06/10/2021

O Ensino Médio: Um Campo em Disputa

Jonathan Dalla Vechia Bugs[1]

 

[1]  Este pequeno artigo constitui um capítulo de minha monografia, pesquisa desenvolvida no âmbito do programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Gestão Educacional da Universidade Federal de Santa Maria.

Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria

E-mail: jonathandbugs@hotmail.com


A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 organiza a educação formal em níveis e modalidades de ensino, dispondo-a em educação básica e educação superior. A educação básica é composta por três etapas: educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. Com a ampliação da obrigatoriedade do ensino escolar dos quatro aos dezessete anos, instituída pela Emenda Constitucional nº 59/2009, podemos afirmar que toda a educação básica é obrigatória, inclusive o ensino médio. Antes da LDBEN/96, ainda no século XX, a educação foi organizada de diversas maneiras e recebeu diferentes nomenclaturas, de acordo com a legislação vigente em cada época. Embora tenhamos avançado em direção a expansão do direito de acesso à educação, podemos afirmar que perpassa a história da política educacional brasileira, especialmente para o ensino médio, a estruturação e manutenção de um sistema dual de educação que remonta a década de 1940. Nesse sentido, são pontuais as palavras de Lopes, Bortoloto e Almenida:

 

As reformas educacionais de nível médio, marcadas pela dualidade estrutural, com sistemas paralelos de formação profissional, foram inauguradas desde os anos 1940, período em que as massas começaram a, timidamente, acessar a escola. Essas reformas levaram o Estado a conter a demanda pelo Ensino Superior. Ao mesmo tempo, foi criado um sistema de ensino paralelo, voltado para a formação profissional, sendo destinado aos trabalhadores.

As décadas seguintes intensificaram essa dualidade de modo que, ao trabalhador, era reservada uma educação compatível com sua necessidade de vendedor da força de trabalho. Esse quadro dava hegemonia para reformas que privilegiavam a formação vinculada às demandas do sistema produtivo. Nesse contexto, inúmeros movimentos de educadores e intelectuais colocaram-se contra uma formação limitada às habilidades técnicas e competências, características históricas da formação profissional de ensino médio no Brasil. Embora os debates em torno da educação sejam, historicamente, um campo de lutas de diferentes interesses, prevaleceu a imposição e a vitória de forças conservadoras, ditando as reformas conforme seus interesses. (LOPES, BORTOLOTO, ALMEIDA, 2016, p. 575).

 

Conforme registram alguns autores/as, tais como Santos e Silva (2020), Ciavatta e Ramos (2011), Lopes, Bortoloto e Almeida (2016), a abertura política e redemocratização do Estado, nos anos de 1980, possibilitou que a sociedade civil propusesse um projeto educacional ao país. Assim, ainda no contexto dos debates em torno da construção da Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, da LDBEN de 1996, educadores e intelectuais comprometidos com uma perspectiva progressista pautaram a superação da dualidade estrutural do sistema educacional brasileiro ao propor um projeto de formação com base em uma educação unitária, omnilateral e politécnica para todos/as. Segundo Ramos (2008), uma formação unitária compreende a integração entre teoria e prática, formação geral e profissionalizante, possibilitando a compreensão e relação entre ambas, e um caminho possível para essa integração é a formação omnilateral e politécnica por tomar o trabalho como princípio educativo, ontológico e histórico, integrador das demais dimensões da vida humana: ciência, cultura e tecnologia, por exemplo.

Assim, até meados dos anos de 1990, podemos afirmar a estruturação e manutenção de um sistema dual de educação expresso nas políticas educacionais e, em oposição, uma proposta de superação dessa dualidade formativa com base em uma perspectiva de educação unitária, omnilateral e politécnica. No entanto, é importante ter ciência do espaço de disputas existente na construção das políticas públicas, entre a apresentação de um projeto e sua conversão em uma política. Nesse sentido, Ciavatta e Ramos (2011), Lopes, Bortoloto e Almeida (2016) e Zibas (2005) afirmam que a proposta de superação da dualidade formativa pela proposição de uma educação integral, apresentada no contexto de construção da LDBEN/1996, no que concerne ao ensino médio, foi quase toda suprimida e descaracterizada em sua essência:

 

No confronto das forças políticas vitoriosas no Congresso Nacional e a eleição de Fernando Henrique Cardoso, aprovou-se a Lei nº 9.394/96 cuja tônica não foi mais a de preparação para o trabalho e sim para a vida, ressaltando uma falsa dicotomia só explicável pelo estigma escravocrata de nossa sociedade. Sob esse ideário, preparar para a vida significaria desenvolver nas pessoas competências genéricas e flexíveis, de modo que elas pudessem se adaptar facilmente às incertezas do mundo

contemporâneo. (CIAVATTA, RAMOS, 2011, p. 30).

