17/12/2018

Políticas Públicas de Educação em Direitos humanos

POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

 

José Cláudio Rocha[1]

Denise A.B.F. Rocha[2]

Luiz Carlos Rocha[3]

  1. INTRODUÇÃO

O Centro de Referência em Desenvolvimento e Humanidades - CRDH da Universidade do Estado da Bahia - UNEB é um centro multiusuário de pesquisa, reconhecido como estratégico para o desenvolvimento do Estado da Bahia pela Resolução 1.247/2016 Conselho Universitário - CONSU/UNEB, com sede na Rua Gregório de Matos, n. 27, Pelourinho, Centro Histórico e Antigo de Salvador, área considerada como patrimônio cultural da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - UNESCO. Com duas linhas de pesquisa, respectivamente, Desenvolvimento e Humanidades, o CRDH/UNEB compartilha da crença de que não será possível efetivar os Direitos Humanos (DDHH) de todos e todas no Brasil e no mundo, sem (re) pensar a economia no plano local, nacional e mundial, trazendo ao conhecimento da sociedade novas formas de organização da produção mais solidária, colaborativas e inclusivas, promovendo uma melhor distribuição de poder, riqueza e renda. Em outras palavras, é preciso pensar uma economia com rosto humano[4].

O CRDH/UNEB assumiu como desafio combinar as políticas públicas de DDHH encontradas, principalmente, na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), no Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH em suas três versões (BRASIL, 2009), no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos - PNEDH (BRASIL, 2009a) e nas Diretrizes Nacional para a Educação em Direitos Humanos do Conselho Nacional de Educação - CNE (BRASIL, 2012), com as políticas para democratização da Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI) presentes na Lei 13. 243 de 2016, que institui a política de estímulo a CTI no Brasil (BRASIL, 2016), a Estratégia Nacional para Ciência, Tecnologia e Inovação (ENCTI) (BRASIL, 2018) e o Plano Nacional de Pós-Graduação - PNPG 2011 a 2020 (BRASIL, 2010). A CTI é vista tanto como um DDHH fundamental, como um meio para efetivação dos DDHH em nossa sociedade.

Com isso a missão institucional do CRDH/UNEB pode ser descrita como: aplicar o conhecimento científico na resolução de problemas educacionais, econômicos, sociais e culturais, fazendo da Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI) um eixo fundamental para o desenvolvimento sustentável do país, com foco na responsabilidade do Estado com a consolidação da cidadania e respeito à dignidade humana, como previsto no artigo 1º da Constituição Federal de 1988.

Como base nessa missão os DDHH são um eixo articulador para todas as atividades de pesquisa, ensino e extensão desenvolvidas pelo Centro em todo o Estado da Bahia, especialmente, a Região Metropolitana de Salvador (RMS), uma vez que o Centro Histórico e Antigo de Salvador, pela sua importância econômica e turística para o Estado, funciona como um centro de convergência das redes intelectuais e de prática articuladas pelo CRDH/UNEB.

Foi por conta dessa missão institucional que o CRDH/UNEB foi indicado pela universidade para coordenar as ações do Comitê do Pacto Nacional Universitário de Respeito à Educação para a Diversidade, Direitos Humanos e Cultura da Paz ou, simplesmente, Pacto de Educação em Direitos Humanos coordenado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI/MEC). Nos últimos dois anos o CRDH/UNEB tomou o Pacto como uma das suas principais ações, realizando uma série de atividades para a promoção das políticas públicas educacionais no campo dos direitos humanos[5].

O estudo das políticas públicas, no entanto, requer o estudo de seus múltiplos conceitos e a adoção de uma definição que esteja alinhada com os propósitos e missão do grupo. A definição é a tentativa de se enunciar de uma maneira muito precisa o uso comum e corrente de uma expressão e seus limites. A definição é em geral algo que se pode dizer, em geral, em poucas palavras. O conceito é mais complexo, comportando múltiplas dimensões e visões de mundo, dependendo do contexto em que é empregado. Com isso, é possível se aplicar o conceito sem que se possa ter uma definição precisa do objeto.

