08/02/2018

O Magistério Primário no Brasil e a Presença Feminina na Profissão Docente: O Que Mostram os Documentos Oficiais

Amélia Teresinha Brum da Cunha [1] – Universidade Federal de Pelotas

Resumo

Este texto tem como objetivo mostrar como ocorreu a inserção das mulheres na docência. Para tanto procedeu-se a uma investigação teórica com autoras/es que discutem o tema e efetuam uma análise histórica do processo de feminização da profissão docente. Concluiu-se que a elas ficou vinculada a imagem de cuidadoras e essa ideia influenciou a constituição da docente primária em nossas escolas – bem como determinou a ausência dos homens neste cenário.

Palavras-chave: magistério; profissão docente; documentos oficiais; feminização.

Introdução

Dentre os vários estudos que têm como tema a educação de crianças, nota-se a predominância de investigações destinadas a problematizar sobre a escolarização por ciclos, sobre formação de professores, sobre a progressão continuada, a alfabetização, o fracasso escolar, o ensino de 09 anos, sobre políticas públicas, sobre o currículo e sobre as práticas pedagógicas. Evidencia-se que uma grande parte dos estudos ainda não chega a tratar das relações de gênero, assunto cada vez mais necessário de ser incluído nos programas curriculares das escolas.

Neste sentido, para entender acerca da constituição docente no contexto atual brasileiro, com predomínio de mulheres especialmente nos anos iniciais da Educação Básica, convém conhecer o processo histórico e cultural que determinou as condições do exercício da docência no Brasil para professoras e professores.

Muitos estudos analisam sobre a educação brasileira nos momentos posteriores à vinda dos colonizadores portugueses, seguidos dos escravos e imigrantes, intensificando-se os debates e propostas acerca da educação nos anos finais do século XIX e embora o interesse manifesto por “grupos de trabalhadores organizados em torno de ideais políticos, como o socialismo ou o anarquismo” (LOURO, 1997, p. 446) e a efetivação desses ideais na criação de escolas, ainda era possível perceber a necessidade de justificar e aliar a educação ao “destino de mãe” (LOURO, 1997, p. 447).

Conforme Louro, dentro daquele contexto social a mulher deveria ser educada e não instruída, por que, segundo ela,

na opinião de muitos, não havia porque mobiliar a cabeça da mulher com informações ou conhecimentos já que seu destino primordial – como esposa e mãe – exigiria, acima de tudo, uma moral sólida e bons princípios. Ela precisaria ser, em primeiro lugar, a mãe virtuosa, o pilar de sustentação do lar, a educadora das gerações do futuro (LOURO, 1997, p. 46, destaque da autora).

Nóvoa (1992) demonstra em um dos seus estudos que as mudanças sociais, frutos do nosso tempo, transformaram profundamente o trabalho do professor, originando uma sensação de desajustamento e dificuldades nas atuais dimensões constitutivas da sua identificação como professor e a condição docente.

Considerada uma profissão masculina até os anos finais do século XIX, a docência feminina, no Brasil, aos poucos vai tomando lugar na educação, tendo em vista os impedimentos morais da época que consideravam inadequado que as meninas fossem educadas pelos professores homens. Segundo Almeida (1998), são dois os motivos para essa inserção das mulheres no magistério, o “repúdio à co-educação liderado pela Igreja Católica” e “a necessidade de professoras para reger as classes femininas” (ALMEIDA, 1998, p. 65). 

Percebe-se a presença dos ideais republicanos que propagavam a necessidade de instrução do povo e “a crença no poder da educação” (ALMEIDA, 1998, p. 66) para que o fenômeno da feminização docente no Brasil ganhasse cada vez mais impulso.

A partir dos estudos empreendidos por Apple (1988), acerca da feminização do magistério primário nos Estados Unidos e Inglaterra, Almeida (1998) considerou que

na passagem progressiva de trabalho masculino a trabalho feminino, as condições econômicas e as de gênero são determinantes e no processo de desvalorização do magistério as inserções de classe social por certo transcendem a questão simplesmente sexual e englobam os dois sexos (ALMEIDA, 1998, p. 65).

Louro (1997) contribui nessa questão ao afirmar que “para muitas jovens o trabalho remunerado se colocava como uma exigência para sua própria sobrevivência, e o magistério, como se sabe, apresentava-se como um trabalho digno e adequado” (LOURO, 1997, p. 465).

Carvalho (1998) elaborou uma crítica sobre a hegemonia, nas primeiras décadas do século XX no Brasil, de “um discurso que associa o ensino primário com características consideradas femininas” (CARVALHO, 1998, p. 406).

Com isso a autora forneceu elementos para a problematização da visão maternal da docência com crianças versus “aqueles aspectos socialmente identificados com a masculinidade, tais como a racionalidade, a impessoalidade, o profissionalismo, a técnica e o conhecimento científico” (CARVALHO, 1998, p. 409).

Depreende-se da leitura e problematização dessas questões o quanto a visão essencialista e sexista atribuiu aos homens certas prerrogativas inerentes à sua condição de machos, construindo vantagens e privilégios masculinos.

Para Bourdieu (2003), essa naturalização do poder da masculinidade se dá à medida que se eterniza a visão binária de macho e fêmea. De acordo com o autor, essa visão vai sendo revalidada como uma ordem estabelecida e dessa forma fundada socialmente quase sem questionamentos, de modo bastante natural.

É possível dizer que essas bases essencialistas marcaram o caráter assumido pela educação, derivada das mudanças econômicas e sociais desenvolvidas a partir do desenrolar do comércio, século X em diante, e das suas exigências.