 

O trajeto tortuoso, configurado pelas diversas forças políticas, tomou forma na LDB de 1996. Resolver a questão da dualidade no Ensino Médio por meio da proposta dos educadores referente à LDB de 1996 não era compatível com a ideologia, nem mesmo com as políticas de ajuste dos anos 1990, que foram, dessa forma, combatidas e rejeitadas. As decisões foram tomadas pelo alto, mediante medidas provisórias, decretos ou por leis conquistadas no parlamento, consolidando a troca de favores, historicamente presente no Brasil. O projeto original substituído passou por transformações adequadas aos interesses do governo, impondo sua política de ajuste pontuada na educação com manutenção da dualidade educacional. (LOPES, BORTOLOTO, ALMEIDA, 2016, p. 562),

 

A lei aprovada abandonou a principal característica do primeiro projeto no que dizia respeito ao ensino médio, pois não enfatizou a instituição do trabalho como princípio educativo e orientador de todo o currículo. A nova LDB, embora indique que a formação profissional de qualidade só se faz mediante uma sólida educação geral, contém suficientes ambigüidades para permitir que legislação complementar instituísse novamente estruturas paralelas de ensino. Ou seja, deixou espaço para que o decreto do governo federal n. 2.208, de 1997, determinasse que a formação técnica, organizada em módulos, fosse oferecida separadamente do ensino médio regular. (ZIBAS, 2005, p. 1071).

 

Além do ensino regular, a LDBEN/96 estabeleceu a educação profissional e designou sua integração/articulação com as demais modalidades e níveis de ensino, assim posto no artigo 39: “A educação profissional e tecnológica, no cumprimento dos obje­tivos da educação nacional, integra-se aos diferentes níveis e modalidades de educação e às dimensões do trabalho, da ciência e da tecnologia.” (BRASIL, 1996). Na ausência de definições mais precisas, no contexto das políticas educacionais para o ensino médio, conforme Krawczyk (2009, p. 15-16), esse dispositivo foi interpretado de formas distintas e resultou em sucessivas reformas cujas organizações curriculares chegaram a ser opostas; a autora faz referência ao Decreto nº 2.208/1997, que separou ensino médio e ensino profissionalizante, e o Decreto nº 5.154/2004, que propôs a integração curricular de ambos.

Assim, é recorrente na literatura que analisa a política educacional para o ensino médio lermos sobre as disputas em torno de sua identidade, finalidades e objetivos de formação. Kuenzer (2000, p. 13) diz da dificuldade de definir uma política educacional para o ensino médio pela ambiguidade da posição que ele ocupa na educação formal: é a última etapa da educação básica ao mesmo tempo que é propedêutico em relação ao ensino superior. Krawczyk (2011) nos fala de uma tensão permanente no debate educacional em torno da identidade do ensino médio, referindo-se à dualidade formativa presente na política educacional para essa etapa.

Ao analisar as pesquisas sobre a política educacional da virada do século, Moehlecke (2012, p. 50) destaca a existência de uma nova polarização em torno da identidade do ensino médio. Tal polaridade começou a se estruturar nas críticas às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – DCNEM de 1998[1] e se evidenciou nos debates sobre o ensino médio no governo Lula (2003-2010); isso se dá por dois motivos. Primeiro, pela principal característica das DCNEM/98:

 

