13/02/2019

ONDE ESTÁ A EDUCAÇÃO FÍSICA? O LUGAR DO CORPO E DO MOVIMENTO NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Marcélia Amorim Cardoso

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc/UFRRJ), professora substituta do Departamento Educação e Sociedade (DES/UFRRJ)  professora do curso de Licenciatura em Pedagogia (Faculdade Fernanda Bicchieri/FABEL), professora do Curso Normal de Nível Médio (SEEDUC/RJ), Professora Supervisora de Estágio, participante do Grupo de Estudos Educação, Corpo e Cultura (GEECC),  FABEL.

Eduardo Rodrigues da Silva

Mestre em Educação Física e Cultura (UGF), pesquisador nas áreas da Educação Física, Representações Sociais e Meio Ambiente (UERJ); professor na Licenciatura em Pedagogia (Faculdade Fernanda Bicchieri/FABEL), coordenador do Grupo de Estudos Educação, Corpo e Cultura (GEECC), professor na Educação Básica (SEEDUC/RJ)

Laryssa Santos Villela

Professora da educação básica. Graduada em Pedagogia pela FABEL, participante do Grupo de Estudos Educação, Corpo e Cultura (GEECC)

 

Resumo
Como atividade exigida na grade disciplinar do Curso de Pedagogia (RES. CNE/CP nº 01/2006), o estágio supervisionado visa à contextualização da própria formação através das análises que a/o estudante realiza entre a teoria estudada nas aulas e a prática observada nos espaços de estágios.  Este trabalho é decorrente dos encontros do Grupo de Estudos Educação, Corpo e Cultura (GEECC) que visa desenvolver estudos e pesquisas sobre as interfaces corpo e cultura e suas confluências na educação. O relato se propõe apresentar as vivências dessa experiência formativa no cotidiano de uma turma de Educação de Jovens e Adultos, refletindo sobre a importância da Educação Física para a construção de uma autoimagem positiva, para o bem-estar e para a interação e convivência dos estudantes da EJA.  

Palavras-Chave: Educação de Jovens e Adultos; Educação Física; Corpo; Movimento

 

INTRODUÇÃO

O tempo de vida do ser humano a cada dia que passa tem se prolongado devido aos avanços significativos de conhecimentos na área da saúde. A qualidade de vida, tem se tornado essencial para quem deseja uma longevidade saudável. Mais adultos e idosos recorrem a medicamentos e tratamentos novos, uma alimentação equilibrada, a saúde mental, e principalmente, ampliação da frequência dos movimentos corporais com atividades físicas regulares, muitas vezes incentivadas pela implantação das Academias ao Ar Livre[1]

Nosso corpo age, sente e pensa... Está presente em tudo que fazemos! A dinâmica profissional e cotidiana torna a atenção para o corpo mais escasso, sendo percebido por conta de uma mal-estar ou dores. O longo processo histórico de disciplinamento aos espaços sociais institucionalizados imprimiu ao corpo condutas e comportamentos exigindo dele uma disciplina imposta pela sociedade, assim como nos mostra Foucault (1987, p. 133-134):      
 

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar, e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita.

Para o autor a escola é um dos espaços disciplinadores de corpos e mentes. Suas técnicas de imobilidade de movimentos e pensamentos, através de uma constante vigilância, limitam a potência, direcionando-a para finalidades produtivas e de homogeneização de condutas na garantia da obediência. Os adultos ao retornarem aos bancos escolares após um tempo de afastamento trazem em suas memórias afetivas a imagem da escola como espaço de disciplina, ordem e obediência como caminhos para a obtenção da insígnia ‘grau de instrução’. Após uma jornada dupla ou tripla de trabalho, alunos e alunas trabalhadore/as precisam enfrentar um jornada como estudantes da EJA.

A Educação de Jovens e Adultos, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu artigo 37 “será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria” (BRASIL, 1996). Entender que a Educação de Jovens e Adultos é um movimento de reinserção e resgate de um direito negado pelas injustiças sociais, possibilita entender as especificidades que esta modalidade carrega.

