19/09/2016

Política de Saúde Mental: da exclusão ao resgate da cidadania Análise dos residenciais terapêuticos Privados e o Direito de ser Pessoa

A reestruturação das políticas públicas referentes à atenção em saúde mental foi impulsionada pelo movimento da Reforma Psiquiátrica. Tal movimento iniciou na década de 1970, através do movimento dos trabalhadores em saúde mental com intuito de mudança no modo de cuidar dos indivíduos com sofrimento psíquico.

Nas décadas de1980 e 1990 marcam as discussões em prol da reestruturação da assistência psiquiátrica. Em um primeiro momento a Reforma Psiquiátrica possuía como escopo a humanização no atendimento ao paciente internado em hospital psiquiátrico, todavia, no avançar das discussões, houve ampliação referente ao modo de atenção na saúde mental, na qual a equipe deve se propor a resgatar a cidadania do sujeito.

Neste contexto, surgem os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) como serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico. No entanto, a reinserção dos pacientes egressos dos hospitais psiquiátricos e/ou deficientes mentais não se dá de forma tranquila, haja vista que a sociedade ao longo da história sempre procurou excluir o portador de deficiência mental.

Vale destacar, que embora os avanços na política de saúde mental foram significativos existe ainda resistência quanto à inserção do deficiente mental no convívio social, as famílias rechaçam a ideia de ter um indivíduo com transtornos psíquicos partilhando do mesmo circulo familiar.

Não obstante, muitos egressos dos manicômios não possuem identificação quanto a sua origem o que impossibilita a aproximação familiar.

Diante deste cenário, surgem as “Casas de Doentes Mentais” na modalidade privada, com características asilares, com metodologias avessas à estabelecida na política de saúde mental em que não se preconiza o emponderamento do indivíduo e o fortalecimento da cidadania.

 

 

A política de atenção à saúde mental

O marco regulatório quanto à atenção a saúde mental no Brasil se dá com a Lei nº 10.216/2001 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, veio estabelecer como regra o direto do portador de transtorno mental ser tratado com humanidade e respeito, no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, estabelecendo ainda como política anti-manicomial, que a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

Assim, segundo a legislação, o tratamento em regime de integração será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer e outros.

Ademais, a política de saúde mental veda expressamente a internação de pacientes com transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no §2º[1] e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do artigo 2º[2].

Logo, aduz que a internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracteriza os seus motivos, estabelecendo como tipos de internação a voluntária, involuntária e a compulsória, sendo certo que no caso de internação involuntária ou voluntária se faz necessária autorização de medico registrado junto ao CRM do Estado onde se localiza e o estabelecimento. E na internação involuntária deverá haver comunicação ao Ministério Público em 72 horas.

Nas hipóteses em que não se fizer necessária mais a internação, como regra o paciente deverá ser submetido a tratamento ambulatorial amparado no seio de sua família, e somente nas hipóteses em que efetivamente não dispuser de familiares ou com os mesmos não puder contar, será inserido em residências terapêuticas as quais, por sua vez, devem estar ligadas aos CAPS, centros de atenção psicossocial.

Já a portaria 106/2000 do Ministério da Saúde prevê ainda a criação de serviços residenciais terapêuticos em saúde mental para o atendimento do portador de transtorno mental egresso de internações psiquiátricas de longa permanência e a portaria 1.220/2000 regulamentou a portaria 106 para fins de cadastro e financiamento no SIA/SUS.

Como regra os serviços seriam governamentais, excepcionalmente admitindo-se natureza não governamental desde que entidades sem fins lucrativos, desde que contassem com Projetos Terapêuticos específicos aprovados pela Coordenação Nacional de Saúde Mental;  estivessem integrados à rede de serviços do SUS, municipal, estadual ou por meio de consórcios intermunicipais, cabendo ao gestor local a responsabilidade de oferecer uma assistência integral a estes usuários, planejando as ações de saúde de forma articulada nos diversos níveis de complexidade da rede assistencial; estivessem sob gestão preferencial do nível local e vinculados, tecnicamente, ao serviço ambulatorial especializado em saúde mental mais próximo; a critério do Gestor municipal/estadual de saúde, os Serviços Residenciais Terapêuticos poderiam funcionar em parcerias com organizações não-governamentais (ONGs) de saúde, ou de trabalhos sociais ou de pessoas físicas nos moldes das famílias de acolhimento, sempre supervisionadas por um serviço ambulatorial especializado em saúde mental.