A proposta desse artigo é, portanto, discutir a definição para as políticas públicas utilizada pelo CRDH/UNEB, fruto do consenso de seus grupos de pesquisa sobre o tema. A importância do grupo de pesquisa está justamente aqui, ou seja, o conhecimento produzido não parte de uma pesquisa em especial, mas do consenso entre os pesquisadores do grupo sobre determinado tema ou categoria de pesquisa. A realidade social é, em verdade, como um cubo em que cada pesquisador pode ver apenas uma face e o conhecimento gerado é fruto da visão das várias faces do objeto expressadas pelos pesquisadores, como apresentado na Figura 01.

FIGURA 01 - REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE SOCIAL

Uma imagem contendo objeto

Descrição gerada com alta confiança

Figura 1 - Representação da realidade social em forma de um cubo - Fonte Elaboração dos autores

Essa proposta justifica-se pela necessidade de compartilhar essa definição com os diversos atores para efetiva compreensão do alcance e limite das políticas públicas no campo dos DDHH. O objetivo é difundir a concepção formulada pela equipe do centro de pesquisa, promovendo o debate e aprimorando a definição, providência essencial ao desenvolvimento e efetivação das políticas públicas no estado.

Nessa discussão é fundamental definir o “lugar” da sociedade civil nesse processo, pois o Estado tem maio clareza de seu papel. Definir não só o lugar, mas as estratégias que podem ser adotadas, bem como os mecanismos existentes de articulação da sociedade civil em torno de uma política pública.

Desejamos que esse artigo possa estimular pesquisadores, professores, estudantes e professores investigadores da educação básica a estudar as políticas pública ampliando essa discussão em todas as suas dimensões.

Por fim queremos agradecer a Universidade do Estado da Bahia pela confiança no CRDH/UNEB, a equipe do MEC/SECADI pela acolhida em todas as dimensões do processo; as instituições que apoiam o trabalho do CRDH/UNEB como a Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado da Bahia (FAPESB), CNPQ, CAPES, entre outros. Sem esse apoio seria impossível realizar esse trabalho.

2. POLÍTICAS PÚBLICAS É PRECISO CONHECER

Podemos afirmar que a história do CRDH/UNEB tem sua origem relacionada a política de Educação em Direitos Humanos - EDH no Brasil, principalmente, ao monitoramento do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos - PNEDH (BRASIL, 2009a).

As ações que deram origem a este centro de investigação tiveram início no ano de 2006 com a certificação do primeiro grupo de pesquisa junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPQ, na mesma época em que o Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos - CNEDH consolidava a versão definitiva do PNEDH em Brasília (BRASIL, 2009a).

O Grupo de Pesquisa em Gestão, Educação e Direitos Humanos - GEDH foi criado com a proposta de produzir e difundir conhecimento sobre a EDH, especialmente, à produção e difusão de conhecimento sobre a cultura de EDH, desenvolvendo atividades de pesquisa, ensino e extensão, tendo como eixo articulador os DDHH, além de promover o monitoramento dessas políticas (PNDH, PNEDH e Plano estaduais).

Nessa perspectiva, os resultados não demoraram a chegar, no ano de 2007 o GEDH/UNEB participou do Programa de Apoio à Extensão Universitária (PROEXT) 2007 com um projeto em EDH que acabou recebendo o Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos, na categoria pesquisa e formação, motivando a ampliação das ações do grupo de pesquisadores até a condição atual de Centro Multiusuário de Pesquisa[6].

O reconhecimento do CRDH/UNEB ampliou as linhas de investigação sem com isso retirar a condição dos DDHH como pedra angular de todo o trabalho de pesquisa, ensino e extensão.

A responsabilização do Estado com a cidadania, o respeito à dignidade humana, a emancipação dos sujeitos individuais e coletivos (movimentos sociais), o combate a todas as formas de opressão e discriminação, são objetivos do Centro de pesquisa.

Sendo as políticas públicas em DDHH um eixo central das ações do CRDH/UNEB a busca de um referencial teórico-metodológico adequado se tornou uma exigência natural desse processo. Nesse aspecto, de ora em diante, vamos apresentar a definição de políticas públicas que vem sendo estudada pelos grupos de pesquisado do Centro, principalmente, na disciplina Políticas Públicas, Direitos Humanos e Educação do Programa de Pós-Graduação em Gestão e Tecnologia aplicada à Educação (GESTEC).