[...] sua complexa estrutura híbrida, que, aderindo incondicionalmente ao discurso internacional dominante, foi capaz de acenar para alguns princípios caros aos educadores progressistas, tais como: a necessidade de contextualização e de menor fragmentação dos conteúdos, algum grau de autonomia da escola para definição do currículo, a importância pedagógica, política e social do protagonismo juvenil, a centralidade da preparação ampla para o trabalho e para a cidadania. No entanto, tais princípios vêm articulados aos objetivos da pedagogia das competências, a qual, como se sabe, prioriza a construção de um novo profissionalismo (Ramos, s/d.) e de novas subjetividades, centrando-se em esquemas cognitivos e socioafetivos que promovam a constante adaptação e readaptação dos jovens tanto às mutantes necessidades de produção quanto à redução, dita inexorável, do emprego formal. Nessa abordagem, a responsabilidade pela superação do desemprego e de outras desigualdades sociais fica a cargo exclusivamente do indivíduo, ocultando-se os condicionantes sociais e históricos da conjuntura. (ZIBAS, 2005, p. 1073).

 

Segundo, pelo amplo debate institucional sobre o ensino médio nos anos 2000:

 

Após a instalação do Governo Lula, houve a preocupação de se estabelecer um debate amplo sobre o ensino médio e técnico, concretizado por meio de seminários e oficinas, entendidos, conforme Frigotto & Ciavatta (2004b, p. 19), como “um processo vivo de reflexão e debilidade (...), abrindo o diálogo com a comunidade educacional em busca das melhores alternativas para os diferentes problemas existentes”. (ZIBAS, 2005, p. 1080).

 

Conforme Zibas (2005, p. 1081), se no contexto dos anos 1980-1990 havia consenso quanto a um projeto de superação da dualidade curricular, os novos debates trouxeram à tona “[...] diferenças teóricas e político-ideológicas inconciliáveis entre os potenciais colaboradores do novo governo.”, resultando no seguinte cenário:

 

[...] de um lado, há uma defesa muito firme de uma escola média que, mesmo respeitando as diferenças, tenha um perfil universal, calcado nas proposições de Gramsci quanto à politecnia, combinando “trabalho, ciência e cultura na sua prática e nos seus fundamentos científico-tecnológicos e histórico-sociais” (Frigotto & Ciavatta, 2004b, p. 18) ou, dito de outra forma, uma escola que garanta “o direito de acesso aos conhecimentos socialmente construídos, tomados em sua historicidade, sobre uma base unitária que sintetize humanismo e tecnologia” (Ramos, 2004, p. 41).  Pressupõe-se, assim, a validade universal de um conhecimento que não se confunde com enciclopedismo porque, construído historicamente, evidencia a luta social que motivou seu avanço em um determinado tempo histórico, constituindo o “patrimônio da humanidade” (idem, ibid., p. 39-40). A tal argumentação contrapõe-se outra concepção de currículo, que talvez se possa identificar como “pós-moderna”, defendida na mesma coletânea por Lopes (2004a), segundo a qual a validade universal de qualquer conhecimento transmitido pela escola é uma falácia, uma vez que: “É preciso sempre lembrar que a própria idéia de universal é uma invenção humana, situada em determinado momento histórico. O fato de um conhecimento ser considerado universal só se estabelece porque existem pessoas e relações sociais aos quais essa universalidade interessa. Se a perspectiva atual é construir um outro projeto de educação e de sociedade, penso ser preciso começar questionando os padrões “universais” de conhecimento escolar até hoje instituídos.” (p. 203). Nessa abordagem, não há possibilidade de um currículo nacional e, portanto, descarta-se o princípio da escola unitária. Além disso, entendido como política cultural, o currículo deve abordar o trabalho apenas como uma questão entre muitas outras (tais como: gênero, sexualidade, juventude, violência, lazer etc.), deixando de ser o princípio educativo por excelência proposto por Gramsci. (ZIBAS, 2005 p. 1081-1082).

 

Assim, permaneceu no debate a proposta de um currículo único, de formação omnilateral e politécnica, construída nos anos de 1980 e 1990, mas também surgiu a proposta pela diversificação ou multiplicidade das trajetórias formativas. Ao comentar essa nova polarização, Moehlecke (2012) a sintetiza da seguinte forma:

 

Neste novo debate que se instala, a crítica à dualidade do ensino médio, construída pela oposição entre formação geral e formação para o trabalho e a defesa de um currículo nacional unitário, que teria no princípio do trabalho sua base comum, deixa de ser algo consensual. Ao invés de um currículo único, reforça-se a importância de trajetórias diversificadas no ensino médio, onde a formação técnica seria apenas uma dentre outras possíveis trajetórias. Desse modo, da crítica à dualidade no ensino médio, passou-se à defesa da multiplicidade e diversidade do currículo disponível aos jovens nesse nível de ensino. (p. 51).

