07/10/2017

Representações da Docência Masculina: A Questão da Desvalorização da Profissão

Resumo

Este artigo busca trazer reflexões acerca da docência masculina. Especificamente interessa-se em analisar como os sistemas de representação que incidem sobre a profissão docente e sobre o masculino produzem nos professores modos de ver e viver a docência com crianças. Ressalta-se que esses modos decorrem dos investimentos feitos pelos diversos discursos presentes socialmente e reiterados pelas instituições familiares, educacionais, religiosas, considerando ainda que esses discursos visaram, no passado, moldar um perfil específico e ideal de professora para atender a educação das crianças. Nesta perspectiva, verifica-se também como os professores lidam com a questão da desvalorização salarial e social da profissão docente, qual(is) impacto(s) esses conceitos têm na escolha da profissão e se de algum modo influenciam investimentos na profissão ou novas ocupações profissionais.

Palavras-chave: Docência masculina; representação da profissão docente. desvalorização.

 

Introdução

O tema da docência masculina ainda é pouco investigado no contexto educacional brasileiro, em parte pela quase ausência de homens como professores dos anos iniciais. Apesar do constante processo de inserção dos homens na educação básica como professores ainda é visivelmente maior a presença feminina nesse nível de escolarização. Essa situação acaba por contribuir e reforçar as representações sobre a docência, atribuindo a ela características que a fazem ser reconhecida como sendo uma das profissões mais procuradas pelas mulheres.

Embora essa realidade venha sendo modificada nos últimos anos com o ingresso cada vez maior de homens nas redes de ensino e a procura deles por cursos de Pedagogia, o interesse em pesquisar sobre a profissão docente concentra-se geralmente nas mulheres professoras.

Impulsionada por este cenário desenvolvi uma tese de doutoramento em Educação onde tratei da questão do gênero na docência com crianças dos anos iniciais da escolarização. O estudo investigou como os homens se constituem professores dentro de uma profissão reconhecidamente feminina, evidenciando as trajetórias vividas por eles nas suas constituições e nos modos e formas pelas quais elas se reproduzem no exercício docente.

O referencial téorico analítico baseou-se nos Estudos de Gênero e nos Estudos Culturais numa perspectiva pós-estruturalista, expressa pelos estudos de Guacira Lopes Louro e Judith Butler, bem como Stuart Hall e Tomaz Tadeu da Silva.

Neste texto destaco como os sistemas de representação que incidem sobre a profissão docente e sobre o masculino produzem nos professores modos de ver e viver a docência com crianças, ressaltando que esses modos decorrem dos investimentos feitos pelos discursos religiosos, morais e políticos que, no passado, visaram moldar um perfil específico e ideal de professora para atender a educação das crianças. Especificamente, saliento como os professores lidam com a questão da desvalorização salarial e social da profissão, sendo isso considerado como fator determinante para a busca por novos investimentos na profissão ou novas ocupações profissionais. É importante notar também que apesar desse contexto de precariedade a docência pode significar ascenção social para oriundos/as de camadas mais empobrecidas da população brasileira.

 

Metodologia

A pesquisa foi desenvolvida com quatro professores de escolas de redes públicas, sendo três de Pelotas e um de Morro Redondo, ambos municípios do estado do Rio Grande do Sul. Como requisito era preciso ser professor titular e unidocente de estudantes entre o 1º e o 5º ano do ensino fundamental e possuir pelo menos três anos de experiência docente com crianças. O tempo de exercício docente dos participantes do estudo varia entre seis e oito meses, para o professor com menor experiência em sala de aula com crianças, a trinta e quatro anos do professor com maior experiência profissional. Ressalto que todos os professores são pós-graduados, nível de especialização e mestrado. Relataram que a pós-graduação configura uma forma de incrementar seus salários e qualificar sua formação.

Caracterizou-se como um estudo qualitativo, pois é um tipo de abordagem mais próxima de compreender a realidade como dependente de fatores plurais e inter-relacionados, onde o histórico, o social e o cultural concorrem simultaneamente na construção desse real e permitem que a teoria seja “mais dirigida para a interpretação do que para a explicação” (AMADO, 2014, p. 395).