Dentre outros requisitos tem-se que são características físico-funcionais dos Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental:

6.1 apresentar estrutura física situada fora dos limites de unidades hospitalares gerais ou especializadas, seguindo critérios estabelecidos pelos gestores municipais e estaduais;

6.2 existência de espaço físico que contemple de maneira mínima:

6.2.1 dimensões específicas compatíveis para abrigar um número de no máximo 08 (oito) usuários, acomodados na proporção de até 03 (três) por dormitório.

6.2.2 sala de estar com mobiliário adequado para o conforto e a boa comodidade dos usuários;

6.2.3 dormitórios devidamente equipados com cama e armário;

6.2.4 copa e cozinha para a execução das atividades domésticas com os equipamentos necessários (geladeira, fogão, filtros, armários etc.);

6.2.5 garantia de, no mínimo, três refeições diárias, café da manhã, almoço e jantar.

Art. 7.º Definir que os serviços ambulatoriais especializados em saúde mental, aos quais os Serviços Residenciais Terapêuticos estejam vinculados, possuam equipe técnica, que atuará na assistência e supervisão das atividades, constituída, no mínimo, pelos seguintes profissionais:

a.       01 (um) profissional médico;

  1. 02 (dois) profissionais de nível médio com experiência e/ou capacitação específica em reabilitação profissional.

Art.8.º Determinar que cabe ao gestor municipal /estadual do SUS identificar os usuários em condições de serem beneficiados por esta nova modalidade terapêutica, bem como instituir as medidas necessárias ao processo de transferência dos mesmos dos hospitais psiquiátricos para os Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental.

Art. 9.º Priorizar, para a implantação dos Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental, os municípios onde já existam outros serviços ambulatoriais de saúde mental de natureza substitutiva aos hospitais psiquiátricos, funcionando em consonância com os princípios da II Conferência Nacional de Saúde Mental e contemplados dentro de um plano de saúde mental, devidamente discutido e aprovado nas instâncias de gestão pública.

Art.10 Estabelecer que para a inclusão dos Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental no Cadastro do SUS, deverão ser cumpridas as normas gerais que vigoram para cadastramento no Sistema Único de Saúde e a apresentação de documentação comprobatória aprovada pelas Comissões Intergestores Bipartite.

 

Vale destacar ainda que a Portaria 106 de 11/02/2000 do Ministério da Saúde aduz que:

(…) os Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental constituem uma modalidade assistencial substitutiva da internação psiquiátrica prolongada, de maneira que, a cada transferência de paciente do Hospital Especializado para o Serviço de Residência Terapêutica, deve-se reduzir ou descredenciar do SUS, igual n.º de leitos naquele hospital, realocando o recurso da AIH correspondente para os tetos orçamentários do estado ou município que se responsabilizará pela assistência ao paciente e pela rede  substitutiva de cuidados em saúde mental.

 

        Ademais, o artigo 1º da lei 11.791 de 22/05/2002 do Estado do Rio Grande do Sul define os Serviços Residenciais Terapêuticos como:

 

(…)  estabelecimentos de assistência, em caráter provisório, visando à reabilitação psicossocial, à reintegração à família e ao retorno ao convívio social, dos portadores de transtorno mental e/ou portadores de deficiência egressos de internações psiquiátricas longas ou repetidas e/ou em situação de vulnerabilidade social, a partir dos 18 anos e de ambos os sexos.