2.1. Democracia participativa na Constituição Federal de 1988

As políticas públicas em geral têm sua origem na segunda metade do século XX depois da Segunda Guerra Mundial. Via de regra, ouvimos falar que os DDHH podem ser divididos em antes e depois a segunda grande guerra. O mesmo acontece com a ideia de políticas públicas, essa surge com a ressignificação da “esfera pública internacional”, no momento em que organizações da sociedade civil organizada passaram a integrar as missões internacionais de reconstrução do mundo pós-guerra. Essas instituições que tiveram sua origem em ações filantrópicas de ajuda humanitária, com o tempo foram migrando para outras áreas como organização da sociedade civil e atuação junto ao parlamento dos Estados, tentando promover leis mais benéficas a toda a sociedade[7].

O marco legal no Brasil para as políticas pública é a Constituição Federal de 1988 que consagrou uma nova ordem jurídica e política para o país (BRASIL, 1988) elevando os DDHH a condição de norma constitucional, entre eles, o direito de participação política na gestão do Estado. As inovações introduzidas pela CF/1988 colocaram o Brasil como uma das nações de legislação mais avançada no mundo no que diz respeito à proteção à cidadania e aos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais.

Essas inovações, contudo, não surtiram o efeito desejado na medida em que a sociedade brasileira desconhece, em sua maioria, quais são os seus direitos? onde estão esses direitos? em que medida eles podem ser exercidos? A quem recorrer em de violação a esses direitos? isso sem falar das ameaças de retrocessos que pairam sobre nossa jovem democracia constantemente[8].

Nas palavras de Piovesan, com a Constituição Cidadã de 1988 a uma redefinição do Estado Brasileiro, bem como, dos Direitos Fundamentais, que passaram a ter um delineamento constitucional de um Estado de Bem-Estar Social (PIOVESAN, 2003).

Para Rocha, com a CF/1988 o Estado Brasileiro passou a ter as funções de Estado regulador, informador, promotor e defensor da Cidadania e da dignidade humana. Em outras palavras, a CF/88 atribui ao Estado brasileiro a função de regular as políticas públicas de proteção à pessoa humana; informar os cidadãos sobre o alcance e limites dessas políticas; (ROCHA, 2009).

Desde o seu preâmbulo até as disposições finais a Carta Constitucional determina a constituição de um Estado Democrático e de Direito destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais; a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a Justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Dentro os princípios que alicerçam o Estado Brasileiro destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa humana, Artigo 1º, Incisos II e III da CF/1988 (PIOVESAN, 2003).

Mais adiante a CF/1988 consagrou, entre seus princípios fundamentais, a Participação Popular na gestão pública como direito à dignidade da pessoa humana. Em seu artigo 1º, parágrafo único, o legislador constituinte expressa o princípio da soberania popular pelo qual todo Poder emanada do povo que o exerce diretamente, ou por representantes eleitos, na forma prevista na Constituição. Segundo Dallari, esse princípio reúne as concepções de democracia direta e democracia representativa, de modo a somar seus melhores efeitos em benefício da coletividade, objetivo final do Estado e da Administração Pública (DALLARI, 1994).

Nunca é demais lembrar disso, que a participação cidadã prevista na CF/1988 é um princípio fundamental inerente à democracia[9], garantindo aos indivíduos, grupos e associações, o direito não apenas à representação política, mas também à informação e à defesa de seus interesses e de toda a sociedade, possibilitando-lhes, ainda, a atuação e efetiva no planejamento, execução, controle e avaliação de bens e serviços públicos.

Essa noção de participação cidadã está intrinsecamente ligada à própria concepção de cidadania que está prevista em nossa Carta Magna que vai além da concepção liberal de titularidade de direitos civis e políticos, que reconhece o indivíduo como pessoa integrada na sociedade, onde o funcionamento do Estado estará submetido a vontade popular, como base e meta essencial do regime democrático do Estado de Direito (SILVA, 2018).

A participação cidadã significa a satisfação da necessidade do cidadão como indivíduo ou como grupo, organização ou associação de atuar pela via legislativa, administrativa ou judicial no amparo do interesse público, que se traduz nas aspirações de todos os segmentos sociais[10].

Segundo Rocha, um dos primeiros teóricos a falar da democracia participativa foi Macpherson. Ele considerava o regime soviético uma forma de institucionalização, ainda que falha, da democracia direta. Mesmo se o estudo do caráter dos regimes ditos socialistas está longe de ter avançado, poucos sustentariam hoje que eles tenham configurado algum tipo de democracia. Na verdade, muito pouco tem a ver as atuais experiências de democracia direta com os modelos conceituais formulados por Macpherson (ROCHA, 2009).