Os instrumentos utilizados no levantamento de dados foram: um questionário que visava coletar informações objetivas dos professores, tais como identificação, área de formação, o ano de conclusão do curso que o habilitou a exercer a docência, entre outros aspectos; observações nas escolas; entrevistas semi-estruturadas; diário de campo e conversas informais com os professores.

Efetuei um número diverso de observações, variando entre oito e onze visitas de campo para cada professor. As observações tiveram durações entre 3h e 30min a 4h, sendo que com alguns professores mantive maior contato devido a questões próprias do processo da pesquisa e das condições de acesso à escola.

Paralelas às observações ocorreram anotações no diário de campo, o qual foi usado ainda para registrar informações obtidas com as conversas informais, tanto com os professores quanto com as crianças.

Realizei uma entrevista com cada professor e o tempo de duração foi estabelecido por meio da própria dinâmica do entrevistado, sendo a mais longa de 2h e 12 minutos e a mais rápida 1h e 25 minutos. Cada entrevista rendeu em torno de 10 a 15 páginas transcritas.

Para discorrer sobre como esses professores alicerçaram suas decisões e escolhas profissionais diante das representações culturais que marcam a docência com crianças como trabalho feminino, analisei os depoimentos dos pesquisados considerando que “os comportamentos dos sujeitos ou dos grupos não são determinados pelas características objetivas da situação, mas pela representação dessa situação” (AMADO, 2014, p. 101). Assim, para analisar os dados escolhi a análise de conteúdo, pois ela presta-se para traduzir “visões subjetivas do mundo, de modo a que o investigador possa ‘assumir’ o papel de ator e ver o mundo do lugar dele” (AMADO, 2014, p. 305).

 

Resultados e discussão

Escolher a docência com crianças como profissão coloca alguns homens professores como alvo de críticas vindas de vários lados, inclusive da família. São vistos como incapazes para exercer outra profissão. Também são percebidos como fracassados.

Uma das questões verificadas na pesquisa é a presença entre os professores de um sentimento de insatisfação salarial e de desconforto causado pela desvalorização social da profissão. Estes fatores concorrem para que os professores assumam outros meios de prover rendimentos para poderem minimizar os efeitos concretos dos baixos salários pagos à categoria. É o caso de dois dos quatro professores pesquisados: um deles é agente de saúde municipal e o outro proprietário de uma prestadora de serviços da construção civil.

Vejamos os argumentos usados por um dos professores para justificar porque não tem a docência como única ocupação profissional. Ele diz:

Eu tenho duas filhas na faculdade, em outra cidade, e como eu poderia sustentá-las sendo só professor? Mesmo tendo 60 horas não dá. Se pudesse me dedicar somente à escola certamente poderia dar muito mais de mim para fazer mais atividades criativas para as crianças (professor Raí, trecho de entrevista, 11/06/2015).

 

Outra tentativa de minimizar os impactos causados pela desvalorização social da profissão é investir na formação continuada. Um dos professores tem duas graduações, duas especializações e está cursando mestrado. Para esse professor a entrada na docência representou um avanço social, tendo em vista que antes de ser professor ele trabalhou como pedreiro, trabalhador rural e merendeiro escolar. Segundo ele o ingresso na profissão docente significou a possibilidade de reconhecimento familiar que as ocupações anteriores não deram. Ele pontua que “depois de trabalhar na colheita de laranja em outro estado, ganhar o pão de cada dia como pedreiro e fazer concurso para merendeiro de escola pública, ser professor e estar fazendo mestrado é uma grande ascensão” (professor Renato, trecho de entrevista, 14/04/2015).

O preconceito destinado a algumas profissões encontrou na docência um terreno bastante fértil. Nela, homens e mulheres foram representados por tipificações por vezes conflitantes (LOURO, 2004), sendo pouco compreensível essa escolha pelos professores homens, tendo em vista o desprestígio da profissão. Como assinala Correia (2009), “escolher uma profissão socialmente desvalorizada prejudica a autoestima e requer um processo interno de negociação complexo” (p. 136). Embora inscrita discursivamente como profissão feminina, a docência com crianças como escolha profissional de alguns homens talvez possa ser uma forma de resistência a esse mesmo discurso.