 

Neste sentido caracteriza a Portaria 106 do MS:

 

Art. 5º Estabelecer como normas e critérios para inclusão dos  Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental no SUS.

 a) serem exclusivamente de natureza pública; (Grifo nosso)

 

Conforme a Portaria MS/GM nº 3.090 de 23 de dezembro de 2011 estabelece que os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) se constituam na modalidade tipo I e tipo II, definidos pelas necessidades específicas de cuidado do morador. São definidos como SRTs tipo I moradias destinadas a pessoas com transtorno mental em processo de desinstitucionalização e deve acolher até 8 moradores. São definidos como SRTs tipo II as moradias destinadas àquelas pessoas com transtorno mental e acentuado nível de dependência, especialmente em função do seu comprometimento físico, que necessitam de cuidados permanentes específicos e deve acolher até 10 moradores.

Segundo a Resolução do Conselho Federal de Medicina, em 1994, com o intuito de assegurar o respeito e a dignidade humana de doentes nestas condições foi vedada expressamente, em seu artigo 5º, qualquer tipo de amarra ou tratamento degradante.

Preceitua o artigo 5º parágrafo II, da resolução do Conselho Federal de Medicina que “em qualquer estabelecimento de saúde onde se presta assistência psiquiátrica é vedado o uso de "celas fortes", "camisa de força" e outros procedimentos lesivos à personalidade e à saúde física ou psíquica dos pacientes, sendo dever do médico assistente denunciar ao Conselho Regional de Medicina sempre que tiver conhecimento do desrespeito a esta norma”.

 

Bioética e o Princípio da Justiça como cuidado ao deficiente mental

 

A terminologia Bioética surgiu em meados de 1971, nos Estados Unidos, no qual Van Rensselaer Potter, oncologista, publicou a obra cujo título foi: Bioethics: Bridge to the future[3] e possuía como delimitação o diálogo da ciência com as humanidades. Acreditava que aparentemente as culturas da ciência e das humanidades seriam incomunicáveis, pondo em risco o futuro da humanidade. Assim, somente com a construção de uma parte entre essas duas culturas edificações um caminho para o futuro.

Posteriormente Tom L. Beauchanp e Janes F. Childress publicaram juntos Principles of Biomedical Ethics[4], ampliando assim, o estudo da Bioética, pois enquanto Potter dava à Bioética uma delimitação mais global, Beauchamp e Childress procuraram restringi-la aos meios científicos, introduzindo quatro princípios básicos, sendo dois de ordem deontológica e dois de ordem teológica. De ordem deontológica os princípios eram o da não maleficência e o da Justiça, já os de ordem teológica dizem respeito ao da beneficência e o da autonomia. Com o passar do tempo, os princípios foram acrescidos e a Bioética foi deixando de ser exclusivamente principialista, passando a assumir outras formas.

Encontramos hoje, além do principialismo, outros paradigmas no cerne da discussão da Bioética, tais como o naturalismo (que reconhece, a partir do direito natural, a existência de alguns bens fundamentais, como a vida, a religiosidade, a racionalidade, etc), o contratualismo que defende uma relação entre médico, paciente e sociedade a partir de um contrato de ordem jurídica); o personalismo (que de uma visão antropológica, objetiva defender a dignidade humana com base nas características essenciais da pessoa: a finitude e a transcendência); entre outros. [5]

 

A bioética na ótica de André Marcelo M. Soares[6] é definida como:

(...) filha da razão comunicativa, e justamente por isso não pode ser concebida como uma disciplina específica, sendo a única responsável pelo diálogo interdisciplinar sobre as questões éticas levantadas pelas decisões clinicas e pelos avançados científicos e tecnológicos. Também não deve ser compreendida como uma tarefa própria de alguns profissionais, como filósofos, teólogos e juristas, pois a responsabilidade ética é de todos. (grifo do autor)

 

A razão comunicativa ressaltada pelo autor supracitado, refere-se a razão de um espaço público no qual o diálogo, como condição de possibilidade, deve permitir a construção de uma sociedade eticamente responsável no entendimento do filósofo Jurgen Häbermas[7].

