06/12/2019

O que é escrever? língua, linguagem e comunicação escrita

Denis Leandro Francisco[1]

 

Resumo: Este artigo apresenta considerações sobre a prática da escrita sob uma perspectiva sociointeracionista da linguagem (BEAUGRANDE, 1981, 1997; BRONCKART, 1997; KOCH, 1993). Busca-se demonstrar que o modo como concebemos a comunicação escrita está associado ao modo como entendemos a língua, a linguagem, o sujeito que escreve e o texto, de tal forma que essa atividade pode ser vista a partir de três focos bastante distintos: foco na língua, foco no escritor ou foco na interação (KOCH, 2011; KOCH; ELIAS, 2018). O exemplo analisado apresenta, no contexto sociocultural brasileiro, um caso de mudança de concepção em relação ao modo como se efetiva a interação verbal em situações de comunicação escrita.

Palavras-chave: Escrita; Língua; Linguagem; Texto; Sociointeracionismo.

É comum a todos os textos serem braços estendidos que procuram com ou sem esperança ser abraçados por outros. FLUSSER, Vilém. A escrita, p. 71.

      

  1. Concepções de escrita

O modo como concebemos a comunicação escrita está associado ao modo como entendemos a língua, a linguagem, o sujeito que escreve e o texto, de tal forma que essa atividade pode ser vista a partir de três focos bastante distintos: foco na língua, foco no escritor ou foco na interação (Koch, 2011; Koch; ELIAS, 2018). A perspectiva que aqui assumimos em relação à escrita tem seu foco na interação, conforme anunciado na epígrafe deste texto, posicionamento que iremos defender em contraponto aos outros dois enfoques.

            A concepção de escrita com foco na língua (vista como código ou sistema de signos abstrato) postula que a condição para “escrever bem” é o domínio de regras gramaticais e de vocabulário, conhecimento que seria posteriormente transferido para o texto. Subjacente a essa visão de escrita encontra-se uma concepção de língua como sistema pronto, passivo, cabendo ao produtor do texto apropriar-se desse sistema e de suas regras.

Quando concebida a partir do foco no autor, a escrita é vista como representação do pensamento. O autor teria apenas que transferir o seu pensamento para o papel ou para a tela do computador. A língua, aqui, é o instrumento pelo qual essa transferência se faz possível e o texto é o produto resultante dessa representação mental daquele que escreve. Nessa concepção, a comunicação escrita se realiza unilateralmente, já que o produtor não leva em conta o leitor nem o processo de interação que se estabelece entre eles por meio do texto.

Há, no entanto, uma concepção segundo a qual a escrita não é compreendida apenas em relação à apropriação de regras linguísticas ou à representação do pensamento do escritor, mas na interação escritor-leitor, interação essa que é projetada no momento da produção do texto e efetivada durante o ato da leitura. Nessa concepção sociocognitiva e interacional da língua, o texto é visto como “o próprio lugar da interação verbal” (KOCH; ELIAS, 2018, p. 10) e tanto autor quanto leitor são vistos como sujeitos ativos (como coenunciadores, portanto) que se empenham dialogicamente na produção de sentidos. Esses coenunciadores são “estrategistas da comunicação” (KOCH; ELIAS, 2018, p. 10), pois precisam ser capazes de mobilizar, de forma estratégica (ou seja, com eficiência, predição e visando a um objetivo), o contexto sociocognitivo apropriado que lhes possibilite, no momento da interação verbal, a construção de um sentido para o texto.

Desloca-se, nessa perspectiva, o interesse das formas da língua para o seu funcionamento, ou, dito de outra forma, passa-se do domínio do enunciado para o plano da enunciação, plano no qual a linguagem, termo de definições variadas e nem sempre consonantes, assume o seu caráter multidimensional no processo de significar o mundo, isto é, de produzir sentido. Assim, “na prática viva da língua”, a interação entre interlocutores “nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas, mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma particular” (BAKHTIN, 2009, p. 98). A linguagem é, aqui, compreendida como atividade essencialmente interativa e não (apenas) como forma ou sistema.