O caso de homens exercendo a docência com crianças, constantemente reportada às mulheres, acaba por dar uma nova descrição à profissão, pois como Louro (2004) avalia

a representação dominante do professor homem foi – e provavelmente ainda seja – mais ligada à autoridade e ao conhecimento, enquanto que a da professora mulher se vinculava mais ao cuidado e ao apoio “maternal” à aprendizagem dos/das alunos/as (LOURO, 2004, p.107).

Sabemos que a influência cultural é visível na escolha profissional e a sociedade espera que os homens optem por escolher profissões cujo êxito seja reconhecido socialmente. A representação do homem bem sucedido que conquistou respeito, poder e sucesso econômico por meio da profissão está difundida socialmente.

Professores homens, porém, como os que participaram deste estudo estão longe de se encaixar nesse padrão de sucesso profissional via salário, muitas vezes restrito a poucas profissões. Esses professores escolheram a docência e aceitaram o desafio de atender os anos iniciais, um nível tão desvalorizado e com tantas especificidades. Não busquei apresentar modelos, nem receitas ou prescrições para homens que são ou pretendam ser professores.

Observei, também, que nenhum deles ignorava o desprestígio social que a atividade docente encerra, que eram cientes da necessidade de ter que atender duas ou três escolas todos os dias, que ainda se incomodam com a falta de tempo para o lazer e para cuidar da saúde. Eles não se conformam com os baixos salários, entretanto, apesar disso procuram cotidianamente oferecer um trabalho qualificado, pensado em cada detalhe. Nenhum professor observado parecia improvisar as atividades pedagógicas.

Enfim, a pesquisa mostrou que o desânimo que os professores revelaram sentir com a profissão é mais da ordem da desvalorização e da falta de reconhecimento político-econômico para com a profissão, o que os obriga a assumir 60h semanais de trabalho, do que propriamente das atividades docentes.

 

 

Reflexões finais

 A escola pode desequilibrar as tradições que a veem como um espaço eminentemente feminino. Convém notar que há indícios de que os homens estão buscando a docência como profissão e que alguns deles procuram ocupar-se de um nível de escolarização fortemente visto como mais adequado às mulheres, ou seja, a educação das crianças pequenas, período em que a imersão em processos de socialização é marcante e intenso para elas.

Refletir sobre a docência masculina tendo como mote central considerar as práticas sociais que realçam diferenças construídas discursivamente sobre os homens e sobre a profissão docente mostra que as representações culturais são formas de construção da realidade, cuja ingerência constitui sujeitos e expressa conceitos que realçam diferenças, homogeneízam pensamentos, constroem modelos.

A pesquisa permite afirmar que enquanto a profissão docente sobrecarregar professores e professoras com excesso de horas de trabalho para compensar os baixos salários eles e elas terão que sacrificar outras instâncias das suas vidas, seja não participando como gostariam da vida de suas/seus filhas/os, seja não colaborando com suas/seu companheiras/o, seja renunciando ao lazer e/ou a atividades que tragam bem estar físico e emocional.

É importante salientar que o sexo dos professores diz deles e sobre eles e que o gênero não pode ser usado para nomeá-los, classificá-los ou enquadrá-los em definições. Assim, os modos pelos quais alguns homens professores pensam e fazem a docência não correspondem de forma hermética àquilo que foi construído cultural e socialmente sobre eles. Há transgressões, vazamentos e deslizes que incidem sobre afirmações acerca da docência masculina, especialmente a exercida com crianças dos anos iniciais.

 

Referências

AMADO, João. Manual de Investigação Qualitativa em Educação2 ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014. 428 p.

CORREIA, Ana Maria. Assimetrias de Gênero: ensino e liderança educativa. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão, 2009. 350 p.

Louro, Guacira Lopes. Um Corpo Estranho – Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2004, 92 p.

 

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