Nóvoa (1991) argumenta que o processo de passagem da educação das crianças das famílias e/ou comunidade à instituição escolar pode ser relacionado a outros processos de mudanças ocorridos nos primeiros momentos do século XV. Com o desenvolvimento do comércio e algumas realizações em outros campos, como as Artes e as Ciências, a educação saiu da tutela da Igreja e foi assumida pelo Estado laico.

Pode-se deduzir que o abandono de uma porção significativa dos homens do ensino, principalmente o primário, ao longo de várias décadas, tenha ocorrido em busca de empregos com melhor remuneração, situação que foi propiciada pelo desenvolvimento industrial do país e sua consequente modernização, tendo em vista que “[...] a economia capitalista industrial demandava a criação de novos empregos a serem preenchidos pela população masculina [...]” (ALMEIDA, 1998, p. 70).

No entanto, as transformações na sociedade brasileira verificadas no final do século XIX e início do século XX se encontram relacionadas com posições assumidas por algumas mulheres nesse período, como por exemplo, buscar formação e posteriormente a inserção no mercado de trabalho. Muitas vezes, assumir essas posições tinha o objetivo de minar a estrutura patriarcal dominante e criar uma estrutura mais liberal, com a qual pudessem contar para sair à busca de uma ocupação diferente daquela que tinham em casa, ou seja, o trabalho doméstico.

Essa possibilidade de rompimento com os laços patriarcais, aos quais as mulheres estavam submetidas, foi, em parte, graças aos caminhos tomados pela necessidade de expansão da instrução no Brasil e que se consolidou com a criação da Escola Normal, embora que num primeiro momento essa instituição tivesse sido dirigida exclusivamente aos homens, conforme Demartini e Antunes (1993); Kulesza (1998); Vicentini e Luigli (2012), entre outras/os autoras/es. Muitas dessas transformações que ocorreram desde então em nossa sociedade tiveram bastante repercussão na configuração atual da docência.

Com o objetivo de estruturar uma análise do processo de feminização do trabalho docente e de como esse fenômeno influenciou a participação masculina no ensino primário no Brasil, ou foi influenciado por ele, apresento a seguir um levantamento histórico que mostrará os caminhos trilhados pelas mulheres no campo da docência. Analisar o trabalho docente sob a ótica do gênero permite, inclusive, que se examine o trabalho docente masculino.

O impulso feminino nas escolas primárias

Durante o período colonial, entre 1532 a 1759, as escolas brasileiras, sob a tutela dos jesuítas, dedicavam-se apenas à educação dos meninos. Cabia às meninas a aprendizagem de atividades identificadas como naturalmente femininas, tais como costurar, bordar, cozinhar, cuidar da casa, marido e filhos.

Em Setembro de 1823 foi apresentada à Assembleia, pela Comissão Constituinte, o projeto de Constituição com vistas à difusão da instrução pública de todos os níveis.

Este projeto constitucional de 1823 previa que para os brancos ou supostamente brancos haveria educação escolar formal, conforme o disposto no Art. 250. Entretanto, para os índios apenas catequese e civilização; para os negros, emancipados lentamente, seria destinada educação religiosa e industrial. Porém, com o golpe de 1823 a Assembleia Constituinte foi dissolvida e o projeto de Constituição anulado, ocorrendo, assim, a perda de importantes resoluções sobre instrução pública.

Por volta de 1834, o ensino público secundário encontrava-se fragmentado em aulas avulsas de latim, retórica, filosofia, geometria, francês e comércio, espalhadas por todo o Império. O panorama da educação secundária começou a modificar-se com o Ato Adicional de 1834. Nesse contexto, surgiram os primeiros liceus provinciais. Contudo, as primeiras medidas de organização administrativa da instrução pública e o início de um processo de uniformização do ensino somente vieram com as reformas realizadas a partir de 1854.

No ano de 1854 foi baixado o regulamento de Instrução Primária e Secundária do Município da Corte pelo Ministro do Império Luiz Pedreira do Couto Ferraz.

Pelo regulamento foi criada a Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária do Município da Corte que se destinava a fiscalizar e orientar o ensino público e particular dos níveis primário e médio na cidade do Rio de Janeiro, além de estruturar em dois níveis – o elementar e o superior – a instrução primária gratuita, constitucionalmente prometida a todos. O regulamento previu, ainda, um sistema de preparação do professor primário e estabeleceu normas para o exercício da liberdade de ensinar (PERES, 2005, p. 11).

A partir desse Regulamento o ensino primário na Corte seria obrigatório, com matrícula entre cinco e quinze anos e vedada aos escravos e a co-educação proibida nas escolas para o sexo feminino.

Com o advento da República a educação pública ganha outros contornos, caracterizando-se principalmente pela separação do Estado e Igreja e pelo laicismo e neutralismo escolar em matéria confessional.

Como herança do período anterior coube à República a tarefa de estruturar a escola pública, estabelecer a escola primária como escola comum e aberta a todos, transformar a escola secundária - elitista e propedêutica - em escola formativa, articulada à primária.

Fatores econômicos, sociais e culturais influenciaram enormemente a estrutura social nos fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, facilitando tanto o acesso à educação de setores menos abastados da sociedade, como também a inserção das mulheres como profissionais nesse campo.

Inicialmente, a instrução visava considerar os anseios de modernização advindos das mudanças estruturais por que passava o país, oriundos da mudança de mão de obra escrava pela imigrante, principalmente a europeia. Dessa maneira, a característica de atender as camadas mais empobrecidas social e economicamente se devia ao caráter benemerente e assistencialista que marcaram a instituição de escolas no Brasil, conforme afirmam os estudos de Villela, Louro, Saviani, entre outros/as autores/as.

Entretanto, sabe-se que à população africana era negado o acesso a qualquer forma de escolarização e quando as crianças negras tinham oportunidades de ensino essas caracterizavam excepcionalidade e filantropia. Diferentemente do que ocorria com os negros, os indígenas recebiam algum tipo de ação religiosa, mas eram proibidos de frequentar as escolas públicas (LOURO,1997).