Sob essa perspectiva sociointeracionista, a língua é vista como um “conjunto de práticas sociais e cognitivas historicamente situadas” (MARCUSCHI, 2008, p. 61) e não serve apenas para comunicar, mas para agir no mundo e sobre o mundo, produzir sentidos, imagens (ethos), identidades, experiências. Essa perspectiva deriva da posição bakhtiniana de que a língua é eminentemente dialógica e heterogênea, ou, na clássica afirmativa do próprio Bakhtin, “todo enunciado, em maior ou menor grau, responde, isto é, exprime a relação do falante com os enunciados do outro” (BAKHTIN, 2011b, p. 298). Ora, sendo a linguagem humana essencialmente dialógica (profundamente interativa) e heterogênea (a “língua viva”, ou seja, o discurso é sempre um interdiscurso que se tece com discursos do outro), a comunicação escrita, para ser bem-sucedida, precisa, ao longo de todo o seu processo de constituição, considerar esse outro para quem se escreve, esse coenunciador. Essa é, talvez, a regra primeira da comunicação verbal, já que, como enfatizou Bakhtin (2011b), o papel do outro para o qual construímos nossos textos é excepcionalmente grande ao ponto de se poder afirmar que todas as escolhas (linguísticas, composicionais e de estilo) são feitas sob a influência desse outro que é o meu interlocutor.

  1. Do foco na língua e no autor para a interação autor-leitor: um caso brasileiro

Essa regra primeira da comunicação verbal, contudo, nem sempre é observada, o que, evidentemente, acarreta problemas ao processo de interação verbal. No contexto sociocultural brasileiro, a bula de medicamento é um exemplo de mudança de concepção em relação ao modo como se efetiva a interação verbal em situações de comunicação escrita. Até 2009, as bulas de medicamentos eram objeto de crítica pela sociedade civil devido à sua linguagem técnica e de difícil compreensão, além de outras questões como tamanho da letra e formato. Essas características constituíam-se em fatores inibidores para a leitura, o que fazia com que o paciente usuário do medicamento deixasse de ter acesso a informações essenciais para o seu uso correto. Para corrigir esse problema, a ANVISA elaborou um projeto de Resolução com regras a serem aplicadas a todos os medicamentos e o submeteu à consulta pública para que fossem apresentadas críticas e soluções em relação às propostas. O resultado foi a aprovação de uma Resolução que trazia o detalhamento das novas regras envolvendo as bulas de medicamentos e que procurava garantir o acesso às informações de forma clara tanto para pacientes quanto para profissionais de saúde ao determinar a obrigatoriedade de disponibilização de um tipo de bula específico para cada um desses públicos.

As bulas especificamente direcionadas para pacientes passaram, então, a seguir o formato de perguntas e respostas, nos termos propostos pelo “Guia de Redação de Bulas”, apresentando-se com uma linguagem adequada ao leitor não especializado. Dessa forma, esse texto pôde, finalmente, cumprir de fato o seu papel de elo entre os interlocutores nessa situação específica de comunicação escrita. Compare-se como as mesmas informações presentes na bula do medicamento Neosaldina são apresentadas antes e após a aprovação da Resolução. Termos como “Indicação”, “Mecanismo de ação”, “Posologia” e “Superdosagem” foram substituídos, bem como as suas descrições, por uma linguagem mais clara e amigável: “Para que serve?”, “Como funciona?”, “Como usar?” e “O que fazer se alguém usar uma quantidade maior do que a indicada?”. Percebe-se, nesse exemplo concreto de interação verbal escrita, o deslocamento do foco na língua e no autor para a interação autor-leitor, a qual efetiva-se, sempre, no texto. Tendo sido resgatado esse outro antes negligenciado no processo comunicativo, escolhas linguísticas, composicionais e de estilo adequadas a essa situação específica de comunicação escrita puderam ser tomadas, o que levou ao sucesso da interação verbal, confirmado pela satisfação da sociedade civil brasileira em relação à nova configuração das bulas de medicamentos.