No seu livro A democracia liberal, Macpherson mostra-se favorável à democracia participativa, combinada com a representativa "um sistema piramidal com a democracia direta na base e a democracia por delegação em cada nível depois dessa base". Trata-se de um sistema de delegação sequenciado para cima, com a organização de conselhos de cidades, da região, até o topo da pirâmide, com a organização de um conselho nacional (MACPHERSON, 1978).

Para este autor existem dificuldades para a construção de uma democracia participativa nos moldes das democracias ocidentais, estimando que os grupos de pressão organizados na sociedade civil, não teriam condições de harmonizar a lógica interna de seu funcionamento e/ou defesa de seus interesses particulares, com o envolvimento de seus integrantes em práticas participativas voltadas para o bem comum (MACPHERSON, 1978).

Para Rocha, só há participação popular efetiva quando existe democracia participativa, isto é, quando o cidadão pode apresentar e debater propostas, deliberar sobre elas e, sobretudo, mudar o curso de ação estabelecida pelas forças constituídas e formular cursos de ação alternativos. Isto é, sempre que houver formas de o cidadão participar, decidindo, opinando, diretamente, ou de forma indireta, por meio de entidades que integra, a respeito de uma gama diversificada de instituições, no âmbito da sociedade (família, empresas, mídias, clubes, escolas etc.) ou na esfera pública (conselhos, orçamento participativo, plebiscito, referendo etc.) (ROCHA, 2009).

Fica claro, portanto, que a democracia participativa não se confunde com a democracia representativa, embora possa coexistir perfeitamente com ela, como, aliás, ocorre no Brasil. O delineamento constitucional brasileiro é de um modelo de democracia representativa com princípios e institutos de participação direta do cidadão no processo decisório governamental.

Outra contribuição importante para a formulação da concepção de democracia participativa foi a teoria de Nicos Poulantz sobre a democracia direta formulada nos anos 70. Na perspectiva de Poulantz, a disseminação da democracia direta, sob a forma de focos embrionários de poder popular se confundiria com o desabrochar das instituições socialistas. Para Poulantz a transição do capitalismo para o socialismo consistiria em impulsionar a proliferação de centros de democracia direta, a partir das lutas populares que extravasam sempre, e de muito, o Estado Poulantz apud (ROCHA, 2009).

No Brasil Weffort, afirma que a luta pela consolidação da democracia participativa em nosso país se torna uma estratégia, utilizada pelos movimentos sociais, ONGs, igreja etc. para efetivação da cidadania e, conseqüentemente, a instalação de uma sociedade mais justa e igualitária. Para aqueles que consideram a democracia um regime fundamental e a reforma um instrumento válido para a transformação social, a democracia participativa se constitui em ingrediente indispensável, Weffort apud (ROCHA, 2009).

Por fim, podemos concluir que a participação veio a dar a tônica contemporânea da democracia no Brasil. Cumpre-se, portanto, examinar a participação popular enquanto requisito essencial à cidadania. Dentro dessa realidade e com base no texto da Declaração Universal de 1948, podemos fixar as linhas de um novo direito social em formação, representado pelo direito que tem cada pessoa a participar ativamente no processo de desenvolvimento de sua comunidade ou de seu município.

2.2. Participação cidadã e direitos humanos

O despertar da sociedade civil e a participação ativa dos diversos setores no processo de desenvolvimento sustentável constituem fenômenos marcantes da história atual. A substituição das antigas formas paternalistas, autoritárias e clientelistas pelas práticas e processos democráticos, em que o cidadão passa a atuar, fiscalizar e tomar iniciativas, através de comunidades, grupos de múltipla atuação e movimentos sociais, passa a ser uma exigência àquelas sociedades que querem se considerar verdadeiramente democráticas.

Ser cidadão não se trata apenas de receber os benefícios do progresso, mas de tomar parte nas decisões e no esforço para sua realização (dever cívico). Em lugar de ser tratado como objeto das atenções paternalistas do Estado, o cidadão passa a ser reconhecido como sujeito histórico e protagonista no processo de desenvolvimento.