 A educação dos negros e indígenas deveria se basear nas práticas de seus próprios grupos de origem, no caso dos índios, e na violência do trabalho e nas formas de luta pela sobrevivência, no caso dos negros (LOURO, 1997, p. 15). Essas determinações e exclusões foram decisivas para o atual estado em que se encontra a sociedade brasileira com relação aos direitos das minorias. Vejamos o que diz Louro sobre as diversidades educacionais com base na classe e raça.

Evidentemente as divisões de classe, etnia e raça tinham um papel importante na determinação das formas de educação utilizadas para transformar as crianças em mulheres e homens. A essas divisões se acrescentariam ainda as divisões religiosas, que também implicariam diversidades nas proposições educacionais (LOURO, 1997, p. 14).

Assim, com as mudanças nos cenários político e econômico tanto do Brasil como da Europa, acabaram sucedendo-se mudanças na educação brasileira.

No que diz respeito aos privilégios de gênero, estes eram bastante disseminados entre a população local, pois, de acordo com Kulesza (1998), o ensino secundário ministrado nos Liceus era essencialmente destinado a atender os homens, dedicando-se à preparação para o ingresso no ensino superior, o que era proibido às mulheres. Desse modo, essa característica influenciou sobremaneira que elas se dedicassem ao magistério primário.

Esses diversos Liceus provinciais foram referência fundamental para o desenvolvimento do ensino normal, emprestando seus professores, suas instalações e seus regulamentos para as novas escolas (KULESZA, 1998, p. 64).

Desse modo, já na primeira década do século XX começam a aparecer em todo o território nacional as Escolas Normais, compostas de escolas-modelo anexas aos Liceus que se destinavam à prática pedagógica. Esse movimento pode ser interpretado como os primeiros passos do “processo de profissionalização do nosso magistério primário” (KULESZA, 1998, p. 63).

O estabelecimento de “escolas de primeiras letras” (LOURO, 1997) havia sido determinado pelos legisladores brasileiros ainda no período imperial, antes do fim da segunda década do século XIX, abrangendo, pelo menos em tese, as mulheres, as quais, segundo Almeida (1998, p. 11), “até o século XIX somente tiveram acesso à educação religiosa ministrada nos conventos”.

Nessas primeiras escolas voltadas para o sexo feminino, como não era permitido a co-eduação e, portanto, as salas de aula não eram mistas, começam a aparecer com maior intensidade não apenas alunas, mas também professoras.

A escolarização dos rapazes ficava sob a responsabilidade de professores, sendo permitida às professoras a educação dos meninos que tivessem a idade máxima de 08 anos, porém, “para suprir as cadeiras do sexo masculino vagas por falta de professores homens” (WERLE, 1996, p. 16) foi preciso “convencer políticos e a sociedade da época das vantagens de mulheres, e não homens, ensinarem as primeiras letras aos meninos” (WERLE, 1996, p. 8).

A possibilidade de ingresso das mulheres como professoras de meninos se deu a partir da utilização de vários argumentos, entre eles o apelo às características femininas.

De acordo com Werle (1996), para obter a aprovação da utilização da mão de obra feminina no ensino dos meninos foi preciso recorrer para algumas características compreendidas como pertencentes ao universo quase exclusivo das mulheres, entre eles:

O afeto, a inocência, a bondade, a curiosidade, o sentimento, as lágrimas, o sorriso e até na voz, em tudo as mulheres se aproximam dos meninos e isto, explicavam os governantes, justificava a decisão de indicar professoras para as aulas públicas de meninos que estivessem vagas (WERLE, 1996, p. 9).

Contudo, essa inserção das mulheres na profissão docente provocou reações adversas e acentuou a “discriminação sexual” (BRUSCHINI e AMADO, 1998), demonstrado pela organização curricular que estabelecia que os currículos fossem diferentes, a fim de deixar ao cargo dos professores as noções mais complexas de aritmética e geometria, resultando numa diferenciação salarial entre as professoras e os professores, dado que o salário era pago por disciplina trabalhada e algumas delas não eram permitidas às mulheres, como afirmam Louro (1997) e Demartini e Antunes (1993).

Durante a primeira década de funcionamento da Escola Normal, inúmeros discursos questionavam os resultados trazidos pela instituição. No entanto, este modelo se legitimou com o passar do tempo, havendo o aumento gradual de estudantes que procuravam a escola. Ao longo dos primeiros cinco anos, contava-se 1166 inscritos na primeira série. Dentre estes, mais de 700 eram mulheres, o que indica a sua forte presença na escola.

Nesse sentido, o aumento gradual de mulheres no quadro docente, a procura feminina pela Escola Normal, dentre outros fatores, modificou as representações acerca desta ocupação. Estes números apontam para um processo de feminização do magistério primário que vinha se afirmando no final do século XIX em diversas províncias do Império.

Assim, pode-se observar que a questão da feminização do magistério primário esteve ligada à presença das meninas nas escolas primárias, devendo estas serem organizadas para recebê-las, tanto fisicamente quanto no que dizia respeito ao recrutamento e formação das professoras que ocupariam tais instituições.

Faria Filho e Macedo (2004) relatam que a partir de 1869 cresceu o número de mulheres no magistério devido a vários fatores, dos quais podem ser destacados o incentivo das políticas educacionais que requeriam a ocupação das salas de aula pelas mulheres e a acentuada presença de meninas nas escolas primárias, dentre outros.

Os autores indicam ainda que foi bastante relativa a participação das mulheres nas Escolas Normais tendo em conta que não era proibido às mulheres assumirem a docência sem ter tido preparação nas Escolas Normais (FARIA FILHO e MACEDO, 2004).