 

O resultado imediato de todo esse debate, em termos de política educacional, resultou no Decreto nº 5.154/2004, incorporado à LDBEM/96 pela Lei 11.741/2008, que estabeleceu a possibilidade de integração do ensino profissional ao ensino regular, mas não estabeleceu a compulsoriedade de tal integração. Assim, o decreto pode ser lido como uma conquista, pois em seu texto retomou-se o ideário de uma educação integral ao buscar associar a formação geral à profissionalizante, incentivando a articulação entre teoria e prática e entre as áreas do conhecimento, preconizando um caminho de superação da histórica dualidade formativa, conforme Neta, Assis e Lima (2016, p. 112).

Além da possibilidade de integração entre educação profissional e educação propedêutica, outro ponto positivo em direção a superação da dualidade formativa que gostaríamos de destacar, é o retorno da Filosofia e da Sociologia como componentes curriculares obrigatórios do ensino médio, por meio da Lei 11.684, de 2 de julho de 2008. Isso, sobretudo, por se tratar de conhecimentos historicamente restritos às camadas mais abastadas da sociedade, negados aos pobres, que retornam para a educação básica em um contexto de massificação do ensino – em contraste com os anos que antecederam as reformas de 1960 e 1970, em que a educação era restrita as elites econômicas do país e que a Filosofia e a Sociologia marcavam presença no currículo escolar.

Após uma década do início do século, em 2011 e 2012, por meio do Parecer CNE/CEB nº 5/2011 e da Resolução CNE/CEB nº 2/2012, foram anunciadas novas DCNEM. Silva (2015) atribui aos debates dos anos 2003/2004 o marco inicial dessas novas reformulações para o ensino médio, pois, segundo a autora:

 

Já nesse momento são enunciadas as ideias centrais que darão sustentação conceitual, epistemológica e metodológica às trajetórias que assumirão as iniciativas de reformulação do ensino médio: trabalho, ciência e cultura como conceitos  estruturantes, base da formação humana e da organização pedagógico-curricular e, aliado a essas proposições, o reconhecimento dos sujeitos, sobretudo dos jovens, como basilar na configuração das finalidades da última etapa da educação básica. (SILVA, 2015, p. 372).

 

É nesse sentido que a literatura aponta as DCNEM de 2012 como elemento de novidade, uma reforma de fato, na história da política educacional para o ensino médio. O texto das DCNEM de 2012 consolidou a identidade do ensino médio como última etapa da educação básica, devendo dar sequência aos conhecimentos adquiridos nas etapas anteriores e habilitar os/as alunos/as para a continuidade dos estudos, bem como prepará-los/as para o trabalho (cf. parágrafo I e II do artigo 4º). Assim, na integração entre educação geral e educação profissional, aqui reiterada, nos parece que superou, em termos de identidade, a velha dualidade a que se submetia a indefinição da identidade do ensino médio: formação propedêutica ou formação profissionalizante. Além da integração das finalidades formativas, quando tomam trabalho, ciência, tecnologia e cultura como eixo estruturante da formação do ensino médio, as DCNEM/2012 buscaram promover políticas de diferença cultural e identitária: uma formação voltada para as diferentes juventudes.

No entanto, no campo das disputas, cabe ainda mencionar que as DCNEM de 2011/2012 expressam a síntese da nova polarização em torno da identidade e do currículo do ensino médio, conforme apontamos anteriormente através do trabalho de Zibas (2005), pois parece conciliar a proposta de um currículo único com a pauta pela flexibilização dos percursos formativos, conforme acentua Moehlecke (2012):

 

O uso da palavra “diversidade” parece surgir no texto das novas DCNEM como uma tentativa de acomodação de duas concepções distintas de currículo e da própria identidade do ensino médio. No parecer das DCNEM-2011, o desafio de se encontrar uma especificidade para o ensino médio não está mais na superação de dicotomias – como a formação para o trabalho versus a formação para o ensino superior – por meio da construção de um currículo unificado, mas sim pela afirmação de uma multiplicidade de significados e trajetórias possíveis de serem construídas ao longo do ensino médio. A acomodação de tensões e divergências gerou um modelo curricular que associa uma base unitária com uma parte diversificada, em que a formação profissional é apenas mais uma entre as várias formações possíveis:

