11/09/2023

O lazer, as crianças e as brincadeiras de rua: um tripé de socialização nos trilhos da extinção

 

Manoel José Fonseca Rocha[1]

Camila da Cunha Nunes[2]

 

Visualizando suas raízes históricas no contexto brasileiro, o lazer surge relacionado ao processo de industrialização, influenciado por mudanças no comportamento social, e esteve presente no discurso de médicos e sanitaristas, pautados na ideia de preservar valores morais e higienistas. Não obstante, é fruto de um processo urbano, “[...] fundamentado numa ideia de homem diferente do existente na sociedade rural: um homem que passa a ser movido por normas e valores veiculados pelos meios de comunicação de massa e pelos pares” (SILVA, 2015, p. 112).

Essas modificações sociais e, principalmente, econômicas, alteraram as condições de vida da sociedade em relação ao lazer, produzindo “situações que modificaram o comportamento coletivo em relação ao tempo livre, desestimulando ações habituais (incentivadas somente ao trabalho) e dando preferência a novas respostas na área do lazer” (MENOIA, 2000, p. 10).

Considerada a instituição pioneira do debate no Brasil, o Sesc (Serviço Social do Comércio), nas décadas de 1960 e 1970, começou a criar mecanismos, embora de forma assistencialista, de difusão de práticas do lazer. Essa instituição, conforme Sant’anna (1994, p. 48) “[...], sempre se destacou por uma ação social, de cunho assistencialista, seja a nível da saúde, como nos primeiros anos de sua existência, seja a nível da educação ou do lazer dos trabalhadores comerciários”.

 

Além da notável difusão do lazer via SESC, a partir de 1969, foi cada vez mais frequente o uso do termo “lazer” nos discursos políticos, destacando-se, principalmente, as práticas consideradas saudáveis como forma de combater o ócio, considerado um perigo social. O lazer se constituiu, aos poucos, como instrumento de disciplina e organização da sociedade, voltado ao ajustamento e à educação social, fato que pode ser observado por meio da análise das formas de controle dos usos diversificados do “tempo livre” que, na época, passaram a ser substituídas por formas de lazer institucionalizadas (SILVA, 2015, p. 113).

 

Nas últimas décadas, em razão de um processo de transformação na vida social e econômica, as brincadeiras, enquanto atividades de lazer, ao contrário de outrora, deixaram de ocorrer nas ruas, parques e praças, por exemplo, limitando-se em alguns casos, a espaços restritos, como condôminos fechados ou shopping centers. O primeiro espaço de sociabilização - as ruas, outrora tão presente no cotidiano infantil, deixou de ser uma realidade natural para as brincadeiras de criança. Para Luz, Raymundo e Kuhnen (2010), as mudanças sociais e econômicas ocorridas nos últimos 50 anos, vêm limitando a presença das crianças e adultos nos espaços urbanos, e são os grandes centros, os que mais vem sofrendo com isso. O adensamento da população e dos veículos, bem como o aumento da criminalidade, tornaram a rua um lugar de perigo, sobretudo, para as crianças.

Em outros tempos, o lazer associado as brincadeiras de rua, eram naturalmente concebidos nos horários em que as crianças não estavam na escola, e/ou não possuíam tarefas escolares ou familiares a desempenhar. O mundo era outro, e as relações sociais também. O que era considerado brinquedo há três ou quatro décadas, para alguns, não são mais. Contudo, cabe registrar, que o contato com as outras pessoas em determinada fase da vida, continua a ser importante para compreender as relações afetivas e de desenvolvimento do corpo[3].

 

O espaço ao ar livre tem se mostrado importante para o desenvolvimento infantil por oportunizar habilidades físicas, sociais e afetivas. Mudanças sociais, econômicas e espaciais, contudo, têm interferido no comportamento de uso de tais espaços, podendo trazer prejuízos à saúde e ao desenvolvimento das crianças (LUZ; RAYMUNDO; KUHNEN 2010, p. 172).