Essa possibilidade de exercer a docência foi outra característica ou herança deixada pelo Império, pois desde aquele período era possível “ingressar no magistério sem a necessidade do diploma de normalista” (KULESZA, 1998, p. 66).

Contudo, essa inexigibilidade de formação era compensada pela exigência de uma conduta ilibada. Para suprir a falta de formação docente, era exigida, entre outras características, uma correição de caráter aos postulantes ao cargo de professor/a, assim,

essa carência sempre era suprida pelo conceito de moralidade. Não era fundamental ter um quadro de professores qualificados, mas era indispensável que os professores fossem engajados no projeto, portanto, defensores e difusores da ordem e civilização. Eles deveriam servir de modelo aos seus alunos tanto na sua vida pública como na vida privada. Essa forte vigilância visava impedir que os professores semeassem em seus alunos valores e princípios diferenciados dos defendidos pela classe hegemônica (CASTANHA, 2008, p. 31).

Conforme Uekane (2005) é preciso observar que o processo de feminização do magistério primário não aconteceu de modo homogêneo e que não há uma única causa possível de explicação do fenômeno, já que

homens e mulheres resistiram e se apropriaram de normas e regras frente aos seus interesses. Assim, esta temática deve ser analisada a partir dos jogos de relações que a permeiam, pois as mulheres tiveram uma participação, com maior ou menor grau, no processo de feminização do magistério primário e, havendo também, no interior deste grupo, posições conflitantes quanto à melhor forma de inserção neste oficio (UEKANE, 2005, p. 5).

Apesar desse processo, permaneciam disposições e arranjos que imputavam às mulheres disciplinas e tarefas que entremeavam um iminente futuro de possibilidades de inserção no mercado de trabalho com as imposições do passado, numa tentativa de permitir que assumissem encargos públicos sem, entretanto, perder a essência feminina. Tanuri (2000) ressalta essa condição ao mostrar que “mecanismos de exclusão refletiam-se mesmo na escola primária, onde o currículo para o sexo feminino era mais reduzido e diferenciado, contemplando o domínio de trabalhos domésticos” (TANURI, 2000, p. 14).

Assim, a feminização da profissão, no Brasil, se deve à existência de vários fatores que normalmente são trazidos como explicativos do fenômeno por estudiosos e estudiosas do tema, tais como: mudanças econômicas e sociais desenvolvidas a partir do desenrolar do comércio, século X em diante, e das suas exigências (NÓVOA, 1991); o abandono das salas de aula pelos homens e a crescente necessidade de mão de obra na indústria brasileira nascente (ALMEIDA, 1998); os baixos salários oferecidos (SAFFIOTI, 1969; BARRETO, 1981); o conceito de vocação (BRUSCHINI, 1981), a intervenção do Estado na educação e a abertura de Escolas Normais (BRUSCHINI; AMADO, 1988); a missão civilizatória atribuída às mulheres como condutoras morais da ordem social (CHAMON, 2006), enfim, as possibilidades de explicação do fenômeno são muitas e conhecidas. Entretanto, as que parecem mais ajustadas ao interesse deste texto são aquelas que relacionam esse processo com a questão de gênero, como fazem, entre outras/os estudiosas/os, Louro, Almeida, Villela, Catani, Bueno.

Nesse processo, denominado feminização do magistério, os argumentos mais difundidos colocam como questões centrais o desinteresse dos homens em continuarem nesse espaço por conta da precarização da docência, em especial devido aos baixos salários e a dificuldade de acesso da mulher a outras profissões, entre outras razões.

O que sabemos é que nos finais do século XIX as escolas normais brasileiras registraram um aumento considerável no número de matrículas de mulheres, bem como evidenciaram, ao mesmo tempo, o abandono das salas de aula pelos homens, fato que pode ser relacionado à crescente necessidade de mão de obra na indústria que despontava no país. Entretanto, essa explicação é apenas uma parte das possíveis causas desse processo (ALMEIDA,1988).

Almeida (1998) observa que

não resta dúvida de que o segmento masculino abandonou o magistério ao longo das décadas, principalmente no ensino primário, senão este não estaria hoje quase totalmente ocupado pelas mulheres; essa é uma constatação baseada em números. O que deve ser esclarecido é se as causas da feminização não serão ainda mais complexas do que apenas o aumento quantitativo de vagas no magistério e a saída dos homens, que considero apenas uma parte da explicação e não toda ela (ALMEIDA, 1998, p. 66).

A autora se refere ao fenômeno da retirada dos homens do campo educacional para partirem em busca de empregos com melhor remuneração, situação propiciada pelo desenvolvimento industrial do país e sua consequente modernização, ou ainda, pela “crença nas virtudes da instrução enquanto fator de progresso” (NÓVOA, 1991, p. 126) tendo em vista que “[...] a economia capitalista industrial demandava a criação de novos empregos a serem preenchidos pela população masculina [...]” (ALMEIDA, 1998, p. 70).

Essa crescente atuação feminina no mundo do trabalho a partir da segunda década do século XX, mesmo que em cargos destinados à ‘natureza feminina’, pontencializou-se quando a indústria, o comércio e o setor de serviços necessitaram de mão de obra que soubesse ler e escrever, embora a mulher professora continuasse sendo vista como mãe e seu emprego a ser classificado como extensão do lar.

No que concerne ainda a desvalorização ser relacionada à feminização docente, a reflexão de Almeida (1998) se torna apropriada se quisermos entender outros aspectos ligados a esse tema. A autora afirma que “[...] quando se atribui a desvalorização profissional do magistério somente ao ingresso das mulheres na profissão, incorre-se num falso argumento” (ALMEIDA, 1998, p. 72).