 

A autora segue citando o Parecer CNE/CEB nº 5/2011:

 

A definição da identidade do Ensino Médio como etapa conclusiva da Educação Básica precisa ser iniciada mediante um projeto que, conquanto seja unitário em seus princípios e objetivos, desenvolva possibilidades formativas com itinerários di­versificados que contemplem as múltiplas necessidades socioculturais e econômicas dos estudantes, reconhecendo-os como sujeitos de direitos no momento em que cursam esse ensino. (Parecer DCNEM, 2011). (MOEHLECKE, 2012, p. 55).

 

No dia 15 de março de 2012, quarenta e cinco dias após a publicação das DCNEM/2012, foi criada na câmara dos deputados a Comissão Especial destinada a promover Estudos e Proposições para a Reformulação do Ensino Médio (CEENSI), da qual resultou o Projeto de Lei 6.840/2013. Esse PL trazia duas principais propostas: a extensão da carga horária, visando oferecer o ensino médio em tempo integral, e a organização curricular, flexibilizada por opções formativas. Conforme Ferreti (2016, p. 87), a proposição do PL 6.840/2013 não foi bem recebida entre os educadores que, por sua vez, teceram inúmeras críticas contra o projeto, culminando na criação do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio. Tal movimento, em maio de 2014, emitiu uma petição pública contra o projeto em questão, intitulada Manifesto por uma Formação Humana Integral - Não ao retrocesso no Ensino Médio[2], no qual consta a seguinte análise:

 

Outras sugestões indicam que apesar do uso do termo “integral” as propostas em tramitação tornam o ensino médio ainda mais parcial, incompleto, fragmentado, incapaz de realizar a formação integral. É o caso de organizar o currículo da terceira série diversificando as trajetórias de formação segundo áreas de conhecimento (ciências humanas, ciências naturais, formação profissional), que antecipa os processos de especialização para educação básica. Isso fere de morte a proposta de integração com base na qual estão estruturadas as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais de Ensino Médio (DCNEM), cuja formulação foi resultado de lutas por uma educação democrática, travadas pela sociedade e suas entidades de educadores. (MOVIMENTO NACIONAL EM DEFESA DO ENSINO MÉDIO, 2014).

 

Assim, parece que as disputas em torno da identidade do ensino médio não se acomodaram na definição instituída pelas DCNEM de 2012. Além do mais, em 16 de setembro de 2015, como resultado de discussões anteriores, o Ministério da Educação publicou a primeira versão da Base Nacional Curricular Comum e abriu espaço para consulta pública acerca do seu conteúdo, nesse momento diversos educadores/as puderam contribuir com suas considerações. Mas, o processo de construção, tramitação e homologação da BNCC para o ensino médio se estendeu até 14 de dezembro de 2018, ocasião em que o MEC publicou a versão final do documento.

Recentemente a história da política educacional do ensino médio brasileiro ganhou um novo capítulo. Em 22 de setembro de 2016 o governo de Michel Temer (MDB) publicou a Medida Provisória 746, manifestando a intenção do poder executivo de reformar radicalmente a última etapa da educação básica, de forma autoritária e sem discutir a proposta com a sociedade e os profissionais da educação. A proposição de reforma do ensino médio, trazida pela MP 746/2016, encontrou apoio no legislativo, tramitou na forma do Projeto de Lei de Conversão nº 34/2016 e se consolidou na Lei 13.415, em 16 de fevereiro de 2017. Desde então, apesar das críticas de especialistas, educadores/as e entidades do campo educacional, a gestão da educação básica tem se ocupado de pensar, planejar e adaptar a sua implementação.