Mas essa função reparadora deve ser vista, ao mesmo tempo como uma oportunidade concreta da presença de jovens e adultos na escola, e uma alternativa viável em função da especificidade socioculturais deste segmento para os quais se espera uma efetiva atuação das políticas sociais (BRASIL/CEB PARECER N° 11/2000, p. 08)

As especificidades socioculturais ultrapassam o ler-escrever-contar necessários à inserção social.  Perpassam pelas dimensões estética e ética do aluno, elemento curricular encontrado também na educação física.   

(...) por possuí um leque de possibilidades (dança, ginástica, esporte, etc.) e por configurar a cultura corporal dos movimentos, a Educação Física torna-se um componente curricular essencial, uma vez que, todos os componentes ligados a essa área do conhecimento carregam consigo a busca por uma melhor qualidade de vida. (DONATO, 2016, p. 10)

A Educação Física na EJA é componente curricular obrigatório, sendo sua prática facultativa ao aluno nas seguintes situações:

I – que cumpra jornada de trabalho igual ou superior a seis horas;

II – maior de trinta anos de idade;

III – que estiver prestando serviço militar inicial ou que, em situação similar, estiver obrigado à prática da educação física;

IV – amparado pelo Decreto-Lei no 1.044, de 21 de outubro de 1969[2];

V – (VETADO)

VI – que tenha prole.  (BRASIL, LDB, Art. 26, 1996)

Mesmo sendo facultativa aos alunos dentro das situações acima citadas, deve compor o currículo obrigatório da educação básica e, portanto, ser ofertada em suas grades curriculares.  Não precisa ser necessariamente como uma aula tradicional aplicada para crianças ou adolescentes, ela precisa ser adaptada, até porque as idades se divergem. O/a estudante de EJA pode ser convidado a conhecer seu corpo, suas necessidades, especificidades, limites e possibilidades, propor a interação, lazer e ludicidade em momentos de movimentos corporais,  oferecer a prática de uma movimentação igualada a um exercício físico diário, para assim, evitar o sedentarismo e minimizar a indisposição por um longo dia de trabalho.                

Muitos estudantes da EJA, face a seus filhos e amigos, possuem de si uma imagem pouco positiva relativamente a suas experiências ou até mesmo negativa no que se refere à escolarização. Isto os torna inibidos em determinados assuntos. Os componentes curriculares ligados à Educação Artística e Educação Física são espaços oportunos, conquanto associados ao caráter multidisciplinar dos componentes curriculares, para se trabalhar a desinibição, a baixa autoestima, a consciência corporal e o cultivo da socialidade. (BRASIL/CEB PARECER N° 11/2000, p. 59)

Como socialidade, o Parecer CEB n°11/2000 entende ser uma prática social importante nas unidades educacionais, podendo ter, nos momentos de intervalo, uma ocasião oportuna de cultivo e desenvolvimento. Ultrapassando o espaço de sala de aula ou quadra de esportes para práticas didáticas previstas na educação física na EJA. Uma roda de crochê, uma série de ginástica laboral ou dinâmicas de movimentos e cantos podem ser sugestões de atividades que possibilitem a interação e o movimento corporal.  

METODOLOGIA

Pimenta e Lima (2006) defendem o estatuto epistemológico presente no estágio supervisionado que se constitui, também em atividade de pesquisa. Nesse sentido, O estágio/pesquisa relatado aqui foi realizado através da Observação Participante que é uma técnica de pesquisa integrante da abordagem da pesquisa qualitativa.  Oliveira (2008, p. 08) afirma que essa técnica permite que “os investigadores imergem no mundo dos sujeitos observados, tentando entender o comportamento real dos informantes, suas próprias situações e como constroem a realidade em que atuam”.