 Trata-se de uma exigência decorrente da natureza inteligente e responsável da pessoa humana, na medida em que se queira respeitar a dignidade da pessoa humana, é preciso assegurar-lhe o direito de participar ativamente na solução dos problemas que lhe dizem respeito.

O princípio da participação cidadã, contudo, previsto em nosso ordenamento tem sido interpretado de várias maneiras pelos diversos atores sociais, seja através de estratégias de manipulação da opinião pública (populismo), seja para negar qualquer condição de institucionalidade à participação popular.

Nesse aspecto, Rocha (ROCHA, 2009) propõe um quadro teórico-referencial que agrupa as diversas concepções sobre participação cidadã em três categorias básicas de análise teórica da participação cidadã na gestão pública, que são:

  • Participação comunitária: a ideia da participação comunitária apareceu no início deste século, representando um novo padrão de relação Estado-sociedade no setor da educação, para dar respostas ao grave problema da relação entre pobreza e educação. Caracterizou-se por dirigir-se aos mais pobres, através das escolas comunitárias, por ressaltar os valores da educação, do trabalho e do coletivismo como caminhos do progresso. Para estas concepções a comunidade era definida como social e culturalmente homogênea, com identidade própria e uma suposta predisposição à solidariedade e ao trabalho voluntário de auto-ajuda. O Estado, por sua vez, estimula em muitos casos, a capacidade de a comunidade unir-se, organizar-se, esforçar-se, enquanto solução em si mesma. A população deixa de ser alvo inerte de uma ação controladora e passa a ser chamada a cumprir um papel minimamente ativo e consciente.
  • Participação contestatória: Nos anos 70, a participação passa a ter um sentido explícito de luta e contestação contra as limitações governamentais à tentativa de conquista da educação pelas classes populares. O espaço de participação ultrapassa os limites do setor de educação, alcança o conjunto da sociedade e do Estado e ocorre uma radicalização da prática ao se articular a mobilização dentro das instituições de educação, como as formas de luta, resistência e organização das classes populares. Para estas teorias, qualquer forma de aproximação com o Estado è vista como cooptação e o sentido da participação é o de acumular forças para a batalha permanente pela mudança geral do modelo existente.
  • Participação popular cidadã e o controle social do Estado: o Estado democrático e de direito reconhecem a necessidade de defender a sociedade contra os eventuais excessos no funcionamento da máquina estatal, através da divisão de funções entre os poderes e de mecanismos recíprocos de controle, em nome da sociedade. A novidade nos anos 80 é justamente a idéia de que esse controle seja feito pela sociedade através da presença e da ação organizada de seus segmentos. O processo de abertura política e redemocratização do país trouxe à cena novos atores e orientou a ação para a criação de espaços públicos não-estatais de pactuação e superação dos obstáculos pelo diálogo e pelo consenso. Do lado da sociedade, torna-se visível a presença de diversos atores sociais, cuja diversidade de interesses e projetos integra a cidadania, disputando com igual legitimidade espaço e atendimento pelo poder estatal.

Na participação cidadã, a categoria central deixa de ser a comunidade ou o povo e passa a ser a sociedade civil organizada, tendo sua base na universalização dos direitos humanos sociais, econômicos, culturais e ambientais, na ampliação da dimensão da cidadania e da democracia, e numa nova compreensão do caráter e do papel do Estado pós-moderno.

A construção destas categorias de análise nos permite ter uma melhor compreensão do marco referencial da participação de setores populares na definição das políticas públicas, revelando os estágios da reforma democrática do Estado brasileiro, que parece ainda estar em curso.

A requalificação da participação cidadã nos termos de uma participação que interfere, interage e influência na construção de um senso de ordem pública regida pelos critérios da equidade e justiça, corresponde a um processo complexo e contraditório de relação entre sociedade civil, Estado e mercado. Neste processo, os atores redefinem seus papeis no fortalecimento da sociedade civil, através da atuação organizada dos indivíduos, grupos, associações, tendo em vista, de um lado, a assunção de deveres e responsabilidades políticas e, do outro lado, a criação e exercício de direitos, no controle social do Estado e do Mercado em função de parâmetros definidos e negociados nos espaços público.

