Projeto Arquiológico Metrô em Salvador, Bahia: Trinhas do Passado - Trilhos do Futuro
PROJETO ARQUEOLÓGICO METRÔ DE SALVADOR, BAHIA: TRILHAS DO PASSADO – TRILHOS DO FUTURO
Leila Maria Ribeiro Almeida – Arqueóloga da Universidade Federal da Bahia e do Laboratório de Arqueologia do Metrô de Salvador.
Este texto faz um breve relato das atividades de escavação arqueológica e de análises laboratoriais realizadas no âmbito do Projeto Arqueológico Metrô de Salvador – Etapa 1, no sítio do Campo da Pólvora, centro histórico de Salvador, Bahia. O estudo foi coordenado pelas autoras deste texto no âmbito da Universidade Federal da Bahia. Esse estudo demonstrou que a ação da Universidade encontra-se para além do espaço acadêmico, a partir do momento em que contribui com as ações relacionadas à gestão das cidades.
O trabalho de escavação no Campo da Pólvora, realizado para o Sistema de Metrô de Salvador, Bahia, embora se tratando de arqueologia de contrato – uma vez que tinha por trás deste um consórcio de empresas que agiam dentro de estritos limites de cronograma – foi iniciado e desenvolvido como uma escavação sistemática, que delimitou a área de impacto direto e a escavou exaustivamente, apoiada por uma compreensão prévia da história e da evolução urbanística da área.
Essa escavação minuciosa realizada por toda a área, somente foi possível, dentro de um trabalho de contrato, graças a um planejamento conjunto, que permitiu à equipe de arqueologia tempo suficiente, antes da obra, para planejar o faseamento e a escavação, de forma que os trabalhos pudessem ser executados sem prejuízo dos cronogramas, nem da leitura das informações arqueológicas.
O levantamento histórico/documental da área estabeleceu alguns balizamentos importantes em termos sócio-econômicos e urbanísticos. Em princípio não se esperava encontrar artefatos em quantidade significativa, devido a três fatores identificados durante o levantamento:
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A área do Campo da Pólvora sempre se configurou como um espaço aberto sem ocupação (campo), exceção feita à Casa da Pólvora, desativada em 1702, mantida como quartel e finalmente demolida na segunda metade do século XIX.
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O cemitério da Santa Casa, que se relatava ter existido na área, localizava-se nas proximidades, mas fora da área atualmente ocupada pela praça e, que ia ser impactada pelos trabalhos do Metrô.
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Na segunda metade do século XIX, foi feito o nivelamento do Campo da Pólvora, procedendo-se à demolição da antiga Casa da Pólvora e venda das pedras, e ao corte do terreno cujas camadas superiores foram utilizadas como entulho, na conformação do grade da nova ladeira, que ligava o Largo de Santana à Rua da Vala.
Estes fatos levavam a crer que o espaço do Campo da Pólvora seria relativamente estéril, em termos de artefatos, esperando, no entanto, encontrar-se vestígios das fundações da Casa da Pólvora e materiais associados a ela.
A escavação ocorreu sobre toda a área impactada pela obra, num total de 1.792 m2, correspondendo a 448 quadras que foram escavadas até uma profundidade de 1,50 m em média e depois tradadas por mais um metro.
Por um lado, a escavação confirmou os dados documentais, sobre o nivelamento, uma vez que a estratigrafia estava reduzida, na maior parte do terreno, a uma camada argilosa da Formação Barreira, sem vestígios culturais ou vegetais, sobre a qual estavam uma camada de areia de construção e o piso da praça, em pedra portuguesa.
Por outro lado, ao contrário do esperado, não se localizou nenhum indício de fundações da antiga Casa da Pólvora. Em compensação, foram identificados bolsões e trincheiras, associados à instalação de iluminação pública, que se encontravam entulhados com material de demolição residencial, provavelmente pertencente a casas demolidas no entorno imediato da praça.
Chamou a atenção a variedade de material e a dimensão dos fragmentos. Em alguns casos as peças estavam inteiras ou quebradas em fragmentos grandes, que se encontravam no mesmo bolsão. Isso nos permitiu afirmar que este foi um sítio de descarte primário e se encontrava extremamente próximo da área de origem da peça.
As características dos materiais predominantes, louças, cerâmicas utilitárias, garrafas de bebida em grés ou vidro, frascos de medicamentos e perfumes, talheres, escovas de dente em osso, cachimbos, peças utilitárias como ferros de passar, fogões, machados, espátulas e torqueses, que foram datados da 2a metade do século XIX, e o fato de se encontrarem misturados com material de demolição (azulejos, tijolos ainda presos por argamassa, telhas, fragmentos de calhas de chumbo, chaves, fechaduras, vidro plano, etc.), nos permitiu identificar o material como proveniente de demolição de casas no entorno da praça, em época posterior ao nivelamento.