            Nas diversas práticas de comunicação escrita, os coenunciadores devem mobilizar diferentes sistemas de conhecimento – linguístico, enciclopédico e interacional – a par de um conjunto diversificado de estratégias de processamento textual tanto de caráter linguístico-textual como de caráter sociocognitivo (KOCH, 2018b). Na comunicação escrita, essas estratégias são moduladas pelo objetivo comunicativo (para que eu escrevo?), pelo contexto (onde e quando eu escrevo?) e, principalmente, pelo modo como o produtor do texto percebe e representa esse outro braço que ele tanto almeja tocar, isto é, o seu leitor (para quem eu escrevo?). É baseando-se em seus conhecimentos interacionais que o produtor do texto irá, dentre outras escolhas estratégicas, selecionar e adequar o gênero textual à situação comunicativa, tendo em mente o seu interlocutor: “cada gênero do discurso  em cada campo da comunicação discursiva tem a sua concepção típica de destinatário que o determina como gênero”, afirma Bakhtin (2011b, p. 301).

A relação gênero-destinatário é atualizada por Marchuschi (2010) que, por sua vez, ratifica que é impossível pensar em comunicação a não ser por meio de gêneros textuais, entendidos como “formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos” (MARCUSCHI, 2010, p. 26), posição também defendida pela maioria dos autores que consideram a língua como atividade social, histórica e cognitiva e não (apenas) como sistema de formas e regras estruturado e determinado. Na comunicação escrita, produtor e leitor precisam, em momentos distintos do processo de interação verbal, ativar “modelos” que ambos armazenaram sobre práticas comunicativas nessa mesma modalidade. O contato, nas práticas sociais cotidianas, com diferentes gêneros textuais escritos, como e-mails, faturas de cartão de crédito, avisos de despejo, atas de condomínio e outros, exercita a “capacidade metatextual” (KOCH; ELIAS, 2018, p. 55) dos interlocutores e é essa capacidade que irá orientar produtor e leitor quando se envolverem em situações semelhantes de comunicação escrita.

Portanto, uma manipulação eficiente do gênero textual é fundamental para o alcance do propósito comunicativo, já que não escrevemos – nem lemos – textos “a partir do nada”, mas com base em “modelos” que são constituídos e reconstituídos socialmente. A ativação, durante o processo de comunicação escrita (produção e recepção), de “esquemas mentais” que esses “modelos” propiciam é imprescindível para uma adequada textualização (COSTA VAL, 2004) de qualquer texto. A escolha do gênero mais adequado à comunicação escrita dependerá, portanto, dos parâmetros da situação comunicativa específica.

Considerações finais

Como se vê, a concepção sociointeracionista, que concebe a língua como eminentemente dialógica e heterogênea, como atividade social, histórica e cognitiva, traz repercussões importantes para a compreensão da comunicação escrita, sendo que a principal delas talvez seja a de que os dois polos desse processo – autor e leitor – relacionam-se dinamicamente no evento textual, ainda que estejam separados no tempo e no espaço, uma vez que toda “língua viva” estabelece sempre uma “relação necessária com os outros participantes da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2011b, p. 270). Ou, retomando a imagem de Flusser, toda atividade de escrita é o gesto de estender um braço em direção a um interlocutor, ainda que não haja nenhuma garantia da efetivação de um abraço.  

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A interação verbal. In: Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009. p. 114-132.

BAKHTIN, Mikhail. A respeito de problemas na obra de Dostoiévski. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011a. [1979].

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011b. p. 262-306. [1979].

BEAUGRANDE, Robert de. New foundations for a science of text and discourse. Norwood, 1997.

BEAUGRANDE, Robert de; DRESSLER, Wolfgang. Introduction to text linguistics. London, 1981.

BRONCKART, J.P. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 1999. [1997].

COSTA VAL. Texto, textualidade e textualização. In: Pedagogia Cidadã: cadernos de formação: Língua Portuguesa. São Paulo: Unesp, 2004.

KOCH, Ingedore. A interação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2018a [1993].

KOCH, Ingedore. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Contexto, 2011 [2002].

KOCH, Ingedore. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2018b [1997].

KOCH, Ingedore; ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2018 [2009].

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, Angela Paiva; MACHADO, Ana Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Orgs). Gêneros textuais e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas. In: Actes du Colloque del l’Université Charles de Gaulle III. Neuchâtel: Peter Lang, 1994.

[1] Doutor em Letras. Professor Visitante. Universidade Federal de Lavras – UFLA. Departamento de Estudos da Linguagem – DEL. E-mail: denisleandro@outlook.com  

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