21/09/2023

Reinvenção dos jogos: uma solução criada por pequenos cientistas

Reinvenção dos jogos: uma solução criada por pequenos cientistas

WEBER, Samila Beatriz - Gestora de Recursos Humanos (UNINTER), Professora Educação Básica na Rede Pública, Normalista (INSTITUTO DE EDUCAÇÃO IVOTI), Acadêmica de pedagogia (UNINTER), Integrante de projeto de aperfeiçoamento científico no Grupo de Pesquisa em Design(FEEVALE), . E-mail: samilaweber@gmail.com

LUZ, Djenifer Caroline – Pedagoga (FEEVALE), Voluntária no grupo de pesquisa intitulado Estudos, Pesquisas e Práticas em Educação não escolar (FEEVALE). E-mail: djeniferluzgw@gmail.com

Palavras-chave: Educação Básica; Infância; Jogos; Iniciação Científica.

Resumo: Este estudo surgiu com o retorno das aulas presenciais no período da pandemia no ano de 2021 com a necessidade de desenvolver estratégias que permitissem às crianças do Segundo Ano de uma escola municipal em Campo Bom/RS redescobrirem a diversão das brincadeiras e jogos coletivos, mesmo durante a pandemia, respeitando os protocolos de segurança sanitária. O projeto de iniciação científica foi realizado utilizando uma abordagem aplicada. Quanto aos objetivos é explicativa. E ao que diz respeito aos procedimentos técnicos é experimental. A abordagem para análise dos dados utilizada foi predominantemente qualitativa por meio da pesquisa-ação. Os resultados revelaram que as crianças adquiriram habilidades essenciais para adaptar atividades lúdicas às restrições impostas pela pandemia, permitindo-lhes desfrutar de experiências interativas de jogo enquanto mantinham a segurança quanto ao risco de transmissão do vírus da COVID. As soluções desenvolvidas para cada jogo foram compiladas em uma cartilha/manual, que apresentava novas formas de aproveitar os jogos favoritos, como por exemplo, nos jogos de cartas colecionáveis como Pokémon e Trunfo, os jogadores mantêm suas cartas e não as trocam quando perdem uma rodada; em vez disso, os pontos são registrados em uma tabela para determinar o vencedor com base na pontuação acumulada. E com soluções simples e acessíveis para o contexto escolar, minimizaram o contato direto e maximizaram a possibilidade da utilização dos jogos. A cartilha criada pelos alunos foi compartilhada com os alunos da escola e apresentada em feiras de iniciação científica.

  1. INTRODUÇÃO

A pandemia de COVID-19 trouxe uma série de desafios para a educação em todo o mundo, e um deles foi a necessidade de encontrar maneiras de manter as crianças engajadas e ativas em um ambiente de aprendizado remoto. A infância contemporânea já é marcada pelo uso dos recursos digitais, definido por Prenky (2001) como a geração de nativos digitais, que cresceu em um ambiente altamente tecnológico e está acostumada a lidar com informações de forma ágil. No entanto, ao longo da infância é natural as crianças brincarem, seja por meio de jogos, brinquedos ou brincadeiras.  Segundo Vygotsky (2014, p. 89), “as brincadeiras são a escola da vida da criança e a educa física e espiritualmente”. É fundamental para o desenvolvimento físico, mental e emocional da criança.

Durante esse período, muitas crianças passaram a ficar ainda mais tempo em frente às telas, como celulares, televisões e tablets, o que resultou em menos tempo dedicado às brincadeiras e atividades físicas. Para Meire (2003, p. 77), hoje em dia as crianças se deparam com um desafio considerável ao tentar dedicar tempo para brincar, pois são constantemente impactadas pela predominância dos dispositivos virtuais em suas vidas, os quais tendem a amortecer suas atividades físicas e a influenciar seus processos de pensamento.

Ainda no início de 2021, durante o período de aulas remotas, em uma pesquisa realizada com 26 alunos do Segundo Ano do Ensino Fundamental de uma escola pública localizada no município de Campo Bom, no estado do Rio Grande do Sul durante aula síncrona via Meet, evidenciou-se que a carência mais profunda das crianças diante do afastamento escolar era o brincar/jogar. Isso conduziu a uma reflexão sobre o motivo que distanciava a infância contemporânea de desfrutar momentos lúdicos em seus lares. Considerou-se inicialmente, que o tamanho reduzido das famílias, visto que a maioria deles era filho único, pudesse ser a maior influência naquele momento. Segundo Kishimoto (2010, p. 1), “A criança não nasce sabendo brincar, ela precisa aprender, por meio das interações com outras crianças e com os adultos”. 