A inserção ao campo de estágio supervisionado de Educação de Jovens e Adultos foi realizada em uma escola Municipal de Duque de Caxias, RJ, em uma turma que atende do 1º a 4º ano, com 34 alunos, sendo 21 homens e 13 mulheres, nas idades entre 20 e 65 anos. Foi proposta uma atividade, com o objetivo de alongar os músculos e relaxar o corpo após um dia inteiro sob uma forte tensão das rotinas, melhorando a flexibilidade e a postura. A proposta é alongar as extremidades do corpo de acordo com cada idade, pois existe um limite corporal diferenciado para cada faixa etária, estrutura e hábitos diários. O material utilizado
foi um bastão e uma bola. Uma música de fundo ajuda a estimular e coordenar alguns movimentos com o bastão e a canção “escravos de Jó” cantada por todo/as.

RESULTADOS E DISCUSSÃO  

Na maioria das escolas que oferecem EJA, as turmas não possuem aula de Educação Física no currículo, mas o próprio professor/a pode propor para os alunos um tipo de atividade diferenciada que dinamize as aulas noturnas. A proposta inicial com o bastão objetivava alongamento, elevar, abaixar e segurar o bastão, aceita parcialmente pelo/as aluno/as, seguiu de forma tímida.  Muitos não se sentiam à vontade diante de algo que não estavam acostumados, ou seja, uma aula prática de educação física. Os mais novos e alguns idosos se animaram logo de inicio. Os adultos resistiram mais. Com as mudanças de proposta, mais adesões ocorriam e no final toda a turma participou. A roda, agora maior, ‘brincava’ de escravos de Jô, passando a bola após realizar diversos movimentos, ora criados por ele/as, ora solicitado pela dinamizadora: ou ‘dando uma voltinha’ ou passando por baixo da perna esquerda, ou jogando a bola para cima, bater palmas e segurá-la novamente, enfim, as inúmeras possibilidades, interesse, participação de todos tornou uma atividade prevista para 15 minutos se estender para 30. Uma conversa sobre o que sentiram e sobre como seus corpos reagiram, finalizou a atividade com a volta à calma.

O/As mais novo/as logo se pronunciaram dizendo que poderiam ter mais aulas assim. Alguns idoso/as disseram que utilizam a academia ao ar livre em seus bairros e que fazem caminhadas matinais frequentemente. Outro/as já disseram que sentem dores localizadas e que nem faziam ideia de como conseguiram participar e que gostaram muito ao ponto de tentarem mudar hábitos de vida. O/as adulto/as se colocaram como desanimados, pois chegam à escola cansado/as após um dia de trabalho e o desconforto de um transporte público lotado e também não encontram tempo para realizar qualquer atividade física frequente e sistemática e se na escola pudessem ser oferecidas, eles teriam a oportunidade de participar de atividades físicas voltadas para a saúde e o bem-estar.

No geral, a proposta possibilitou a reflexão sobre o espaço da educação física na EJA. A timidez inicial pode ser percebida como fruto dos processos de normatizações impostas na produção de um corpo imobilizado pelas condutas sociais e escolares que se esperam que as pessoas reproduzam e até o cansaço após um dia de trabalho e deslocamento da casa ao trabalho e deste para a escola. Aos mais novos, suas passagens por escolas ou processos mais dinâmicos e as condições atuais de uma sociedade da velocidade e agitação, visualizaram a atividade de forma mais livre, assim como alguns/mas idoso/as que se disponibilizaram por já possuírem alguma prática de atividades físicas e tempo para praticar.     

CONCLUSÃO

A experiência vivenciada através do Estagio Supervisionado, possibilitou perceber as lacunas que existem nos sistemas educativos, principalmente em relação à Educação Física na Educação de Jovens e Adultos. Na realidade escolar compartilhada, e aqui relatada, foi possível perceber a inexistência do tema corpo no cotidiano, causando preocupação diante da importância da temática para a construção de uma educação que atenda as necessidades formativas e sociais do ser humano.

A realização da atividade - e as reflexões por ela ocasionadas - reitera a importância da educação física prática como elemento agregador na formação de estudantes trabalhadores, jovens e idosos na Educação de Jovens e Adultos. Lembrando que esta disciplina é componente curricular obrigatório, sendo sua prática facultativa apenas para o/as estudantes, mas isso não quer dizer que não queiram ou não tenham o direito de realizá-la.