Nesta perspectiva, a participação cidadã diferencia-se das outras na medida em que não busca realizar funções próprias do Estado, como a prestação de serviços. Não se constitui, outrossim, na mera participação em grupos ou associações para defesa de interesses específicos, ou simples expressão de identidades. Essa dimensão da participação popular, própria da sociedade civil, é a que garante o exercício da democracia para além dos espaços formais de poder e da representatividade eleitoral. Esta perspectiva leva em conta os interesses do conjunto da população, em especial dos excluídos e dos pobres, e tenta refletir uma visão abrangente e integrada do território, da sociedade e das questões do desenvolvimento e que se volta estrategicamente para o médio e o longo prazo.

A participação cidadã é vista como um processo capaz de gerar uma nova dinâmica de organização social, fomentando a intervenção da população nas políticas públicas. Não se esgota dentro do projeto, mas relaciona-se diretamente com questões amplas, tais como democratização, equidade social, cidadania e defesa dos direitos humanos. Neste sentido, requer a democratização do poder sobre o uso de recursos financeiros e sobre a definição e implementação de políticas públicas.

2.3. Políticas Públicas e Direitos Humanos

Nesse prisma, políticas públicas podem ser Leis, Decretos, Programas ou Projetos que estabelecem princípios e diretrizes para atuação do Poder Público. São regras e procedimentos que regem a relação entre Estado - Sociedade Civil - Mercado na construção do Desenvolvimento Social Sustentável. São formas de reparação social e ações afirmativas junto a populações vulneráveis.  São mediação entre o Estado e a sociedade civil que se dão na esfera pública explicitadas em documentos que orientam a ação do Poder Público. Devem ser também consideradas as não-ações como forma de manifestação política, pois representam opções e orientações políticas adotadas.

As políticas públicas traduzem, no seu processo de elaboração e implantação e, sobretudo, em seus resultados, formas de exercício do poder político, envolvendo a distribuição e redistribuição de poder, o papel do conflito social nos processos de decisão, a repartição de custos e benefícios sociais. Para que tenham legitimidade social, considerando que as políticas são fruto da correlação de forças dentro da sociedade, devem ser fruto do consenso social construído na esfera pública, através dos múltiplos mecanismos de participação cidadão como conselhos, orçamento participativo, entre outros.

Elaborar uma política pública significa definir o que, por que, para que, como e para quem a política será executada. Nem toda política de Estado pode ser considerada pública. As políticas fiscal, monetária, econômica, entre outras não podem ser, em princípio, consideradas políticas públicas, apesarem de ser públicas. Em sentido estrito, as políticas públicas são políticas sociais onde deve ser considerado a quem se destina, os resultados e benefícios alcançados e, principalmente, se o seu processo de elaboração foi submetido ao debate público. A participação do cidadão é uma condição essencial para caracterização de uma política pública.

As políticas públicas em direitos humanos, especialmente, em EDH pressupõe o direito à representação dos vários campos sociais, ou seja, da diversidade, em que os grupos tenham voz, presença no espaço público e, principalmente, capacidade de intervenção em todo o processo. Cabe ao Estado, como base nos princípios constitucionais, promover essa participação da forma mais intensa possível. As políticas públicas de direitos humanos, por sua vez, são a materialização dos direitos humanos.

As Abordagens Baseadas em Direitos Humanos (HRBA) nos permitem trabalhar com as políticas públicas no campo dos direitos humanos. A HRBA tem como referência a noção de desenvolvimento humano, normativamente orientados pelos princípios de Direitos Humanos presentes nas declarações, pactos, convenções e tratados internacionais, a exemplo da Carta Internacional dos Direitos Humanos que é constituída pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDHESC) e pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e seu protocolo facultativo.

Outros documentos importantes para a HRBA são: a Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento (1986); a Declaração de Direitos Humanos e Programa de Ação de Viena (1993); a Declaração e Objetivos Internacionais do Milênio da ONU e, mais recente, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). O conjunto desses documentos internacionalmente aceitos, que protegem os direitos humanos, fornece padrões reconhecidos globalmente do que significa viver com dignidade, mostrando-se também, como sistema jurídico de considerável força e legitimidade social no plano internacional e nacional, desde o fim da segunda guerra mundial. A abordagem com base em direitos para o desenvolvimento é uma estrutura conceitual que assenta em padrões e operacionalização voltadas para a promoção e proteção dos direitos humanos (ROCHA, 2013).