Aduzem Léo Pessini e Cristian de Paul de Barchifontaine[8], que a Bioética foi definida por Van Rensselaer Potter como:

(...) ciência da sobrevida humana (...) a bioética seria então uma nova disciplina que recorreria às ciências biológicas para melhor qualidade de vida do ser humano, permitindo a participação do homem na evolução biológica e preservando a harmonia universal. Eu proponho o termo bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos. (grifo nosso)

 

Na concepção de Gilberto Hattois a Bioética tem a seguinte implicação[9]:

Bioética designa um conjunto de questões éticas, que coloca em jogo valores, originados pelo poder cada vez maior da intervenção tecnocientífica no ser vivo. Bioética, designa também, um certo espírito de aproximação entre ética e os problemas científicos.

 

No conceito sintético de Oliveira[10] a terminologia Bioética, em sentido etimológico, significa ética da vida.

Já no entendimento de Maria Helena Diniz[11] a Bioética é:

Um conjunto de reflexões, filosóficas e morais sobre a vida em geral e sobre a vida em geral e sobre as práticas médicas em particular (...) A bioética consistiria ainda, no estudo da moralidade da conduta humana na área da ciência da vida, procurando averiguar o que seria lícito ou científica e tecnicamente possível (...).

 

No entendimento de Gonzales[12], a Bioética:

Abarca não somente os múltiplos e cruciais temas e problemas morais, próprios da ética médica senão também e não menos vasta e decisiva problemática, filosófica e ética, que suscita a Biotcnologia e, em especial, a engenharia genética, e se aproxima assim mesmo a desentranhar os, significados éticos de ordem ecológica e demográfica.

 

            O princípio da justiça refere-se à coletividade dos pacientes. Tal princípio demonstra que todos devem ter garantidos os mesmos direitos. Trata-se não só do direito ao acesso e ao tratamento médico, mas, sobretudo do direito de ter respeitada a própria autonomia.

            Na concepção de Aristóteles[13], a Justiça pode ser delimitada da seguinte forma: (...) é uma espécie de meio-termo, porém não no mesmo sentido que as outras virtudes, e sim porque se relaciona com uma quantia ou quantidade intermediária, enquanto injustiça se relaciona com os extremos.

            Para Platão[14] a Justiça consiste na alma do ser humano, como um mistério divino, sendo uma qualidade essencial para o melhor tipo de vida para o Homem.

            Neste diapasão, faz mister o entendimento de Immanuel Kant[15] no qual relaciona a racionalidade inerente ao Homem com a ética, ao afirmar que o ser humano tem a obrigação de ser ético, por ser racional.

            Correlaciona, ainda, Maria Helena Diniz[16] ao ressaltar que:

 

O princípio da justiça requer a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios no que ativa à pratica médica pelos profissionais da saúde pois os iguais deverão ser tratados igualmente. Pode ser também postulados através dos meios de comunicação, por terceiros ou instituições que defendam a vida ou por grupos de apoio à prevenção a AIDS, cujas atividades exercem influência na opinião pública, para que não haja discriminação.

 

            Assim fica evidente que tal princípio diz respeito aos valores que sempre devem nortear a sociedade, oportunizando a cada indivíduo o que lhe é devido, oferecendo, deste modo com equidade a cada qual de acordo com suas particularidades.

            Corrobora com minúcia Elio Sgreccia[17] ao revelar que:

 

O princípio da justiça se refere à obrigação de igualdade de tratamento e, em relação ao Estado, de justa distribuição das verbas para a saúde, para a pesquisa, etc. Isto, se não quer dizer, certamente, tratar a todos do mesmo modo, pois não diferentes situações clinicas e sociais, deveria comportar, todavia, a adesão a alguns dados objetivos, como p.ex., o valor da vida eo respeito a uma proporcionalidade das intervenções.

 

 

Direito da Personalidade

 

A palavra pessoa vem do latim "persona", denominação dada às máscaras utilizadas pelos atores romanos, destinadas a dar eco às suas palavras. Com o passar do tempo a terminologia passou a representar as personagens e, finalmente, a própria pessoa. As pessoas, na ordem jurídica classificam-se em pessoas naturais ou físicas e pessoas jurídicas. No sentido jurídico, pessoa é o ente físico ou moral - coletivo - suscetível de direitos e obrigações ou, simplesmente, sujeito de uma relação jurídica.

