POSSE DE ANIMAIS DOMÉSTICOS E POLÍTICAS PÚBLICAS
Debora Cristina Gomes de Almeida
Licenciada em Ciências biológicas, Universidade do Estado da Bahia
Marta Maria Oliveira de Santana
Doutora em Ciência Animal nos Trópicos. Professora da Universidade do Estado da Bahia
O convívio e domesticação dos animais por parte dos seres humanos datam desde os tempos mais remotos. A utilização dos animais, seja na alimentação, vestuário, transporte ou simplesmente para a companhia gera uma indústria altamente lucrativa, fazendo com que o equilíbrio da economia dependa deles. Crespo (2008) afirma que a melhoria nas condições de vida e do bem-estar humano está atrelada às espécies domesticadas desde os tempos mais antigos, incluindo nisso também as plantas.
Com relação aos animais de companhia, o cão (Canis lupus familiaris) e o gato (Felis catus) domésticos são os mais populares. De acordo com Silva (2011) e Campos (2004), o cão foi o primeiro animal a ser domesticado, entre 15.000 a.C. e 10.000 a.C. como auxiliador nas atividades de caça, enquanto o gato foi domesticado no período do desenvolvimento da agricultura no Oriente Médio, com o intuito de resolver a proliferação de roedores nos celeiros de grãos.
Lopes e Silva (2012) afirmam que não há registros fósseis do C. familiaris anterior há 15 mil a. C., evidenciando que a espécie não antecedia a esse período, sendo a mesma resultante do terceiro dos três ramos evolutivos (a sub-família Hesperocyoninae - hoje extinta; a subfamília Borophaginae – extinta e a sub-família canineae - engloba todos os canídeos vivos) originadas no Eoceno (40 m.a.). Ainda segundo os autores, o C. familiaris é originário dos lobos cinzentos, que através da seleção humana, por acasalamentos induzidos sucessivamente, resultaram no cão tal como o conhecemos hoje e, juntos, pouco a pouco, foram traçando uma relação de cooperatividade:
Com o tempo, as duas espécies teriam passado a cooperar entre si: os lobos alimentando-se dos restos dos alimentos dos homens e os homens observando o comportamento dos lobos para melhor encontrar recursos, como água e caça (LOPES e SILVA, 2012. p. 179).
A domesticação do gato ocorreu num período bem mais recente. Segundo Genaro (2004), em torno de 4.000 a 6.000 anos, em regiões próximas ao Egito atual, uma forma selvagem africana (considerada uma das entidades da mitologia africana), é a ancestral direta do gato doméstico:
Aceita-se, atualmente, como o principal ancestral do gato doméstico a espécie selvagem africana (Kaffircat). Contudo, é possível que as formas listadas abaixo sejam uma única espécie, com pelo menos quatro formas:
Felis silvestris lybica: gato selvagem africano
F. s. catus: gato doméstico
F. s. silvestris: gato selvagem europeu
F. s. ornata: gato indiano do deserto.
(GENARO, 2004, p. 62).
Desde então, as transformações decorrentes da evolução, tanto em seres humanos quanto no cão e no gato foram sendo aprimoradas. A relação entre as pessoas e esses animais foi ficando cada vez mais estreita e o homem, seja de forma natural ou artificial, foi selecionando características que tornaram esses animais cada vez mais domesticáveis, não significando é claro, que as características selvagens tenham sido suprimidas totalmente, pois muitas destas ainda estão expressas em seus genes (AMARA, 2012). A partir dessa relação homem-animal, podem-se destacar efeitos positivos e negativos. Santana et al. (2004) afirmam que de acordo com os mais recentes estudos médicos-veterinários, a companhia dos animais para o ser humano produz os seguintes efeitos benéficos:
a) Efeitos psicológicos: diminui depressão, estresse, ansiedade e melhora o humor;
b) Efeitos fisiológicos: diminui a pressão arterial e freqüência cardíaca, aumenta a expectativa de vida e estimula atividades saudáveis;
c) Efeitos sociais: contribui para a socialização de criminosos, idosos, deficientes físicos e mentais; contribui para a melhora no aprendizado e socialização de crianças (SANTANA et al., 2004, p. 53).
Com relação aos hábitos de vida, segundo Nogueira (2009) e São Paulo (2009), o cão e o gato podem ser classificados como:
- Domiciliados - aqueles totalmente dependentes de seus tutores, mantidos dentro das residências, sendo que o acesso à rua é acompanhado;
- Semi-domiciliados - aqueles totalmente dependentes de seus tutores recebem cuidados básicos, no entanto têm acesso à rua desacompanhados;
- Comunitários ou de vizinhança – são semi-dependentes, vivem soltos nas ruas, pois não têm apenas um tutor, muitas vezes os cuidados que recebem nem sempre seguem o protocolo indicado;
- Errantes / não domiciliados/ ferais: vivem soltos, não recebem nenhuma atenção e cuidado, se alimentam de restos encontrados no lixo e estão mais sujeitos a contrair e disseminar zoonoses.