A RBA integra normas, padrões e princípios do sistema internacional de direitos humanos em planos, políticas e processos de desenvolvimento. As normas e standards são aqueles contidos no rico acervo de tratados e declarações internacionais, como visto, e esses princípios incluem: igualdade, equidade, prestação de contas, empoderamento e participação. A HRBA é também uma estratégia para efetivar Direitos Humanos.  Essa estratégia apaga as distinções entre direitos ao desenvolvimento e direitos humanos e tem como objetivo reduzir a dependência das comunidades de ajuda externa e melhorar a capacidade dos governos de atender as necessidades da população. Com essa estratégia afirmamos que na base das abordagens baseadas em direito está não só o trabalho de defesa e promoção dos direitos humanos da população, mas a construção de políticas públicas e ações afirmativas junto ao Estado. (ROCHA, 2013).

A metodologia visa reforçar a capacidade dos detentores da obrigação (governo/Estado) e capacitar detentores de direitos (sujeitos de direito) a cobrar das autoridades a efetivação desses direitos. Pretende, portanto, qualificar uma comunidade a reivindicar a efetivação de seus direitos por parte do Estado. Preocupa-se com a emancipação individual e coletiva das pessoas, com a autonomia do sujeito, com o empoderamento da comunidade que se quer dotada dos meios para reivindicar seus direitos junto ao Estado.

A HRBA expressa ligação entre os direitos (interdependência, interconexão), exige prestação de contas por parte do Estado, governos e agentes públicos em sentido amplo (accountability), visa o empoderamento das comunidades reforçando a autonomia individual e coletiva dos sujeitos de direito, reforça a ideia de participação do indivíduo na vida pública, de proposição de políticas públicas, de ações afirmativas, da construção de espaços públicos de participação. Defende a criação pelo Estado de mecanismos administrativos, judiciais, políticos e sociais de participação da comunidade, além de defender a equidade, a não discriminação e atenção a grupos vulneráveis.

A definição de objetivos de desenvolvimento em termos de direitos específicos, como uma titulação legalmente exigível, é um elemento essencial da perspectiva baseada em direitos, assim como a criação de vínculos normativos e instrumentos que liguem os direitos humanos em nível internacional, regional e nacional.

3. CONCLUSÃO

Ao final desse artigo podemos concluir que as políticas públicas têm uma intrínseca relação com os direitos humanos, na medida em que elas são a possibilidade concreta de materialização desses direitos.

Ao Estado brasileiro a Constituição Federal reservou o papel de regular essas políticas, assim como informar o cidadão, promover e defender a cidadania e os direitos humanos.

As políticas públicas são, via de regra, políticas sociais em que o Estado deve promover a inclusão social da população. Elas podem assumir diversas formas, podem ser uma lei, um decreto, ou mesmo um programa ou um projeto. Podem ter um caráter universalizante, atingindo todas as pessoas, ou atender a um público específico.

A responsabilidade do Estado para a consolidação da cidadania está relacionada a três elementos essenciais da cidadania: a indivisibilidade dos direitos; a universalidade dos direitos humanos e o processo de especificação do sujeito de direito.

Quanto à indivisibilidade dos Direitos Humanos, cabe ao Estado brasileiro a proteção e defesa dos direitos civis e políticos, bem como a implementação e realização dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.

Quanto à universalidade dos DDHH, a responsabilidade do Estado concentra-se no desafio de extensão universal da cidadania, sem qualquer discriminação. Concentra-se ainda na tarefa de conferir cumprimento às obrigações internacionais assumidas relativamente aos direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Por fim, com relação ao processo de especificação do sujeito de direito, cabe ao Estado instituir POLÍTICAS PÚBLICAS E AÇÕES AFIRMATIVAS que introduzam um tratamento diferenciado e especial aos grupos sociais que, por exemplo, sofram padrões discriminatórios. Em suma, a responsabilidade do Estado na consolidação da cidadania está condicionada ao fortalecimento de estratégias que sejam capazes de implementar os três elementos essenciais à cidadania plena.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Câmara dos Deputados, 1988. Disponivel em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 07 2018 2018.

BRASIL, C. N. D. E. C. P. Parecer 008/2012 Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. 01. ed. Brasília: MEC/CNE, v. 01, 2012.

BRASIL, L. 1. 2. D. 1. D. J. D. 2. Dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação e altera a Lei no 10.973, de 2 de dezembro de Dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica. Brasília: [s.n.], 2016.