A atual reforma do ensino médio opera duas mudanças principais: a ampliação da carga horária e organização curricular flexível. A ampliação da carga horária é prevista de dois modos: primeiro nas escolas regulares e de forma imediata, passando de 800 horas para 1.000 horas anuais; segundo, pela instituição de novas escolas de ensino médio de tempo integral, passando a 1.400 horas anuais[3]. Quanto a organização curricular do novo ensino médio, a reforma em questão propõe uma parte geral e comum a todos e a opção por itinerários formativos a serem ofertados de acordo com as possibilidades e recursos de cada sistema de ensino, sendo obrigatório a oferta de pelo menos um dos cinco itinerários em cada escola; aos estudantes é dado a grande possibilidade/liberdade de escolher um, no máximo dois (caso haja vaga), entre os itinerários que suas escolas terão condições de ofertar. A distribuição da carga horária fica da seguinte forma: do total de horas do ensino médio regular (3.000 horas), é destinado até 1.800 horas para o cumprimento da BNCC, equivalente a 60% do total de horas, o restante é destinada a oferta de itinerários formativos, quais forem possíveis em cada escola. A Lei 13.415/2017, conforme consta em seu artigo 4º, estabelece os cinco itinerários a seguir: (I) linguagens e suas tecnologias, (II) matemática e suas tecnologias, (III) ciências da natureza e suas tecnologias, (IV) ciências humanas e sociais aplicadas e, por fim, (V) formação técnica e profissional. 

Até então, o currículo do ensino médio regular ofertava treze disciplinas obrigatórias que constituíam um percurso formativo único, com a reforma somente Língua Portuguesa e Matemática seguem como componentes curriculares obrigatórios para os três anos do ensino médio. Igualmente obrigatório é o ensino da Língua Inglesa, havendo a possibilidade da oferta de uma segunda língua, de preferência o Espanhol, conforme as possibilidades de cada sistema de ensino. Por outro lado, a reforma muda o qualificativo de oferta da Educação Física, Filosofia, Sociologia e Arte, se estabelece a obrigatoriedade de estudos e práticas nesses campos do conhecimento. A Lei não cita as demais disciplinas que faziam parte do currículo até então, como História, Geografia, Química, Biologia, Física e Ensino Religioso, o que se tem é que cada componente está aglutinado em suas respectivas áreas de conhecimento na BNCC; o que leva a crer que aparecerão no currículo, ainda que não se tenha muita certeza de que maneira.

No entanto, os sistemas de ensino têm relativa liberdade na organização do currículo, desde que observem algumas normas, como é o caso do teto máximo de horas estabelecido para o cumprimento da BNCC, por exemplo. Isso nos faz concordar com a afirmação feita por Silva (2015), que escreve sobre o contexto de construção da BNCC em 2015, e transferi-la para o contexto presente em ocasião da implementação do novo ensino médio:

Uma rápida busca no site5 criado pelo MEC e lançado no dia 30 de julho de 2015 sobre a Base Nacional Comum Curricular, na seção Propostas Curriculares pelo Brasil, em que estão disponibilizadas as informações das Secretarias de Estado da Educação, é possível constatar que estamos diante de configurações muito diversas em se tratando de currículo para o ensino médio, o que nos leva a pensar em “ensinos médios” ou em “ensino médio no plural”. (SILVA, 2015, p. 374).

 

Embora nos ocupemos da problematização das proposições da reforma em questão no próximo capítulo, vale ressaltar que a Lei instituiu o máximo de horas destinadas à BNCC, ao passo que não estabelece um teto para a oferta dos itinerários, sinalizando para a possibilidade de menor carga horária destinada a formação geral e comum a todos/as. Também vale destacar a falta de maiores definições no texto-lei da reforma e sua imprecisão em definir a obrigatoriedade da oferta dos diferentes campos de conhecimento, limitando-se apenas ao uso dos termos “ensino” e “estudos e práticas”. Quanto a obrigatoriedade do ensino da Língua Portuguesa e da Matemática, entende-se a necessidade das disciplinas (mesmo não aparecendo a palavra disciplina), por outro lado, quando a Lei prescreve que é igualmente obrigatório estudos e práticas de Filosofia, Sociologia, Educação Física e Arte, daí não se infere a obrigatoriedade de uma disciplina própria com profissionais qualificados. E por que não? Ora, se para o ensino de X se pressupõe um professor com formação específica, dispondo de tempo e espaço no currículo da escola, por que para estudos e práticas de Y e Z não? Em benefício de que formação se estabelece tamanha diluição e empobrecimento do ensino?