Para Almeida (1998), pode-se atribuir a desvalorização profissional da categoria docente às razões sociológicas e econômicas em uma escala de influência muito maior do que a exercida pela diferenciação sexual. Dessa forma, segundo a autora, concorre para essa desvalorização não somente o baixo estatuto da carreira docente, principalmente no ensino primário e na escola pública, cujo princípio repousa 

mais na divisão classista da sociedade do que, propriamente, na sua feminização. É fato notório no sistema urbano, industrial e capitalista que as profissões ligadas à população de baixa renda têm sucumbido rapidamente à perda do seu poder aquisitivo, do prestígio e do poder político (ALMEIDA, 1998, p. 73).

Afora todas as características apontadas anteriormente como indesejáveis na profissão docente, o fenômeno da feminização do magistério pode ser visto de uma forma positiva no que diz respeito ao acesso das mulheres ao mercado de trabalho. Entretanto, a elas ficou vinculada a imagem de “cuidado, sensibilidade, amor, vigilância” (LOURO, 1997, p. 454) que as acompanharam no exercício da docência e como essa ideia influenciou a constituição da docente primária em nossas escolas – bem como determinou a ausência dos homens neste cenário.

Referências

ALMEIDA, Jane S. de. Mulher e educação: a paixão pelo possível. São Paulo: Ed: Universidade Estadual Paulista, 1998. 225 p.

BRUSCHINI, Cristina; AMADO, Tina. Estudos sobre a mulher e educação: Algumas questões sobre o magistério. Cadernos de Pesquisa. v. 64. p. 4-13. 1998.

CARVALHO, M. P. (1998). Professor, professora: um olhar sobre as práticas docentes nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Tese de Doutorado em Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo, SP.

CASTANHA, André Paulo. O Ato Adicional de 1834 e a instrução elementar no império: descentralização ou centralização?. 2007. 558 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2007.

DEMARTINI, Zeila; ANTUNES, Fátima. Magistério primário: profissão feminina, carreira masculina. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 86, p. 5-14, ago. 1993.

FARIA FILHO, L. M.; MACEDO, E. F. P.. A feminização do magistério em minas gerais (1860-1910): política, legislação e dados estatísticos. Curitiba: Anais do III Congresso Brasileiro de História da Educação. 2004.

KULESZA, W. A. A Institucionalização da escola normal no Brasil (1870-1910). Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v.79, n.193, p.63 -71, set./dez. 1998.

LOURO, G. L. (1997). Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. 188 p.

NÓVOA, Antonio. O passado e o presente dos professores, In: NÓVOA, Antonio (org.). Profissão Professor. Porto: Porto Editora, 1992. 139 p.

NÓVOA, Antonio. Para o estudo sócio-histórico da gênese e desenvolvimento da profissão docente. Teoria & Educação. Porto Alegre, n. 4, p. 109-139, 1991.

UEKANE, Marina N. Educar no método de educar – Um estudo acerca da formação de professores na Corte Imperial (1854-1888). Rio de Janeiro: UERJ, Monografia de conclusão do Curso de Pedagogia. 2005.

WERLE, Flávia Obino Corrêa. Feminização do magistério como estratégia de expansão da instrução pública. Educação Pública. Cuiabá, v.5, n.7, p. 187 – 200, jan./jun. 1996.

[1] Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas/RS.

O magistério primário no Brasil e a presença feminina na profissão docente: o que mostram os documentos oficiais

 

Amélia Teresinha Brum da Cunha – Universidade Federal de Pelotas

Resumo

Este texto tem como objetivo mostrar como ocorreu a inserção das mulheres na docência. Para tanto procedeu-se a uma investigação teórica com autoras/es que discutem o tema e efetuam uma análise histórica do processo de feminização da profissão docente. Concluiu-se que a elas ficou vinculada a imagem de cuidadoras e essa ideia influenciou a constituição da docente primária em nossas escolas – bem como determinou a ausência dos homens neste cenário.

Palavras-chave: magistério; profissão docente; documentos oficiais; feminização.

Introdução

Dentre os vários estudos que têm como tema a educação de crianças, nota-se a predominância de investigações destinadas a problematizar sobre a escolarização por ciclos, sobre formação de professores, sobre a progressão continuada, a alfabetização, o fracasso escolar, o ensino de 09 anos, sobre políticas públicas, sobre o currículo e sobre as práticas pedagógicas. Evidencia-se que uma grande parte dos estudos ainda não chega a tratar das relações de gênero, assunto cada vez mais necessário de ser incluído nos programas curriculares das escolas.

Neste sentido, para entender acerca da constituição docente no contexto atual brasileiro, com predomínio de mulheres especialmente nos anos iniciais da Educação Básica, convém conhecer o processo histórico e cultural que determinou as condições do exercício da docência no Brasil para professoras e professores.

Muitos estudos analisam sobre a educação brasileira nos momentos posteriores à vinda dos colonizadores portugueses, seguidos dos escravos e imigrantes, intensificando-se os debates e propostas acerca da educação nos anos finais do século XIX e embora o interesse manifesto por “grupos de trabalhadores organizados em torno de ideais políticos, como o socialismo ou o anarquismo” (LOURO, 1997, p. 446) e a efetivação desses ideais na criação de escolas, ainda era possível perceber a necessidade de justificar e aliar a educação ao “destino de mãe” (LOURO, 1997, p. 447).

Conforme Louro, dentro daquele contexto social a mulher deveria ser educada e não instruída, por que, segundo ela,

na opinião de muitos, não havia porque mobiliar a cabeça da mulher com informações ou conhecimentos já que seu destino primordial – como esposa e mãe – exigiria, acima de tudo, uma moral sólida e bons princípios. Ela precisaria ser, em primeiro lugar, a mãe virtuosa, o pilar de sustentação do lar, a educadora das gerações do futuro (LOURO, 1997, p. 46, destaque da autora).