BRASIL, M. D. C. T. I. E. C. Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e inovação - ENCTI 2016 a 2022. 1. ed. Brasília: Ministério da Ciência, tecnologia, inovações e Comunicações, v. 1, 2018.

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BRASIL, S. E. D. D. H. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. In: ROCHA, J. C. Guia de educação em direitos humanos. 1. ed. Salvador: UNEB, 2009a. Cap. 2, p. 15-48.

DALLARI, D. D. A. O que é Participação Política. Rio de janeiro: Brasiliense, 1994.

MACPHERSON, C. B. A democracia liberal. Rio de Janeiro: Sahar, 1978.

PIOVESAN, F. A responsabilidade do Estado na consolidação da cidadania. In: PIOVESAN, F. Temas de direitos humanos. 2ª. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. Cap. 13, p. 327 a 339.

ROCHA, J. C. Teoria do Estado Democrático: Os Mecanismos de Participação Popular em Debate. Salvador: EDUNEB, 2009.

ROCHA, J. C. Introdução a Abordagem Baseada em Direitos. Curitiba: Appris, 2013.

SILVA, J. A. Direito Constitucional Positivo. 41. ed. São Paulo: Malheiros, 2018.

 

[1] Advogado, economista e professor titular da UNEB é bolsista Desenvolvimento Tecnológico do CNPq nível 1-A. Mestre e doutor em educação, integra a coordenação do CRDH/UNEB.

[2] Pedagoga, mestre e doutora em educação. Professora e analista universitária integra a coordenação do CRDH/UNEB;

[3] Professor de educação físico e sociólogo, tem mestrado e doutorado em educação. Integra a Coordenação do CRDH/UNEB;

[4] Nesse prisma o CRDH/UNEB dedica-se, atualmente, ao estudo das chamadas novas economias que são: a economia solidária, a economia criativa, a colaborativa, multimoedas, dos setores públicos, entre outras, que são trazidas ao Centro, em primeira mão, pelos movimentos sociais.

[5] O CRDH/UNEB apresentou a SECADI/MEC, através do portal na internet do Pacto, uma série de ações que foram realizadas nesses 02 (dois) anos como: a realização do curso de extensão em Educação em Direitos Humanos (80h): a oferta do Tópico Especial em Políticas Públicas, Direitos Humanos e Educação (45h) no GESTEC/UNEB; a realização de duas versões do Seminário de Metodologias Participativa e Extensão em Comunidades; a seleção de estudantes de pós-graduação (mestrado e doutorado) para pesquisa em EDH; participação em eventos e minicursos sobre a temática; participação em comissões das pró-reitorias acadêmicas relacionadas a temática, a realização do seminário Espirais do Conhecimento - EPICO, entre outras ações.

[6] O GEDH/UNEB recebeu o Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos - na categoria formação e pesquisa com o projeto: Educação Jurídica Popular em Direitos Humanos: Construindo Redes de Educação Cidadã, no ano de 2008.

[7] À título de ilustração, a Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE), considerada a primeira OSC brasileira, tem sua fundação no ano de 1961 tendo suas bases ligadas ao trabalho com o associativismo e cooperativismo, mas o golpe de 64 fez com que esses rumos tivessem de ser redefinidos. A resistência a ditadura, a formação das oposições sindicais e o movimento comunitário passaram a ser o foco principal da entidade.

[8] A educação para a cidadania ou educação cidadã é vital para a Democracia na medida em que reconhece que a primeira providência na luta contra o autoritarismo e opressão social é a (in)formação do cidadão sobre seus direito e deveres cívicos decorrentes da cidadania, e de como acionar o Estado em defesa de direitos que possam estar sendo violados. Desse modo, a educação se legítima quando promove à cidadania em relação ao indivíduo e a democracia em relação a sociedade.

[9] Democracia e Direitos Humanos são faces de uma mesma moeda, é no sistema democrático que se consegue proteger de forma mais eficaz a sociedade das violações a esses direitos.

[10] Outros artigos da CF/1988 estabelecem a participação do cidadão na gestão pública, seja através da participação da comunidade no sistema de saúde e seguridade social (art. 198,III e art.194,VII), seja como participação efetiva dos diferentes agentes econômicos envolvidos em cada setor da produção (Art. 187). E ainda os casos da assistência social e das políticas referentes à criança e ao adolescente onde a participação da população se dá "por meio de organizações representativas" (art. 204, 22).

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