voltar a existir de forma real e contínua pode ser justamente “... subordinar o saber ao teste, pois somente assim a teoria se transforma num meio de resolver questões.”.
Já na parte onde o autor discute sobre suas “memórias da antropologia”, DaMatta passa a discorrer sobre vários encontros e discussões que vivenciou com grandes intelectuais internacionais: de Roberto Cardoso de Oliveira, Roque Laraia e outros pensadores brasileiros, até o seu professor na Universidade de Harvard, David Maybury-Lewis. Nessas passagens segue claro seu trânsito dentro do campo social tanto como um pensador de sua disciplina, como alguém também que repudiou a postura de “intelectual de gabinete” tão comum no nosso meio acadêmico, ao formar quase todo seu saber no trabalho de campo, no contato com o outro, uma vez que, segundo ele: “Quem assume a marginalidade como método não vai tão longe.”.
O que disso se nota é sua disposição em mostrar os desafios de se tornar e ser professor em um país com tantas desigualdades e adversidades, com jogos de poder intermináveis e dos quais a população conhece e participa muito menos do que deveria. Estar fora desse cenário, se abster de dar opiniões e motivações a todos os que participam do campo educacional é um papel a que o professor e intelectual não poderia admitir.
Uma possível explicação para tal postura se encontra nas teorias que o autor construiu e que desfilam em seu livro, visto que têm como pretensão ajudar a entender o Brasil enquanto nação ainda em desenvolvimento da noção de igualdade civil e institucional, tais como: “a casa e a rua”; “você sabe com quem está falando”; o “jeitinho brasileiro”; “a inveja brasileira”; “a paixão pelo Estado” e todos os outros “abre aspas” possíveis de uma sociedade hierarquizada e avessa a transparência de ações individuais e institucionais.
E nesta direção o sistema educacional brasileiro (assim como o policial e médico) é, segundo o autor, necessário de ser pensado como uma política nacional que englobe a todos sem distinções de acesso aos seus serviços e que assume seu lugar de destaque em uma sociedade carente de ética e de responsabilidade social. Pois para DaMatta o brasileiro se atém muito ao conveniente de suas ações, ao que pode ser trocado e medido como recompensa, e tal postura gera, inerentemente, uma ética ao campo privado e outra direcionada ao campo público.
Ou seja, é um desafio e tanto a ser superado (educação como agente transformador) e que suas memórias ainda vivas (felizmente, tal como o próprio autor) nos remetem a pensar respostas para suas questões. Essas buscam a nos guiar na direção do reconhecimento da igualdade como um pilar do campo educacional que não poderia ser afastado sem o risco de se perder a identidade do processo de igualdade entre diferentes.
O abarcar o espaço local e a assimilação com respeito às distinções fazem da leitura do livro de Roberto DaMatta mais do que um reviver de experiências e sim um abrir os olhos para as possibilidades do que virá quando a igualdade se tornar um sólido valor nacional. Pois as “Crônicas da vida e da morte” são na verdade um conforto, uma descrição de acontecimentos para os “permanentes recomeços” a que estamos, segundo DaMatta, destinados a viver, para se dar conta de um mundo com “... muita realidade e pouca imaginação...”. E esta imaginação poderá ser novamente descoberta com o nosso reconhecimento de que cada dia vale, para cada um, uma chance de reformar um pouco mais tanto a sociedade como a si próprio.