14/11/2022

O Silêncio dos Inocentes: a gênese de um monstro draconiano

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 O Silêncio dos Inocentes: a gênese de um monstro draconiano

1Marcos Antonio Staub

Thomas Harris, conhecido há mais de quarenta anos por incutir horror e admiração no imaginário da cultura literária e cinematográfica através de sua personagem Hannibal, certamente criou um dos mais famosos serial killers ficcionais da história.

 Ainda que quatro livros e cinco filmes tenham sido elaborados acerca de Lecter, a figura de Clarice Starling passa a ganhar destaque a partir da publicação de O Silêncio dos Inocentes. A jovem personagem luta para obter não somente a provação de seu superior (Jack Crawford), mas também para firmar sua posição como agente especial do FBI em um universo dominado por homens de ternos e portando armas. Ainda, seu objetivo quase obsessivo de entender a mente brilhante do intelectual-canibal alçou também Clarice ao seleto grupo de mulheres protagonistas em filmes de ação do cinema, entre as quais Ellen Ripley, de Alien - O Oitavo Passageiro, Rey de Star Wars (Episódio VII – O Despertar da Força) e Katniss Everdeen de Jogos Vorazes, entre outras.

O Silêncio dos Inocentes, que ganhou mais força quando foi adaptado para o cinema em 1991, por Jonathan Demme, trouxe um novo olhar para o protagonismo de mulheres em filmes de ação no cinema, quase ausente nas telas até os anos oitenta. No livro de Harris, Clarice é indiscutivelmente a protagonista do começo ao fim, relegando a Hannibal Lecter um papel secundário, funcionando como uma janela que se abre quando a perspicácia de Clarice consegue penetrar na mente enigmática do assassino.

Nesse caso, devemos considerar as intersecções entre a personagem colocada nas telas do cinema por Demme, interpretada por Jodi Foster, e Clarice Starling (de Ridley Scott) que dialogam perfeitamente, dadas as características que as identificam nos respectivos papéis. Logicamente que uma tradução intersemiótica não está condicionada às regras rígidas de fidelidade da obra de partida.

Na trajetória da heroína Starling, Hannibal é apenas uma peça assessória. Ela instiga sua mente, não como objeto de desejo e prazer, mas em um nível mental. Não há tensão sexual e pouca esperança de um envolvimento romanceado entre heroína e vilão. Hannibal comia seus pacientes que não tinham perspectiva de melhora e também suas vítimas tinham características em comum, como desvios de caráter. Ela o aguçava, o interessava e dialogava com sua mente brilhante.

Nesse jogo tácito entre a agente e o criminoso, a escolha de Harris por uma protagonista mulher é acertada. Um dos padrões mais recorrentes de serial killers é o feminicídio, embora isso não pareça interessar a Hannibal, mas interessa a Clarice que ainda está atormentada pelas vozes dos cordeiros vindos do abatedouro na fazenda na qual foi criada. Desde o início, o vilão e a heroína estão conectados por uma questão de gênero. Clarice sofre abuso por parte de um detento (Miggs) que arremessa o próprio sêmen em seu rosto, o que ofende Hannibal que é apegado a uma série de cavalheirismos à moda antiga e vinga-a, fazendo com que se suicide engolindo a própria língua durante a noite, simplesmente entrando em sua mente e forçando-o a cometer tal ato, enquanto ambos encontravam-se em celas separadas. Ajudá-la é, para Hannibal, uma espécie de cortesia cavalheiresca à moda antiga.

A relação entre Clarice e Hannibal é reforçada por dois outros homens: Crawford e o assassino desconhecido apelidado de Buffalo Bill. Thomas Harris consegue colocar uma protagonista mulher entre dois homens instáveis e perturbados por suas relações e autoestima, quer seja pela aceitação de suas condições físicas e aparência ou pelas suas capacidades. O chefe sempre a observava, situação abundantemente retratada na narrativa escrita, foi quem deu o incentivo inicial para que ela seguisse carreira na criminologia. Outro grande incentivador da carreira da protagonista é Lecter, mas como uma figura paternalista, dando a ela pistas para o prosseguimento na investigação.

O serial killer Jame Gumb, apelidado de Buffalo Bill, é a amalgama do núcleo central da trama com seu poder de morte e obsessão por corpos femininos como sublimação de seus instintos, e é ele que aproxima Clarice de Hannibal. Buffalo Bill esfola suas vítimas mulheres, retirando-lhes as peles e costurando-as em uma espécie de invólucro para si mesmo, desejando para si uma aparência feminina que não possui. A construção do criminoso na versão fílmica dá-se de forma mais breve que na obra literária, porém é bastante eficaz em mostrar contrapontos entre Clarice, Hannibal e Bill. Embora ninguém melhor que um canibal assassino, no caso Hannibal, para entender a mente de outro psicopata, somente Clarice poderia lidar com o assassino, tendo ganhado sua simpatia.

É nesse contexto que se forja a agente especial Clarice Starling, atormentada pelos sons dos cordeiros no abatedouro. A cada corpo vitimado e a cada mulher esfolada, ecoam os berros dos cordeiros. Insone, Clarice precisa deter o assassino e lidar com os homens ruidosos à sua volta, para restabelecer o silencio dos inocentes e dormir em paz.

Em Hannibal (de Thomas Harris, 1991) e sua versão fílmica de mesmo título (de Ridley Scott, de 2001), Clarice Starling goza do prestígio de ter solucionado o caso Buffalo Bill e Hannibal encontra-se livre após ter executado um engenhoso plano de fuga durante sua transferência do manicômio judiciário, no qual estava confinado sob forte esquema de segurança, uma de suas exigências para cooperar na solução do caso.

Clarice tem agora o desafio supremo de sua carreira, capturar o mais perigoso dos assassinos: Hannibal. Após comandar uma desastrosa batida que resultou na morte de dois agentes e de vários suspeitos, incluindo Evelda Drumgo que carregava um bebê no colo, Clarice encontra-se mais uma vez no foco das atenções masculinas de seus pares no FBI.

O ator Anthony Hopkins conseguiu criar um arco dramático tão intenso que alçou sua personagem ao protagonismo. Thomas Harris, finalmente, após mais de 10 anos de O Silêncio dos Inocentes (1988) publicaria Hannibal (1999) transformado em filme em 2001, delineando assim, definitivamente, a personalidade do médico-monstro.

Vê-se que o relacionamento, embora às vezes controverso entre literatura e cinema, é longevo e a exemplo da adaptação de Cântico Final (1974) pode gerar bons filhos, que embora mantenham traços de semelhança com seus progenitores, não são clones ou meras cópias idênticas. Carregam os genes de origem e às vezes “preservam o espírito” de sua natureza, mas são novas criaturas. Hannibal, embora muitos sequer saibam, teve sua origem na literatura. Foi criado por Thomas Harris através do romance The Red Dragon (1981) [O Dragão Vermelho], adaptado pela primeira vez para o cinema em 1981 sob o título de Manhunter [Manhunter - Caçador de Assassinos]. A personagem ganhou grande destaque através da realização cinematográfica (1981) The Silence of the Lambs [O Silêncio dos Inocentes] devido à grande repercussão e os prêmios Oscar obtidos, como referidos anteriormente. Isso posto, resta conhecer o assassino em série retratado em tinta no papel e em pixels no écran.

Mestre em Estudos da Tradução, graduado em Letras-Inglês, é professor, escritor e tradutor.

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