 A pessoa natural é aquele ser humano que provem de uma mulher; o ente humano individualmente considerado (o art. 2° CC dizia.: todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil). O Código Civil diz no art. 1° que "Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil", e o art. 2° diz "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".

Consistem em direitos da personalidade a busca da defesa dos valores inatos nos homens, reconhecidos a eles em sua interioridade e em suas projeções na sociedade. Além de ser muito amplo para estudo a doutrina divide os direitos da personalidade em três espécies: direitos físicos: correspondem à integridade corporal (componentes materiais da estrutura humana), como os direitos à vida, à integridade física, ao corpo, à imagem e à voz; direitos psíquicos: dizem respeito aos apanágios intrínsecos da personalidade, como os direitos à liberdade, à intimidade, à integridade psíquica e ao segredo; direitos morais: consistem no complexo valorativo da pessoa, projetado nela mesma e no meio social em que vive e, nesta última categoria, estariam inseridos os direitos à identidade, à honra, ao respeito e às criações intelectuais.

Destarte que os direitos da personalidade são direitos subjetivos inerentes à pessoa humana e fora da órbita patrimonial, assim, em regra são ditos como absolutos, indisponíveis, inalienáveis, intransmissíveis, imprescritíveis, irrenunciáveis e impenhoráveis

Por conseguinte, os direitos da personalidade proporcionam à pessoa a defesa de sua integridade física, intelectual e moral.

Ademais, conforme preceitua o art. 12 do CC, a proteção jurídica desses direitos incide ao cessar os atos que perturbam e desrespeitam a integridade física, intelectual ou moral do ser e não obstante com a averiguação da existência da lesão ou não, no ressarcimento dos danos morais e patrimoniais experimentados pela vitima.

Neste enfoque o art. 5°, X ressalta o tema: são invioláveis a intimidade, a vida privada a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

No entendimento do ilustre doutrinador José Afonso da Silva[18] a intimidade foi considerada um direito diverso dos direitos à vida privada à honra e à imagem das pessoas - direito à privacidade e direitos da personalidade. Neste contexto o autor emprega a expressão direito à privacidade em sentido genérico e amplo ao passo que sugere a abarcar todas essas manifestações da esfera intima privada e da personalidade, que o texto constitucional em exame consagrou.

Neste diapasão Moacyr de Oliveira assevera a magnitude da inviolabilidade inserida no direito à privacidade que ele: abrange o modo de vida doméstico, nas relações familiares e afetiva era geral, fatos, hábitos, local, nome, imagem, pensamentos, segredos; e, bem assim, as origens e planos futuros do indivíduo.

Cabe salientar que a personalidade constitui atributo de que goza a pessoa, no qual representa a aptidão genérica para contrair direito e obrigações.

Segundo entendimento do art. 2° do CC, a personalidade tem inicio a partir do nascimento com vida, logo, independente de perfeição ou não, integridade física ou moral, terminando, conforme art. 6° do CC com a morte ou com a presunção de sua morte, como ocorre no caso de ausentes (CC., art. 7°), para efeitos de sucessão (CC., arts. 22 a 39).

Aduz o ilustre doutrinador Dalmo de Abreu Dallari que todo o ser humano tem o direito de ser reconhecido e tratado como pessoa. Não se respeita esse direito quando seres humanos sofrem violência de qualquer espécie, nascendo na miséria, sendo forçados a viver em situação degradante ou humilhante, ou sendo tratados com discriminação[19].

Assim, para que o portador de transtornos psíquicos possa exercer seus direitos faz-se necessário que seja reconhecido e tratado como um sujeito de direitos, uma pessoa, como todo o ser humano.

 

Princípio da dignidade da pessoa humana

 

A CF consagra em seu art. 1º, III como um dos seus fundamentos, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Conforme ensinamento de Daury César Fabriz[20] a dignidade da pessoa obriga ao respeito pelos seus direitos, assim, busca-se traduzir o reconhecimento da dignidade da pessoa, através de instrumento que viabilizem tal direito inserido no princípio da dignidade da pessoa humana.

