O Conselho de Classe em Crise: Entre o Potencial Coletivo e a Burocratização da Exclusão.
Por - Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Pedagogo, Graduado em Educação Especial, Docente no Ensino Superior e na Educação Básica, Gestor Escolar, Especialista em Gestão Pública, Especialista em Psicopedagogia Institucional.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2342324641763252
O conselho de classe é ritualístico na arquitetura do calendário escolar. Formalmente, consagra-se como um espaço democrático de avaliação coletiva, um momento ímpar onde a equipe docente, teoricamente, transcende a solidão da sala de aula para tecer, em conjunto, uma compreensão mais poliédrica do percurso dos estudantes. No entanto, a prática concreta dessa instância frequentemente desvela um abismo entre sua potencialidade transformadora e uma realidade esvaziada, marcada pela queixa repetitiva, pela culpa individualizada e pela primazia do registro burocrático sobre a reflexão pedagógica profunda. Analisar criticamente esse dispositivo é essencial para resgatar seu caráter estratégico, não como um tribunal de avaliação de alunos, mas como um laboratório de análise institucional e de planejamento de intervenções psicopedagógicas verdadeiramente coletivas.
A crítica central reside na perversão de sua finalidade. Como aponta Serra (2012), o conselho frequentemente se degenera em uma sessão de “lamentos e críticas indigentes”, onde o aluno é atomizado e patologizado. Suas dificuldades são catalogadas como atributos pessoais (“é desatento”, “é desinteressado”, “a família não acompanha”), em um processo que isenta a instituição de qualquer responsabilidade. Essa dinâmica reproduz o que a Psicopedagogia crítica, fundamentada em autores como Fernández (2001), denuncia, ou seja, a externalização da culpa pelo fracasso, que recai sobre o aprendiz ou seu entorno familiar, enquanto a escola se mantém intocada em seus métodos, currículos e relações de poder. O conselho, nesse formato, não diagnostica problemas de aprendizagem, produz e consagra rótulos, convertendo-se em um mecanismo sutil de segregação e justificativa da própria inércia institucional.
O cerne do problema está na confusão entre avaliação do aluno e avaliação do processo de ensino. Um conselho de classe que se pretenda psicopedagogicamente orientado deve operar uma guinada epistemológica, ou seja, deixar de perguntar “o que há de errado com este aluno?” para indagar “o que, em nossa prática coletiva, não está funcionando para que este aluno aprenda?”. Esta mudança de foco é radical. Ela desloca o objeto da análise do indivíduo para a teia de relações, recursos e estratégias que constituem o ambiente de aprendizagem. A dificuldade de um aluno em Matemática, por exemplo, deixa de ser um déficit cognitivo pessoal para se tornar um sintoma a ser investigado, ou seja, o método de ensino é adequado? A linguagem do professor é acessível? O currículo prioriza a memorização em detrimento da compreensão conceitual? As intervenções são homogêneas para um grupo heterogêneo?
É neste ponto que o conselho pode se tornar um espaço privilegiado de integração do trabalho pedagógico. Professores de diferentes áreas, ao compartilharem suas observações sobre o mesmo aluno ou grupo, podem identificar padrões que escapam à visão fragmentada da disciplina. Um aluno apático em História e participativo em Artes não é simplesmente “seletivo”, essa discrepância é um dado clínico precioso sobre sua modalidade de aprendizagem, seus interesses e os tipos de mediação que o mobilizam. A análise coletiva desses dados pode fomentar a construção de projetos interdisciplinares e estratégias comuns, rompendo com o isolamento departamental que fragmenta o conhecimento e a percepção do educando.
Para tanto, é imperativo resistir à dominação do burocrático sobre o pedagógico. A redução do conselho à leitura de planilhas de notas, ao preenchimento de formulários de “encaminhamento” e à tomada de decisões protocolares sobre aprovação/reprovação esvazia seu potencial criativo. A burocracia, necessária para o registro, não pode sufocar a discussão qualificada sobre os processos de ensino e aprendizagem. O tempo do conselho é escasso e precioso, desperdiçá-lo com formalidades que poderiam ser resolvidas por outros meios é um atestado de desvalorização da reflexão pedagógica coletiva.
A superação desse quadro exige uma nova arquitetura para o conselho. Ele deve ser precedido de uma preparação sistemática, onde os professores tragam não apenas notas, mas observações qualitativas, registros de interações, exemplos de produções dos alunos e dúvidas sobre sua própria prática. A pauta deve ser construída de forma democrática, priorizando a discussão de casos que representem desafios pedagógicos coletivos e a avaliação de projetos institucionais em curso. A figura do coordenador pedagógico ou do psicopedagogo institucional é crucial para mediar essa discussão, conduzindo-a para além da queixa, rumo à formulação de hipóteses e planos de ação concretos e compartilhados.
Nesse sentido, o conselho de classe transforma-se no coração de uma cultura escolar investigativa. Ele se torna o espaço onde a equipe, coletivamente, assume o papel de pesquisadora de sua própria prática. As dificuldades dos alunos são o material empírico que incita a reflexão sobre a eficácia das estratégias adotadas. A indisciplina, por exemplo, deixa de ser tratada como um problema moral do aluno para ser analisada como um possível sintoma de tédio, de currículo desinteressante, de relações autoritárias ou de inadequação metodológica.
Conclui-se, portanto, que a crise do conselho de classe é sintomática de uma crise mais ampla na cultura escolar. Recuperar seu sentido requer mais do que boa vontade, exige um compromisso institucional com a formação continuada em serviço, com a valorização do tempo coletivo de reflexão e com a adoção de um referencial teórico, tal como o psicopedagógico, que forneça ferramentas para uma análise complexa e não reducionista dos fenômenos educativos. Um conselho renovado não é um fim em si mesmo, mas um meio potente para construir uma escola mais reflexiva, mais justa e, acima de tudo, mais capaz de ensinar a todos, reconhecendo que as dificuldades de aprendizagem são, em grande medida, o reflexo das dificuldades de ensino de uma instituição que ainda precisa aprender a olhar criticamente para si própria.
Referências Bibliográficas
FERNÁNDEZ, A. Os idiomas do aprendente. Porto Alegre: Artmed, 2001.
SERRA, D. O conselho de classe como instância formadora. In: BOSSA, N. A.; OLIVEIRA, V. B. (Orgs.). Psicopedagogia e formação de professores. São Paulo: Wak Editora, 2012.
VASCONCELLOS, C. S. Avaliação da Aprendizagem: práticas de mudança – por uma práxis transformadora. São Paulo: Libertad, 2009.
WEISS, M. L. L. Psicopedagogia Institucional: diagnósticos e intervenções nos processos de aprendizagem. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2008.