Em relação a operacionalização do novo ensino médio, a Lei de reforma permite que parte da carga horária seja feita por meio de Ensino à Distância (EAD), possibilidade inexistente na educação básica até então, através de parcerias com instituições de educação à distância de “notório reconhecimento”. Além disso, admite a contratação de profissionais de notório saber para atuar no itinerário formativo de formação técnica e profissional, abrindo possibilidade para a contratação de pessoas sem titulação e formação docente, desde que comprovado exercício do ensino em instituições ou corporações privadas (cf. inciso IV do artigo 6º).

O Ministério da Educação afirma que a reforma veio para atender as necessidades dos/as alunos do ensino médio, garantindo uma formação básica geral (BNCC) e conferindo aos jovens o protagonismo de sua formação ao legar a eles o poder de escolha sobre o itinerário formativo que desejam cursar, a fim de aprofundar os estudos ou optar por uma formação técnica ou profissionalizante. Por outro lado, os especialistas e profissionais da educação têm tecido inúmeras críticas contra o formato do novo ensino médio, inclusive afirmando que a pretendida flexibilidade curricular ocasionará desigualdade na oferta do ensino e que a liberdade de escolha é falsa, dada as condições reais de oferta dos itinerários formativos pelos sistemas de ensino.[4] Nesse sentido, fica evidente a existência de um cenário de disputas em torno da avaliação da reforma do ensino médio imposta pela MP 746/2016, vigente nos termos da Lei 13.415/2017, cuja implementação está em curso.

Portanto, podemos compreender a construção da educação como um movimento que se dá em diferentes instâncias, movido por diversos sujeitos. Trata-se de um movimento duplo: ele constitui políticas públicas educacionais e é conduzido com base nessas políticas. Outra maneira de dizer isto é afirmar que a construção da educação se dá em um campo de disputas por hegemonia na construção e instituição de uma política educacional, por exemplo, movimentando diferentes sujeitos e interesses. Nesse contexto, a história brasileira da política educacional para o ensino médio pode ser caracterizada como um constante movimento de disputas em torno da sua identidade, finalidades e objetivos de formação, tendo ocasionado sucessivas (contra)reformas nessa etapa da educação básica.

 

 

Referências

 

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_______, Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Senado Federal, 1996. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/544283/lei_de_diretrizes_e_bases_2ed.pdf. Acesso em: 11 mar. 2020.

_______, Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília: Senado Federal, 2017. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/602639/publicacao/15657824. Acesso em: 11 mar. 2020.

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SILVA, M. R. Currículo, ensino médio e BNCC: Um cenário de disputas. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 9, n. 17, jul./dez. 2015.

ZIBAS, D. M. L. Refundar o ensino médio? Alguns antecedentes e atuais desdobramentos das políticas dos anos de 1990. Educação & Sociedade, v. 26, n. 92, p. 1067-1086, out. 2005.


[1] As DCNEM/1998 foram instituídas pela Resolução CEB nº 3, de 26 de junho de 1998. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rceb03_98.pdf. Acesso em 30 jun. 2020.

[2] Disponível em: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR68899. Acesso em 01 jun. 2020.

[3] Afim de sustentar a expansão da carga horária, especialmente em virtude do ensino de tempo integral, o MEC instituiu políticas de fomento à educação de tempo integral por meio de programas de distribuição de recursos e acompanhamento. Para acesso a essas políticas, indicamos o link a seguir: http://novoensinomedio.mec.gov.br/#!/marco-legal. Acesso em 02 jun. 2020.

[4] Referente as críticas dos especialistas e profissionais da educação, podemos encontrar expressão em notas públicas escritas por associações e instituições educacionais a respeito da reforma do ensino médio. Compartilhamos duas notas nesse sentido. A primeira é da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – AMPED, disponível em: http://www.anped.org.br/news/nota-publica-da-anped-sobre-medida-provisoria-do-ensino-medio. Acesso em 26 jun. 2020. A segunda nota pública é do Centro de Estudos Educação e Sociedade – CEDES, disponível em: https://www.cedes.unicamp.br/noticias/599. Acesso em 26 jun. 2020. Além disso, indicamos os 18 artigos analisados nesta pesquisa como expressão científica de tais críticas.

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