Tal princípio é fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais, dando unidade e coerência aos demais comandos.

O princípio da dignidade da pessoa humana pode ser conceituado por Alexandre de Moraes[21], da seguinte maneira:

Concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

 

Neste sentido o conceito de Ingo Wolfgang Sarlet[22] é preciso:

A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todos e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

 

Direito à vida

 

            O direito à vida é o supedâneo de todos os demais direitos humanos, pois constitui pré-requisito à existência e efetividade dos demais direitos.

            Neste diapasão acentua Alexandre  de  Moraes[23]:

O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que constitui-se em pré-requisito a existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive a uterina.

            Destarte que a vida humana está assegurada no art. 5º, caput, da CF, sendo que integra elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais). Também, trata-se de um direito inato, de características próprias, a saber: intransmissível, irrenunciável e indisponível.

Assevera Maria Helena Diniz[24] que:

O direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condiciona os demais direitos da personalidade. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à vida, ou seja, a integralidade existencial, conseqüentemente, a vida é um bem jurídico tutelado como direito fundamental básico desde a concepção, momento específico, comprovado cientificamente, da formação da pessoa. Se assim é, a vida humana deve ser protegida contra tudo e contra todos, pois é objeto de direito personalíssimo. O respeito a ela e aos demais bens ou direitos correlatos decorre de um dever absoluto ‘erga omnes’, por sua própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer...Garantido está o direito à vida pela norma constitucional em cláusula pétrea, que é intangível, pois contra ela nem mesmo há o poder de emendar...tem eficácia positiva e negativa...A vida é um bem jurídico de tal grandeza que se deve protegê-lo contra a insânia coletiva, que preconiza a legalização do aborto, a pena de morte e a guerra, criando-se normas impeditivas da prática de crueldades inúteis e degradantes...Estamos no limiar de um grande desafio do século XXI, qual seja, manter o respeito à dignidade humana.

 

            Cabe salientar o pensamento de Cretella Junior[25]:

O direito à vida é o primeiro dos direitos invioláveis, assegurados pela Constituição. Direito à vida é expressão que tem, no mínimo, dois sentidos, (a) o “direito a continuar vivo, embora se esteja com saúde” e (b) “o direito de subsistência”: o primeiro, ligado à segurança física da pessoa humana, quanto a agentes humanos ou não, que possam ameaçar-lhe a existência; o segundo, ligado ao “direito de prover à própria existência, mediante trabalho honesto”...

 

            Aduz  Pontes de Miranda[26]  que:

O direito à vida é inato; quem nasce com vida, tem direito a ela (...) Em relação às leis e outros atos, normativos, dos poderes públicos, a incolumidade da vida é assegurada pelas regras jurídicas constitucionais e garantida pela decretação da inconstitucionalidade daquelas leis ou atos normativos (...)O direito à vida é direito ubíquo: existe em qualquer ramo do direito, inclusive no sistema jurídico supraestatal (...)O direito à vida é inconfundível com o direito à comida, às vestes, a remédios, à casa, que se tem de organizar na ordem política e depende do grau de evolução do sistema jurídico constitucional ou administrativo (...)O direito à vida passa à frente do direito à integridade física ou psíquica (...) o direito de personalidade à integridade física cede ao direito de personalidade à vida e à integridade psíquica.

 

            Fica evidente que o direito à vida é a base do ordenamento jurídico e de sorte sua implicação tem reflexo tanto na existência quanto na subsistência humana.

Direito à saúde

           

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (CF, art. 196), sendo de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou por meio de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado (CF, art. 197).

 

Considerações Finais

Evidente que a reforma psiquiátrica trata-se de um divisor de águas, no qual houve a transposição da  exclusão do portador de transtornos mentais para a inclusão e fortalecimento da cidadania, autonomia e direito de ser pessoa.