Nesse cenário, na maioria das vezes, o controle reprodutivo desses animais não é feito, tornando-se um sério problema de saúde pública. De acordo com Silva, et al. (2009), estima-se que 75% da população de cães do mundo esteja na rua e que 80% das doenças infecciosas são transmitidas por animais errantes, atingindo principalmente a população carente. No Brasil, segundo Gomes (2013) estima-se que existam 25 milhões de cães e 4 milhões de gatos abandonados, que além de serem grande porta para a disseminação de zoonoses, são responsáveis pela proliferação de ectoparasitas, por agressões, acidentes de trânsito, poluição por dejetos, poluição sonora e outras perturbações. Além disso, o volume de dejetos como as fezes desses animais em locais de circulação pública provê local de reprodução para moscas, alimento para roedores e fonte de contaminação para água e alimentos por patógenos zoonóticos.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2013), o Brasil possui uma população estimada em 52,2 milhões de cães e 22,1 milhões de gatos, sendo que no ranking mundial ocupa o 4° lugar em animais de estimação e o 2° em cães, gatos e aves canoras e ornamentais. Com uma população tão numerosa desses animais, é de extrema relevância entender que nem sempre medidas relacionadas à guarda responsável são adotadas. Santos e Silva (2016) defendem que o impasse para a compreensão da ideia de que determinados atos contra os animais se configuram como maus tratos esbarra na questão cultural. Nesse contexto, segundo os autores, destaca-se a banalização dos crimes de maus-tratos por se tratarem de “menor potencial ofensivo”. Muitas atitudes por parte do ser humano contra os animais como a violência, prisão, tortura física, privação de alimento, água e outras necessidades, além do abandono, não são vistas como crueldade, sendo justificadas muitas vezes como medidas “disciplinares”, ou mesmo “sem alternativa”, como no caso do abandono.
Ribas et al. (2013) consideram como “posse responsável” as medidas tomadas pelos responsáveis dos animais que lhes garantam a saúde e o bem estar, incluindo vacinação, vermifugação, adestração, higiene e controle reprodutivo. Em seu trabalho, Santana et al. (2004) citam a I Reunião Latino Americana de Especialistas em Posse Responsável de Animais e Controle de populações Caninas, realizada em 2003, onde dentre outras coisas, foi denominado o conceito científico para “posse responsável”. Em tal definição, o guardião do animal se compromete em assumir deveres relacionados às necessidades físicas, psicológicas e ambientais do animal, além de prevenir riscos de danos a terceiros como agressão e transmissão de doenças.
Reichmann (2000) defende que a posse responsável de animais de estimação “traduz o exercício consciente e edificante da cidadania, a educação e os hábitos culturais diferenciados de uma sociedade.” Tais pensamentos sinalizam a necessidade eminente de promover políticas públicas de teor educativo de maneira efetiva e constantes que levem a população a refletir sobre a sua contribuição de maneira atuante em questões que ponham em risco a sua própria saúde.
Atualmente, a nível mundial, nacional, estadual e municipal, existem diversas leis e políticas públicas que visam à proteção do Direito dos animais. A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em assembleia da Unesco, em Bruxelas no dia 27 de janeiro de 1978, traz 14 artigos destinados à proteção animal, definindo em seu 14° artigo que “os direitos dos mesmos devem ser defendidos por lei como o os direitos dos homens” (ONU, 1978).
O Decreto 4.645/34, em seu Art. 3° explicita que maus tratos incluem:
Abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem como deixar de ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária”; “não dar morte rápida, livre de sofrimentos prolongados, a todo animal cujo extermínio seja necessário” (BRASIL, 1934).
No Brasil, também foi sancionada a Lei n° 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 que “Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências”, sendo que em seu Artigo 32 dispõe que:
Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa; Parágrafo; § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal (BRASIL, 1998a).
Segundo Andrade et al. (2015) a Lei nº 13.131, de 18 de maio de 2001 do estado de São Paulo, conhecida como “Lei Tripoli”, hoje é tida como referência na questão ético-animal e na conduta para com os animais de companhia quando “disciplina a criação, a propriedade, a posse, a guarda, o uso e o transporte de cães e gatos na cidade”. Na referida Lei, o seu Art. 17 explicita que:
É de responsabilidade dos proprietários a manutenção de cães e gatos em condições adequadas de alojamento, alimentação, saúde, higiene e bem-estar, bem como a destinação adequada dos dejetos (SÃO PAULO, 2001).