Nóvoa (1992) demonstra em um dos seus estudos que as mudanças sociais, frutos do nosso tempo, transformaram profundamente o trabalho do professor, originando uma sensação de desajustamento e dificuldades nas atuais dimensões constitutivas da sua identificação como professor e a condição docente.

Considerada uma profissão masculina até os anos finais do século XIX, a docência feminina, no Brasil, aos poucos vai tomando lugar na educação, tendo em vista os impedimentos morais da época que consideravam inadequado que as meninas fossem educadas pelos professores homens. Segundo Almeida (1998), são dois os motivos para essa inserção das mulheres no magistério, o “repúdio à co-educação liderado pela Igreja Católica” e “a necessidade de professoras para reger as classes femininas” (ALMEIDA, 1998, p. 65). 

Percebe-se a presença dos ideais republicanos que propagavam a necessidade de instrução do povo e “a crença no poder da educação” (ALMEIDA, 1998, p. 66) para que o fenômeno da feminização docente no Brasil ganhasse cada vez mais impulso.

A partir dos estudos empreendidos por Apple (1988), acerca da feminização do magistério primário nos Estados Unidos e Inglaterra, Almeida (1998) considerou que

na passagem progressiva de trabalho masculino a trabalho feminino, as condições econômicas e as de gênero são determinantes e no processo de desvalorização do magistério as inserções de classe social por certo transcendem a questão simplesmente sexual e englobam os dois sexos (ALMEIDA, 1998, p. 65).

Louro (1997) contribui nessa questão ao afirmar que “para muitas jovens o trabalho remunerado se colocava como uma exigência para sua própria sobrevivência, e o magistério, como se sabe, apresentava-se como um trabalho digno e adequado” (LOURO, 1997, p. 465).

Carvalho (1998) elaborou uma crítica sobre a hegemonia, nas primeiras décadas do século XX no Brasil, de “um discurso que associa o ensino primário com características consideradas femininas” (CARVALHO, 1998, p. 406).

Com isso a autora forneceu elementos para a problematização da visão maternal da docência com crianças versus “aqueles aspectos socialmente identificados com a masculinidade, tais como a racionalidade, a impessoalidade, o profissionalismo, a técnica e o conhecimento científico” (CARVALHO, 1998, p. 409).

Depreende-se da leitura e problematização dessas questões o quanto a visão essencialista e sexista atribuiu aos homens certas prerrogativas inerentes à sua condição de machos, construindo vantagens e privilégios masculinos.

Para Bourdieu (2003), essa naturalização do poder da masculinidade se dá à medida que se eterniza a visão binária de macho e fêmea. De acordo com o autor, essa visão vai sendo revalidada como uma ordem estabelecida e dessa forma fundada socialmente quase sem questionamentos, de modo bastante natural.

É possível dizer que essas bases essencialistas marcaram o caráter assumido pela educação, derivada das mudanças econômicas e sociais desenvolvidas a partir do desenrolar do comércio, século X em diante, e das suas exigências.

Nóvoa (1991) argumenta que o processo de passagem da educação das crianças das famílias e/ou comunidade à instituição escolar pode ser relacionado a outros processos de mudanças ocorridos nos primeiros momentos do século XV. Com o desenvolvimento do comércio e algumas realizações em outros campos, como as Artes e as Ciências, a educação saiu da tutela da Igreja e foi assumida pelo Estado laico.

Pode-se deduzir que o abandono de uma porção significativa dos homens do ensino, principalmente o primário, ao longo de várias décadas, tenha ocorrido em busca de empregos com melhor remuneração, situação que foi propiciada pelo desenvolvimento industrial do país e sua consequente modernização, tendo em vista que “[...] a economia capitalista industrial demandava a criação de novos empregos a serem preenchidos pela população masculina [...]” (ALMEIDA, 1998, p. 70).

No entanto, as transformações na sociedade brasileira verificadas no final do século XIX e início do século XX se encontram relacionadas com posições assumidas por algumas mulheres nesse período, como por exemplo, buscar formação e posteriormente a inserção no mercado de trabalho. Muitas vezes, assumir essas posições tinha o objetivo de minar a estrutura patriarcal dominante e criar uma estrutura mais liberal, com a qual pudessem contar para sair à busca de uma ocupação diferente daquela que tinham em casa, ou seja, o trabalho doméstico.

Essa possibilidade de rompimento com os laços patriarcais, aos quais as mulheres estavam submetidas, foi, em parte, graças aos caminhos tomados pela necessidade de expansão da instrução no Brasil e que se consolidou com a criação da Escola Normal, embora que num primeiro momento essa instituição tivesse sido dirigida exclusivamente aos homens, conforme Demartini e Antunes (1993); Kulesza (1998); Vicentini e Luigli (2012), entre outras/os autoras/es. Muitas dessas transformações que ocorreram desde então em nossa sociedade tiveram bastante repercussão na configuração atual da docência.

Com o objetivo de estruturar uma análise do processo de feminização do trabalho docente e de como esse fenômeno influenciou a participação masculina no ensino primário no Brasil, ou foi influenciado por ele, apresento a seguir um levantamento histórico que mostrará os caminhos trilhados pelas mulheres no campo da docência. Analisar o trabalho docente sob a ótica do gênero permite, inclusive, que se examine o trabalho docente masculino.

O impulso feminino nas escolas primárias

Durante o período colonial, entre 1532 a 1759, as escolas brasileiras, sob a tutela dos jesuítas, dedicavam-se apenas à educação dos meninos. Cabia às meninas a aprendizagem de atividades identificadas como naturalmente femininas, tais como costurar, bordar, cozinhar, cuidar da casa, marido e filhos.

Em Setembro de 1823 foi apresentada à Assembleia, pela Comissão Constituinte, o projeto de Constituição com vistas à difusão da instrução pública de todos os níveis.