Diante deste cenário aos poucos tais indivíduos começam a retornar ao convívio social, todavia em face dos longos anos de segregação e da resistência tanto familiar como da sociedade em relação ao convívio com pessoas ditas como “loucas” não há completa efetividade da política de atenção à saúde mental no Brasil.

Logo, com a política de diminuição de leitos em hospitais psiquiátricos e da determinação de inclusão dos indivíduos egressos de instituições hospitalares ou portadores de alguma deficiência mental surgem os residenciais terapêuticos na modalidade privados, não previstos na legislação em vigor, que nascem do empreendedorismo, no entanto, diante da inexistência de legislação específica para a temática privada a probabilidade de ofensa aos direitos humanos é latente.

Assim, somente com a conscientização da coletividade quanto ao respeito aos direitos do portador de transtorno mental passar no mero discurso normativo para a práxis vislumbraremos a inclusão. Afinal, sempre foram e serão pessoas. Não rejeitos que devem ser afastados da sociedade e segregados como seres desprezíveis.

Obviamente que desnecessário o arcabouço normativo quanto à temática se  cada indivíduo respeitasse o direito do outro, as especificidades de cada um, as deficiências. A humanidade ainda não demonstra estar em tal nível de participação social, todavia, a política de atenção à saúde mental revela a mudança de pensamento que por si só merec

 


[1] § 2o O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.

[2] Art. 2o Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.

Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;

II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;

III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;

IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;

VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;

VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

 

[3] POTTER, V.R. Bioethics: bridge to the future. New Jersey Englewood Cliffs: Prentice – hall. 1971.

[4] BEAUCHAMP, T.L.; CHILDRESS, J.F. Principles of Biomedical Ethies. New York. Oxford University Press. 1994.

[5] PESSINI, L. BARCHIFONTAIN, C. de P. Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Loyola/ Faculdades Integradas. São Camilo. 1997, pp. 33-38.

[6] SOARES, André M. M.; PIÑEIRO, Walter E. Bioética e Biodireito. Uma introdução. São Camilo: Loyola. 2002. p.32

[7] HABERMAS, J. Theorie des Kommunikativen handelns. Vol I. Frankfurt am main: Suhrkamp. 1981. pp. 44, 114.

[8]  PESSINI, L. BARCHIFONTAIN, C. de P. Op cit.  pp. 15 -17

[9] HATTOIS, Gilberto (apud Peddini e Barchinfontaine). Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Loyola. 2002. p 41.

[10] OLIVEIRA, Fátima. Bioética: uma face da cidadania. São Paulo: Moderna. 1997. p 47.

[11] DINIZ, Maria Helena. O estado atual do Biodireito. 2ed. aum. e atual. De acordo com o novo código civil. São Paulo: Saraiva. 2002. p. 11-12.

[12] GONZALEZ, J. Valores éticos de la ciência. In Vázquez, R (compilador). Bioética y derecho. México, DF: Fondo de Cultura econômica, 1999, p. 33.

[13] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret. 2004. p. 104-105.

[14] PLATÃO. A República. São Paulo. Martin Claret. 2004. p.140

[15] KANT. Immanuel. Crítica a razão. Prática. Tradução Artur Mourão. Lisboa: Edições 70. 1986.

[16] DINIZ, Maria Helena. Op cit.

[17] SGRECCIA. Elio. Manual de Bioética: fundamentos e ética biomédica. São Paulo: Loyola. 1996. p 23.

[18] SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17ª ed. Malheiros Editores, São Paulo, 2000. p 206.

[19] DALLARI, Dalmo de Avreu. Direitos Humanos e Cidadania. 2. Ed. São Paulo: Moderna, 2004.

[20] FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais: a desconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos. 2003. p 273.

[21] MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1998.

[22] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001. p. 60.

[23] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Atlas S. A., 2003.

[24] DINIZ, Maria Helena. Op cit.

[25] CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1988, . vol. I, art. 1º a 5º, LXVII, p. 182/183.

[26] PONTES DE MIRANDA. Op cit. p. 14/29. 

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