No entanto, a superpopulação dos animais gera diversos transtornos, sobretudo em áreas urbanas, uma vez que tanto o comportamento quanto os riscos que estes expõem às pessoas, torna-se um problema sério de saúde pública, inclusive a nível mundial. Os transtornos envolvem ainda os sofrimentos aos quais os animais, sobretudo os errantes, são submetidos, como a privação de comida, água, maus tratos e falta de cuidados veterinários. Diante disso, o controle populacional dos animais de estimação, em particular o cão e o gato, foi sendo desenvolvido, revisado e adaptado ao longo do tempo. São Paulo (2009) afirma que as primeiras ações dirigidas para o controle populacional de animais ocorreram como resultado da divulgação de trabalhos de Louis Pasteur, que associava a transmissão da raiva humana por cães infectados:
Em 1880, Pasteur deu início aos estudos sobre a raiva que culminaram, um ano mais tarde, no lançamento dos primeiros manuscritos sobre essa zoonose. Seus estudos sobre a vacina contra a raiva em animais vieram no ano de 1884 e o primeiro tratamento contra a raiva humana foi realizado em 1885 (SÃO PAULO, 2009, p. 47).
Em virtude disso, durante muitos anos, a maioria dos municípios brasileiros realizou ações de captura e eliminação em massa desses animais através de eutanásia nos Centros de Controle de Zoonoses (CCZs) (MOUTINHO et al., 2015). A captura e extermínio em massa de animais soltos em vias públicas também é sustentada pela Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90) que em seu artigo 2º, § 1º determina que:
É dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1990).
Porém, essas ações não surtiram o efeito desejado, e ainda, considerando-se os aspectos legais e éticos acerca dos direitos dos animais, o controle populacional têm se mostrado mais eficaz, a longo prazo, através da esterilização cirúrgica. A respeito do controle populacional de animais errantes, o Oitavo Relatório do Comitê de Especialistas da OMS em Raiva diz:
Não existe nenhuma prova de que a eliminação de cães tenha gerado um impacto significativo na densidade das populações caninas ou na propagação da raiva. A renovação das populações caninas é muito rápida e a taxa de sobrevivência delas sobrepõe facilmente à taxa de eliminação (OMS,1999, p. 58).
Ainda de acordo com a OMS (1999), um controle populacional eficaz deve utilizar três estratégias:
Restrição da liberdade ao movimento, controle de habitat e controle da reprodução. A restrição da liberdade se dá através da guarda responsável (não deixar o cão ter acesso à rua), e pode ser tentada a partir de medidas socioeducativas. O controle de habitat pode ser feito através de educação da comunidade em diminuir o acúmulo de lixo nas ruas (a fim de evitar a livre oferta de alimentos aos cães e gatos). Já o controle da reprodução é dado através de campanhas de esterilização animal e/ou confinamento dos cães (OMS, 1999, p. 59).
Recentemente, em nível de território nacional, foi sancionada a Lei Federal Nº 13.426, de 30 de março de 2017 dispõe da política de natalidade de cães e gatos e dá outras providências quando, em seu artigo 1° cita:
O controle de natalidade de cães e gatos em todo o território nacional será regido de acordo com o estabelecido nesta Lei, mediante esterilização permanente por cirurgia, ou por outro procedimento que garanta eficiência, segurança e bem-estar ao animal”, e seu artigo 3° dispõe que “O programa desencadeará campanhas educativas pelos meios de comunicação adequados, que propiciem a assimilação pelo público de noções de ética sobre a posse responsável de animais domésticos (BRASIL, 2017b).
Muitos problemas relacionados às transgressões às leis de Direito Animal bem como a ineficácia no controle de muitas zoonoses poderiam ser evitados caso houvesse um melhor planejamento por parte do poder público. De acordo com Assis e Ribeiro (2015), faz-se necessária uma parceria consistente entre órgãos públicos e privados e da comunidade em si, através de políticas que promovam a educação visando bem estar animal, posse responsável e controle de zoonoses, desenvolvendo várias ações como palestras, discussões e controle populacional dos animais.
Segundo Vieira e Nunes (2016), não somente um programa de controle de natalidade é suficiente, como também se faz necessário o desenvolvimento de uma política integrada sustentada por três pilares importantíssimos:
O manejo populacional de cães e gatos, não se restringe apenas ao controle da reprodução desses animais, há vários pilares que o alicerçam. É fundamental que se conheça a dinâmica populacional da área em que se pretende interferir, por meio da realização de censos ou estimativas populacionais, com vistas à priorização de ações e recursos. Outro pilar, que pode subsidiar o planejamento das políticas de saúde pública é a implantação de um programa de registro e identificação de animais que formam um sistema de informação com dados que relacionam os proprietários ou tutores aos seus animais (VIEIRA e NUNES, 2016, p.11).
Diante disso, a promoção de ações que visem a sensibilização a respeito da importância da posse responsável em concomitância com a educação em saúde, são de grande valia para amenizar a problemática.
REFERÊNCIAS
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