Este projeto constitucional de 1823 previa que para os brancos ou supostamente brancos haveria educação escolar formal, conforme o disposto no Art. 250. Entretanto, para os índios apenas catequese e civilização; para os negros, emancipados lentamente, seria destinada educação religiosa e industrial. Porém, com o golpe de 1823 a Assembleia Constituinte foi dissolvida e o projeto de Constituição anulado, ocorrendo, assim, a perda de importantes resoluções sobre instrução pública.

Por volta de 1834, o ensino público secundário encontrava-se fragmentado em aulas avulsas de latim, retórica, filosofia, geometria, francês e comércio, espalhadas por todo o Império. O panorama da educação secundária começou a modificar-se com o Ato Adicional de 1834. Nesse contexto, surgiram os primeiros liceus provinciais. Contudo, as primeiras medidas de organização administrativa da instrução pública e o início de um processo de uniformização do ensino somente vieram com as reformas realizadas a partir de 1854.

No ano de 1854 foi baixado o regulamento de Instrução Primária e Secundária do Município da Corte pelo Ministro do Império Luiz Pedreira do Couto Ferraz.

Pelo regulamento foi criada a Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária do Município da Corte que se destinava a fiscalizar e orientar o ensino público e particular dos níveis primário e médio na cidade do Rio de Janeiro, além de estruturar em dois níveis – o elementar e o superior – a instrução primária gratuita, constitucionalmente prometida a todos. O regulamento previu, ainda, um sistema de preparação do professor primário e estabeleceu normas para o exercício da liberdade de ensinar (PERES, 2005, p. 11).

A partir desse Regulamento o ensino primário na Corte seria obrigatório, com matrícula entre cinco e quinze anos e vedada aos escravos e a co-educação proibida nas escolas para o sexo feminino.

Com o advento da República a educação pública ganha outros contornos, caracterizando-se principalmente pela separação do Estado e Igreja e pelo laicismo e neutralismo escolar em matéria confessional.

Como herança do período anterior coube à República a tarefa de estruturar a escola pública, estabelecer a escola primária como escola comum e aberta a todos, transformar a escola secundária - elitista e propedêutica - em escola formativa, articulada à primária.

Fatores econômicos, sociais e culturais influenciaram enormemente a estrutura social nos fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, facilitando tanto o acesso à educação de setores menos abastados da sociedade, como também a inserção das mulheres como profissionais nesse campo.

Inicialmente, a instrução visava considerar os anseios de modernização advindos das mudanças estruturais por que passava o país, oriundos da mudança de mão de obra escrava pela imigrante, principalmente a europeia. Dessa maneira, a característica de atender as camadas mais empobrecidas social e economicamente se devia ao caráter benemerente e assistencialista que marcaram a instituição de escolas no Brasil, conforme afirmam os estudos de Villela, Louro, Saviani, entre outros/as autores/as.

Entretanto, sabe-se que à população africana era negado o acesso a qualquer forma de escolarização e quando as crianças negras tinham oportunidades de ensino essas caracterizavam excepcionalidade e filantropia. Diferentemente do que ocorria com os negros, os indígenas recebiam algum tipo de ação religiosa, mas eram proibidos de frequentar as escolas públicas (LOURO,1997).

 A educação dos negros e indígenas deveria se basear nas práticas de seus próprios grupos de origem, no caso dos índios, e na violência do trabalho e nas formas de luta pela sobrevivência, no caso dos negros (LOURO, 1997, p. 15). Essas determinações e exclusões foram decisivas para o atual estado em que se encontra a sociedade brasileira com relação aos direitos das minorias. Vejamos o que diz Louro sobre as diversidades educacionais com base na classe e raça.

Evidentemente as divisões de classe, etnia e raça tinham um papel importante na determinação das formas de educação utilizadas para transformar as crianças em mulheres e homens. A essas divisões se acrescentariam ainda as divisões religiosas, que também implicariam diversidades nas proposições educacionais (LOURO, 1997, p. 14).

Assim, com as mudanças nos cenários político e econômico tanto do Brasil como da Europa, acabaram sucedendo-se mudanças na educação brasileira.

No que diz respeito aos privilégios de gênero, estes eram bastante disseminados entre a população local, pois, de acordo com Kulesza (1998), o ensino secundário ministrado nos Liceus era essencialmente destinado a atender os homens, dedicando-se à preparação para o ingresso no ensino superior, o que era proibido às mulheres. Desse modo, essa característica influenciou sobremaneira que elas se dedicassem ao magistério primário.

Esses diversos Liceus provinciais foram referência fundamental para o desenvolvimento do ensino normal, emprestando seus professores, suas instalações e seus regulamentos para as novas escolas (KULESZA, 1998, p. 64).

Desse modo, já na primeira década do século XX começam a aparecer em todo o território nacional as Escolas Normais, compostas de escolas-modelo anexas aos Liceus que se destinavam à prática pedagógica. Esse movimento pode ser interpretado como os primeiros passos do “processo de profissionalização do nosso magistério primário” (KULESZA, 1998, p. 63).

O estabelecimento de “escolas de primeiras letras” (LOURO, 1997) havia sido determinado pelos legisladores brasileiros ainda no período imperial, antes do fim da segunda década do século XIX, abrangendo, pelo menos em tese, as mulheres, as quais, segundo Almeida (1998, p. 11), “até o século XIX somente tiveram acesso à educação religiosa ministrada nos conventos”.

Nessas primeiras escolas voltadas para o sexo feminino, como não era permitido a co-eduação e, portanto, as salas de aula não eram mistas, começam a aparecer com maior intensidade não apenas alunas, mas também professoras.