Orientados pelo trabalho de comparação da tralha doméstica de três sítios do Rio de Janeiro (LIMA,1989), pudemos verificar que o tipo dos artefatos é muito semelhante e podem ser enquadrados como pertencentes a uma classe afluente, similar aos encontrados no Paço Imperial, tanto em termos de tipos de louças, material de higiene pessoal e talheres, demonstrando uma certa sofisticação, como a presença de vidros de perfumaria e medicamentos e as louças, em sua maioria, importados.
Não conhecemos em detalhe o material encontrado no Rio de Janeiro, mas no Campo da Pólvora a alta incidência de vidros gravados, tornou possível identificar os produtos, a sua origem e o período em que foram produzidos/comercializados. Os medicamentos importados da Inglaterra, Estados Unidos e França, inseriam-se no grupo da “patent medicine” que prosperou em toda a segunda metade do século XIX, os perfumes, franceses e as garrafas de bebida (bitters, schnapps etc), que puderam ser identificados, pertenciam à mesma faixa temporal.
As louças finas, de várias procedências, encontram-se também representadas, desde os padrões mais simples Shell edged (blue, green ou red edged) e polícromo, até às peças de porcelana chinesa e às louças inglesas Copeland, Copeland & Garret, Ironstone, Spode, Azul Borrão, Willow, Milkmaid, Davenport etc., francesas de temas românticos, espanholas e japonesas.
Entre os cachimbos, além dos tipos neobrasileiros destaca-se um de inspiração oriental, com uma cabeça masculina com turbante, bigodes e uma lua crescente, em cerâmica branco-amarelada, bastante semelhante ao padrão dos cachimbos Meerschaum.
O fato de que uma grande maioria dos vidros e louças serem importados facilita o trabalho de identificação e datação das peças, que ainda está sendo realizado no laboratório. Ao iniciar-se a pesquisa, verificou-se que os produtos ingleses, ou por eles comercializados, encontrados no Campo da Pólvora (medicamentos louças, artigos de higiene, bebidas) eram idênticos aos encontrados em escavações dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Índia, ou seja, distribuídos em todo o British Commonwealth.
Assim, ainda que nos vidros lisos não fosse possível a identificação de produtos e fabricantes, o fato de serem em sua maioria importados, possibilitou a sua datação com base nas técnicas de confecção, nos formatos e cores, estudados através de trabalhos americanos e ingleses.
As louças, melhor estudadas no Brasil, já têm uma datação estabelecida em função dos diversos fabricantes, padrões decorativos e técnicas de confecção. Tomamos como base para uma primeira classificação o trabalho realizado no centro de Porto Alegre por Tocchetto (2001).
Dentro da área pesquisada foram encontradas balas de fuzil, baionetas e bocas de canhoneira, indícios do antigo quartel localizado na Casa da Pólvora e provavelmente anteriores ao século XIX, assim como fragmentos de azulejos dos séculos XVII e XVIII, que devem ter incorporado as residências demolidas. Em ambos os casos, estes artefatos têm como época de descarte a segunda metade do século XIX, quando foram realizadas as demolições.
O trabalho, longe de estar concluído, continua sendo desenvolvido no laboratório montado pela Prefeitura Municipal de Salvador, através da CTS (Companhia de Transportes de Salvador), com a catalogação (esta já finalizada), análise e restauração das peças.
Este artigo foi escrito em parceria com Ana Maria Cavalheiro de Lacerda – Arquiteta Universidade Federal da Bahia (in memorian).
BIBLIOGRAFIA
LIMA Tânia A et al. A tralha doméstica em meados de século XIX: Reflexos da emergência da pequena burguesia no Rio de Janeiro. Dédalo. S. Paulo. 1989.
METRÔ de Salvador, Interferência Sítios Arqueológicos. http://www.metrosalvador.ba.gov.br
TOCCHETTO, Fernanda B. et.al. A faiança fina em Porto Alegre – vestígios arqueológicos de uma cidade. Unidade Editorial, Porto Alegre 2001.
TWIN Cities Metro Área: The federal building and United States courthouse site. http://www.fromsitetostory.org/tcm/21he0266fedcourt.asp
YOUNG, James Harvey. The Toadstool Millionaires: a social history of Patent Medicine in America before federal regulation. http://www.quackwatch.org/13Hx/00.html