 Quando, em meados de 2021, houve o retorno das aulas presenciais de maneira parcial, pensou-se que o problema estaria resolvido, pois haveria novamente a troca de experiências, interações sociais e construção de conhecimentos sobre brincadeiras e jogos, pois passariam a jogar e brincar de maneira coletiva novamente. No entanto, o Plano de Contingência da Escola, seguindo as orientações do Ministério da Saúde e aprovado pelo COE Municipal, não permitia interações e trocas de objetos.

Foi então que surgiu a necessidade de desenvolver um projeto que incentivasse as crianças a redescobrir a diversão das brincadeiras e jogos coletivos, mesmo em meio à pandemia. O projeto "Operação Segurança em Jogo: Neste jogo o vírus não entra!" foi criado com o objetivo de levar os alunos a pesquisar e pensar em formas de participar de jogos coletivos de maneira segura, respeitando os protocolos de segurança exigidos durante as aulas presenciais.

Os resultados obtidos demostraram que as crianças adquiriram habilidades essenciais para adaptar atividades lúdicas às restrições impostas pela pandemia, permitindo-lhes desfrutar de experiências de jogo ricas e interativas enquanto mantinham a segurança quanto ao risco de transmissão do vírus da COVID. Isso possibilitou que as crianças não apenas continuassem a se divertir e aprendessem através do brincar, mas também que desenvolvessem habilidades sociais, cognitivas e motoras de forma confiante e responsável. Emponderando-se dos seus espaços e suas ações.

2. METODOLOGIA

No período dos anos iniciais do Ensino Fundamental, as crianças devem ser instigadas a realizar suas pesquisas, levantar suas hipóteses, experimentar, bem como, proporcionar momentos interativos e de trocas entre os pares. Diante disso, é importante que a criança seja protagonista ao longo da pesquisa, encontrando soluções para os problemas encontrados. Essa ação, está ancorada na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018, p. 321), que apresenta a necessidade de proporcionar chances para que os estudantes realmente se envolvam em experiências educacionais nas quais possam participar ativamente de processos de aprendizado.

Portanto, é importante que sejam oferecidas diferentes formas de pesquisa e investigações por parte do docente, para que se formem crianças pesquisadoras e que saibam a importância do saber científico à sociedade. O projeto foi realizado utilizando uma abordagem aplicada que segundo Prodanov e Freitas (2013) visa gerar conhecimentos para a aplicação prática de soluções de problemas.  Quanto aos objetivos é explicativa. E ao que diz respeito aos procedimentos técnicos é experimental. A abordagem para análise dos dados utilizada foi predominantemente qualitativa por meio da pesquisa-ação onde os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo.

3. DESENVOLVIMENTO

No retorno à dinâmica da sala de aula, deparou-se com um dilema: a turma demonstrava uma preferência brincante por jogos que Huizinga (2007) enxerga como elemento da cultura humana. Uma manifestação lúdica que envolve uma relação entre um determinado espaço (quadra, campo, sala...), um determinado tempo (início, intervalo e fim) e regras pré-estabelecidas. Ainda, segundo o autor, o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária realizada dentro de certos limites de tempo e espaço, seguindo regras acordadas livremente, mas que são absolutamente obrigatórias durante sua execução. Ele tem um propósito em si mesmo, é acompanhado de um sentimento de empolgação e alegria e traz consigo uma consciência de ser uma experiência diferente da vida cotidiana.

Após levantamento dos jogos preferidos das crianças desta turma, concluiu-se que praticamente todos faziam uso de cartas, como Trunfo, Pokémon, Buraco, Pife, Sabonete, UNO, além de jogos de trilha. Estes jogos de mesa, tabuleiro e cartas normalmente demandam a troca e circulação desses objetos entre os participantes. Devido às rigorosas diretrizes de segurança impostas pelas autoridades sanitárias em relação ao coronavírus, tornou-se imperativo compreender melhor o vírus e encontrar novas formas de interação.

Inicialmente, os estudantes empreenderam pesquisas em meios eletrônicos para compreender como ocorria o contágio do vírus. Segundo as informações do Ministério da Saúde na época, ficou claro que o SARS-CoV-2 seguia padrões de transmissão semelhantes aos de outros vírus respiratórios, sendo principalmente disseminado por três vias: gotículas respiratórias, aerossóis e contato direto. Com o uso correto de máscara, as crianças diminuiriam drasticamente as duas primeiras formas de contágio. Neste momento, a transmissão por contato direto era o grande problema. Passaram a pesquisar sobre o tempo de permanência do vírus nos materiais dos jogos como papel e plástico. Descobriram que esse período é de 24 horas e 72 horas, respectivamente, conforme informações da Instituição Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), concluindo que a solução do problema estaria em minimizar ao máximo o contato direto ao longo do jogo.