A escolarização dos rapazes ficava sob a responsabilidade de professores, sendo permitida às professoras a educação dos meninos que tivessem a idade máxima de 08 anos, porém, “para suprir as cadeiras do sexo masculino vagas por falta de professores homens” (WERLE, 1996, p. 16) foi preciso “convencer políticos e a sociedade da época das vantagens de mulheres, e não homens, ensinarem as primeiras letras aos meninos” (WERLE, 1996, p. 8).

A possibilidade de ingresso das mulheres como professoras de meninos se deu a partir da utilização de vários argumentos, entre eles o apelo às características femininas.

De acordo com Werle (1996), para obter a aprovação da utilização da mão de obra feminina no ensino dos meninos foi preciso recorrer para algumas características compreendidas como pertencentes ao universo quase exclusivo das mulheres, entre eles:

O afeto, a inocência, a bondade, a curiosidade, o sentimento, as lágrimas, o sorriso e até na voz, em tudo as mulheres se aproximam dos meninos e isto, explicavam os governantes, justificava a decisão de indicar professoras para as aulas públicas de meninos que estivessem vagas (WERLE, 1996, p. 9).

Contudo, essa inserção das mulheres na profissão docente provocou reações adversas e acentuou a “discriminação sexual” (BRUSCHINI e AMADO, 1998), demonstrado pela organização curricular que estabelecia que os currículos fossem diferentes, a fim de deixar ao cargo dos professores as noções mais complexas de aritmética e geometria, resultando numa diferenciação salarial entre as professoras e os professores, dado que o salário era pago por disciplina trabalhada e algumas delas não eram permitidas às mulheres, como afirmam Louro (1997) e Demartini e Antunes (1993).

Durante a primeira década de funcionamento da Escola Normal, inúmeros discursos questionavam os resultados trazidos pela instituição. No entanto, este modelo se legitimou com o passar do tempo, havendo o aumento gradual de estudantes que procuravam a escola. Ao longo dos primeiros cinco anos, contava-se 1166 inscritos na primeira série. Dentre estes, mais de 700 eram mulheres, o que indica a sua forte presença na escola.

Nesse sentido, o aumento gradual de mulheres no quadro docente, a procura feminina pela Escola Normal, dentre outros fatores, modificou as representações acerca desta ocupação. Estes números apontam para um processo de feminização do magistério primário que vinha se afirmando no final do século XIX em diversas províncias do Império.

Assim, pode-se observar que a questão da feminização do magistério primário esteve ligada à presença das meninas nas escolas primárias, devendo estas serem organizadas para recebê-las, tanto fisicamente quanto no que dizia respeito ao recrutamento e formação das professoras que ocupariam tais instituições.

Faria Filho e Macedo (2004) relatam que a partir de 1869 cresceu o número de mulheres no magistério devido a vários fatores, dos quais podem ser destacados o incentivo das políticas educacionais que requeriam a ocupação das salas de aula pelas mulheres e a acentuada presença de meninas nas escolas primárias, dentre outros.

Os autores indicam ainda que foi bastante relativa a participação das mulheres nas Escolas Normais tendo em conta que não era proibido às mulheres assumirem a docência sem ter tido preparação nas Escolas Normais (FARIA FILHO e MACEDO, 2004).

Essa possibilidade de exercer a docência foi outra característica ou herança deixada pelo Império, pois desde aquele período era possível “ingressar no magistério sem a necessidade do diploma de normalista” (KULESZA, 1998, p. 66).

Contudo, essa inexigibilidade de formação era compensada pela exigência de uma conduta ilibada. Para suprir a falta de formação docente, era exigida, entre outras características, uma correição de caráter aos postulantes ao cargo de professor/a, assim,

essa carência sempre era suprida pelo conceito de moralidade. Não era fundamental ter um quadro de professores qualificados, mas era indispensável que os professores fossem engajados no projeto, portanto, defensores e difusores da ordem e civilização. Eles deveriam servir de modelo aos seus alunos tanto na sua vida pública como na vida privada. Essa forte vigilância visava impedir que os professores semeassem em seus alunos valores e princípios diferenciados dos defendidos pela classe hegemônica (CASTANHA, 2008, p. 31).

Conforme Uekane (2005) é preciso observar que o processo de feminização do magistério primário não aconteceu de modo homogêneo e que não há uma única causa possível de explicação do fenômeno, já que

homens e mulheres resistiram e se apropriaram de normas e regras frente aos seus interesses. Assim, esta temática deve ser analisada a partir dos jogos de relações que a permeiam, pois as mulheres tiveram uma participação, com maior ou menor grau, no processo de feminização do magistério primário e, havendo também, no interior deste grupo, posições conflitantes quanto à melhor forma de inserção neste oficio (UEKANE, 2005, p. 5).

Apesar desse processo, permaneciam disposições e arranjos que imputavam às mulheres disciplinas e tarefas que entremeavam um iminente futuro de possibilidades de inserção no mercado de trabalho com as imposições do passado, numa tentativa de permitir que assumissem encargos públicos sem, entretanto, perder a essência feminina. Tanuri (2000) ressalta essa condição ao mostrar que “mecanismos de exclusão refletiam-se mesmo na escola primária, onde o currículo para o sexo feminino era mais reduzido e diferenciado, contemplando o domínio de trabalhos domésticos” (TANURI, 2000, p. 14).

Assim, a feminização da profissão, no Brasil, se deve à existência de vários fatores que normalmente são trazidos como explicativos do fenômeno por estudiosos e estudiosas do tema, tais como: mudanças econômicas e sociais desenvolvidas a partir do desenrolar do comércio, século X em diante, e das suas exigências (NÓVOA, 1991); o abandono das salas de aula pelos homens e a crescente necessidade de mão de obra na indústria brasileira nascente (ALMEIDA, 1998); os baixos salários oferecidos (SAFFIOTI, 1969; BARRETO, 198

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