 

Essa nova configuração urbana e social, forjada pelos condomínios e grandes enclaves residenciais (residências privadas para uso coletivo e fisicamente isolados; estão voltados para dentro e não para a rua), ao que parece, vem afastando, em particular, as crianças das possibilidades de um lazer associado as brincadeiras de rua. Em contrapartida, o incentivo a um lazer praticado em frente aos meios virtuais, passou a ser reforçado, não impossibilitando, portanto, ações que levem os jovens a descobrirem outras atividades de lazer que existem e, podem ser praticadas nas ruas, se em a utilização desses acessórios. Isso porque, “o brincar socializa, resgata as tradições culturais, costumes e crenças de uma determinada época e lugar” (ALMEIDA, 2015, n.p). Brincar nas ruas é uma atividade de lazer que nos ensina a viver e conviver em grupo, rompendo obstáculos e preconceitos e abrindo caminhos para conhecer-se e conhecer o mundo por meio do contato com as pessoas.

Pensar Políticas Públicas que possibilitem o Desenvolvimento Regional atrelado a um imaginário urbano, onde as atividades de lazer praticadas nas ruas se façam presentes, pode ser uma alternativa para que as cidades possam reservar parte de seus espaços ao lazer. Afinal, como registram Frank e Yamaki (2016), o lazer assim como qualquer outra atividade social, necessita de espaço. O lazer, as crianças e as brincadeiras de rua,  um tripé de socialização nos trilhos da extinção.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, M. T. Brincadeiras antigas disputam espaços com as tecnologias. [Entrevista cedida a] Lêda Gonçalves. Diário do Nordeste, 13 set. 2015. Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/brincadeiras-antigas-disputam-espacos-com-as-tecnologias-1.1385423. Acesso em: 24 jun. 2019.

 

FRANK, B. J. R; YAMAKI H. Reflexões e teoria sobre o lazer - um roteiro para a geografia. Ra'e ga: o espaço geográfico em análise, Curitiba, v. 37, p. 91-109, ago. 2016.

 

LUZ, G. M.; RAYMUNDO, L. S.; KUHNEN, A. Uso dos espaços urbanos pelas crianças: uma revisão. Psicologia: Teoria e Prática, São Paulo, v. 12, n. 3, p. 172-184, mar. 2010.

 

MENOIA, T. R. M. Lazer: história, conceitos e definições. 2000. 22 f. Monografia (Bacharelado em Recreação e Lazer) – Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Campinas, 2000.

 

SANT’ANNA, D. B. O prazer justificado: história e lazer. São Paulo: Marco Zero, 1994.

 

SILVA, D. A. M. Território do lazer: panoramas e reflexões sobre a animação sociocultural. In: MARCELLINO, N. C. (org.). Políticas públicas de lazer. 2. ed. Campinas, SP: Editora Alínea, 2015. p. 109-132.

ZOBOLI, F.; SILVA, R. I.; NUNES, C. C. O corpo no contexto neoliberal: a moeda corpo. In: Congresso Sulbrasileiro de Ciências do Esporte, 5., 2010, Itajaí. Anais [...]. Itajaí: CBCE, 2010. p. 1-9.

 

 

 

[1] 1 Doutor em Desenvolvimento Regional. Universidade Regional de Blumenau (FURB). Docente na Escola Técnica do Vale do Itajaí (ETEVI/FURB). Brusque (SC), Brasil. manoel@furb.br

[2] Doutora em Desenvolvimento Regional. Docente no Centro Universitário de Brusque (UNIFEBE). Brusque (SC), Brasil. camila.nunes@unifebe.edu.br.

[3] Por meio do “[...] corpo o humano estabelece suas relações consigo mesmo, com o outro e com o mundo. O sentir, o pensar e o agir, caracterizam a existência e a vida humana, essa tríade, no entanto, não se dá de modo fragmentado e linear, mas sim, através de uma rede complexa de interações que se dão na dimensão corporal humana” (ZOBOLI; SILVA; NUNES, 2010, p. 1).

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