Diante disso, para sensibilizar os alunos quanto à capacidade de propagação do vírus em superfícies, foi realizada o experimento "Coronabrilhos" no qual cada aluno recebeu uma pequena quantidade de purpurina de cor específica nas mãos, representando simbolicamente o vírus. Em seguida, eles começaram a participar de várias partidas de jogos diferentes. O objetivo era observar onde os brilhos das cores diferentes apareceriam. Nesse momento, puderam visualizar como o vírus permanece em superfícies e se dissemina por meio do contato direto, pois os brilhos que estavam nas mãos das crianças transferiram-se para as cartas, a mesa e se espalharam por onde elas tocavam. Isso proporcionou uma compreensão prática da importância da higiene e dos cuidados ao lidar com objetos compartilhados.

Em um estágio subsequente, com as informações reunidas, e a compreensão de que o jogo é essencialmente uma manifestação das normas e valores culturais de uma sociedade, ao mesmo tempo em que reflete as experiências e entendimentos individuais de cada jogador. E que jogos tradicionais ou contemporâneos não diferem esta característica, mas se individualizam e particularizam em cada situação. Os diferentes cenários de juízos, definições e possibilidades variam de acordo com diferentes autores ao longo da história, mas se tratam sempre do privilégio do acesso à cultura do jogar.

Partiu-se para o segundo experimento, intitulado “O problema de cada jogo”. Listados e escolhidos os jogos preferidos das crianças, a turma participou de uma rodada coletiva de cada um deles. Algumas crianças jogavam e as demais observavam. Durante cada partida, os alunos identificaram o problema representado pelo momento de contato e troca de materiais e, em conjunto, trabalharam na busca de soluções para esse problema.

Ao fim do projeto, puderam compartilhar esta cartilha com os alunos das demais turmas da escola. Além de apresentar seus resultados em formato de vídeo na feira de iniciação científica da escola e município.

4. RESULTADO E DISCUSSÃO

Para Caillois, dentre as principais características de qualquer jogo humano destaca-se a constante presença da ideia de limites e liberdades em seu desenvolvimento, pois “todo o jogo é um sistema de regras que definem o que é e o que não é do jogo, ou seja, o permitido e o proibido” (1990, p.11). Esse conjunto de regras não pode ser violado sob qualquer hipótese, pois acarretaria a destruição da atividade. Ou seja, a presença de certos limites é incontestável na prática de qualquer jogo. Entretanto, o jogador sempre tem uma relativa liberdade de criação, já que devido ao afastamento da vida real podem-se correr alguns riscos sem grandes consequências para a vida do participante.

Com base na pesquisa e realização dos experimentos, as crianças tiveram a oportunidade de conduzir suas próprias experiências, permitindo que suas suposições fossem testadas e, dependendo dos resultados obtidos, fossem ajustadas ou substituídas por novas estratégias. Entre as soluções encontradas estão Jogos de trilha que podem ser jogados de forma espelhada. Para cada jogador uma trilha com os pinos de todos os participantes. A cada jogada cada um movimenta as peças no seu tabuleiro. Jogo de cartas colecionáveis Pokémon e Trunfo em que cada jogador fica com suas cartas e desafia o oponente. No lugar de o jogador vencedor da rodada pegar a carta do oponente, é marcado em uma tabela os pontos. Assim, ao final, ganha quem tiver mais pontos, ou seja, ganhar mais rodadas. Já em jogos de baralho como Sabonete: É possível que cada jogador fique com um baralho. E que seja feito o descarte individual das cartas desnecessárias, sem misturar os dois baralhos. E o Burro é possível jogar anotando os pontos em um placar.

As soluções encontradas para cada um dos jogos, foram consolidadas em uma cartilha que apresentava novas maneiras de desfrutar de seus jogos favoritos, minimizando ao máximo o contato direto. Chegaram à conclusão, também, de que certos jogos não poderiam ser jogados neste momento, uma vez que envolviam inevitavelmente a troca de cartas, representando um risco à saúde. Esse processo de experimentação e adaptação demonstrou o comprometimento das crianças em encontrar maneiras criativas e responsáveis de continuar se divertindo enquanto seguiam as diretrizes de segurança.

E partindo da premissa trazida por Caillois, as crianças desta turma tomaram a liberdade de fazer pequenas adaptações em jogos conhecidos e disponíveis em seu contexto, respeitando ainda a definição e levando em consideração suas vivências para construir uma nova cultura de jogos permitidos em um contexto pandêmico em que trocas de objetos se tornaram perigosas devido ao fato de que o vírus da COVID-19 pode se espalhar por contato direto.