O fato de tornar a participação da turma ativa e interessada é essencial para mostrar a importância do corpo no dia-a-dia. Como parte curricular da EJA, o corpo precisa ser estudado e tudo que o envolve, propondo ampliações temáticas como debates e estudos dinâmicos a ser discutidos em sala de aula, como o planejamento familiar, a vida sexual para os jovens, adultos e idosos, saúde e bem-estar, gravidez precoce, entre tantos de relevância social. Buscar parcerias com setores públicos de saúde, para realizações de palestras na escola, divulgação de materiais informativos impressos e programas que beneficiam a saúde, também podem intensificar os processos de produção de saberes indispensáveis para a construção de conhecimentos que envolvem o corpo, a autoestima, a saúde e a qualidade de vida na Educação de jovens e Adultos

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria GM/MS nº 2.684, de 8 de novembro de 2013. Redefine as regras e os critérios referentes aos incentivos financeiros de investimento para construção de pólos e de custeio no âmbito do Programa Academia da Saúde e os critérios de similaridade entre Programas em Desenvolvimento no Distrito Federal ou no município e o Programa Academia da Saúde. Brasília, 2013. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2684_08_11_2013.html  Acesso em 10 de junho de 2018

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP nº 1, de 15 de maio de 2006. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_06.pdf  Acesso em 17/05/2018.

BRASIL. PARECER CEB Nº 11/ 2000. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação e Jovens e Adultos. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pceb011_00.pdf Acesso em: 17 de maio de 2018.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN. Lei n° 9394 de 20 de dezembro de 1996.  Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm Acesso em: 17 de maio de 2018.

BRASIL. DECRETO-LEI N° 1.044 de 21 de Outubro de 1969. Dispõe sobre tratamento excepcional para os alunos portadores das afecções que indica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1044.htm  Acesso: 17 de maio de 2018.

 

DONATO, Carla da Conceição. Redescobrindo o sentido da Educação Física nas turmas da Educação de Jovens e Adultos. Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia da Faculdade Belford-Roxo – FABEL. Belford-Roxo, 2016.

 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987.

OLIVEIRA, Cristiano Lessa de. Um apanhado teórico-conceitual sobre a pesquisa qualitativa: tipos, técnicas e características. In: Revista Travessias. Paraná: UNIOESTE, v. 2, n. 3, 2008, pp. 01-16.

PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência: diferentes concepções. In: Revista Poíesis. Vol. 3, nº3, 4, 2005/2006,  pp.5-24. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/poiesis/article/view/10542/7012. Acesso em: 27/06/2018.

 

 


[1] Projeto de implantação de equipamentos de ginástica em espaços públicos integra o Programa Academia da Saúde lançado em 2011 pela Portaria nº 719/GM/MS, de 7 de abril de 2011 e  tem como objetivo contribuir para a promoção da saúde, prevenção de doenças e agravos, produção do cuidado e modos de vida saudáveis da população. (BRASIL, 2013)

 

[2] “(...) portadores de afecções congênitas ou adquiridas, infecções, traumatismo ou outras condições mórbidas, determinando distúrbios agudos ou agudizados, caracterizados por:

                a) incapacidade física relativa, incompatível com a freqüência aos trabalhos escolares; desde que se verifique a conservação das condições intelectuais e emocionais necessárias para o prosseguimento da atividade escolar em novos moldes;

                b) ocorrência isolada ou esporádica;

             c) duração que não ultrapasse o máximo ainda admissível, em cada caso, para a continuidade do processo pedagógico de aprendizado, atendendo a que tais características se verificam, entre outros, em casos de síndromes hemorrágicos (tais como a hemofilia), asma, cartide, pericardites, afecções osteoarticulares submetidas a correções ortopédicas, nefropatias agudas ou subagudas, afecções reumáticas, etc. (BRASIL, 1969)

 

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