No contexto escolar no qual o projeto foi desenvolvido foi possível observar as categorias propostas por Caillois(1990) sobre os jogos buscando identificar princípios fundamentais que se aplicam independentemente do contexto em que ocorrem. Essas categorias são Agon, que envolve a competição; Alea, que se refere à sorte e ao acaso; Mimicry, relacionada à imitação e ao papel desempenhado; e Ilinx, que envolve a busca por vertigem e a sensação de desorientação. Essas categorias fornecem uma estrutura conceitual para compreender os diferentes aspectos e motivações dos jogos em suas diversas formas e manifestações.

Ao longo da realização do projeto na categoria Agon, que se refere a jogos competitivos onde o objetivo é vencer através de qualidades como velocidade, resistência e habilidade, foram observados jogos como pular corda, Damas, Borboleta (um jogo de matriz africana semelhante ao Damas), Amarelinha, Jogo da Velha e Palavra-puxa-palavra. Já na categoria Alea, que se opõe à categoria Agon e depende mais da sorte ou azar do que das habilidades do jogador, foram mencionados jogos de cartas como Sabonete, Burro e Bafo, entre outros. A categoria Mimicry, que envolve atividades de interpretação e imaginação dos participantes, foi exemplificada por jogos populares como Detetive, Mestre Mandou, Telefone Sem Fio e cartas colecionáveis como Pokémon. No caso da categoria Ilinx, caracterizada pela busca pela sensação de vertigem, foram citadas atividades como balanço, gangorra e cobra-cega, que proporcionam experiências sensoriais e de equilíbrio.

Entre as soluções encontradas

Durante o curso do estudo, as crianças tiveram a oportunidade de adaptar as convenções sociais de acordo com o contexto temporal e espacial em que estavam imersas enquanto exploravam o protagonismo na pesquisa. Esse processo lhes permitiu vivenciar experiências de exploração, incentivando o desenvolvimento de sua curiosidade, aprimorando suas habilidades de observação e raciocínio lógico, fomentando uma atitude mais colaborativa e auxiliando na formulação de suas próprias interpretações e explicações iniciais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destaca-se a importância de promover o pensamento científico através da ludicidade e criatividade na educação, especialmente durante períodos desafiadores, como foi a pandemia. O projeto "Operação: Segurança em Jogo! Neste Jogo o Vírus Não Entra", ao abordar a necessidade de repensar as atividades lúdicas e jogos em um contexto de distanciamento social, demonstrou a capacidade das crianças em se adaptar às circunstâncias e encontrar soluções criativas para continuar aprendendo. As crianças não apenas aprenderam a adaptar jogos existentes, mas também desenvolveram habilidades sociais, cognitivas e motoras, ao mesmo tempo em que exercitavam a criatividade e a resiliência diante de desafios.

Em resumo, o projeto demonstrou que, mesmo em tempos difíceis, a educação pode ser uma ferramenta eficaz para o desenvolvimento das crianças. Ele enfatizou a capacidade das crianças de se adaptar e inovar, enquanto também sublinhou o papel fundamental dos educadores em criar ambientes de aprendizado seguros e estimulantes.

6. REFERÊNCIAS

ANDRADE, L. C. de, Lima, I. N. de, & Almeida, M. O. (2020). AGON, ALEA, MIMICRY E ILINX NA ESCOLA? O ENSINO DO JOGO NA EDUCAÇÃO FÍSICA A PARTIR DA SISTEMATIZAÇÃO DE ROGER CAILLOIS. Corpoconsciência, 24(2), 91-102. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/corpoconsciencia/article/view/10508 Acesso em 02 de junho de 2021

Base Nacional Comum Curricular – Ciências da Natureza. Acesso em: < http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/> . Acesso em: 20 de jun. de 2021.

BRASIL. Ministério da saúde. Como é transmitido? Disponível em: < https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/como-e-transmitido>.  Acesso em 12 de abril de 2021

KISHIMOTO, Tizuco Morchida. Brinquedos e brincadeiras na Educação Infantil. In: I SEMINÁRIO NACIONAL: CURRÍCULO EM MOVIMENTO, Belo Horizonte, 2010. Anais... Belo Horizonte, novembro 2010

MEIRA, Ana Marta. Benjamin, os brinquedos e a infância contemporânea. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/psoc/a/fZsqCqdWF6HRgsKqtvBDD5d/?lang=pt> Acesso em: 20 de jun. de 2021

VYGOTSKY, L. S. (1896-1934). Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

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