30/11/2020

O conceito de Intersubjetivação da Filosofia Africana como categoria teórico-metodológica para as ciências jurídicas

Vanilda Honória dos Santos[1]

Universidade Federal de Santa Catarina

vanydireito@gmail.com

O objetivo deste trabalho[2] é apresentar uma proposta de interface entre filosofias africanas e afrodiaspóricas e as ciências jurídicas no Brasil, a delimitar a reflexão a partir do conceito de intersubjetivação, que significa: sujeitos em ação – sistematizado pelo filósofo moçambicano José Paulino Castiano, em sua obra Referenciais para Filosofia Africana: em busca da intersubjetivação (2010). Além disso, intenta-se propor o conceito de intersubjetivação enquanto categoria teórico-metodológica para as pesquisas em: ciências jurídicas; possibilitando a desconstrução epistêmica e a construção de espaços de diálogo não hierarquizados.

Essa perspectiva se justifica uma vez que se faz necessária a promoção de medidas de justiça epistêmica no campo jurídico no Brasil, posto que as ciências jurídicas, ao longo da história, promoveram sistematicamente o racismo epistêmico. Esse que exclui, apaga e invisibiliza as produções filosóficas, culturais, políticas, científicas e jurídicas de povos não europeus, sobretudo os de origem africana, devido ao racismo antinegro, ampliado com o processo de escravização e colonização do Continente Africano, associados à desumanização, zoomorfização e apagamento das memórias e histórias de africanos e seus descendentes na diáspora forçada.

Por esta abordagem, as ciências jurídicas, sobretudo as searas da Teoria e História do Direito e da Filosofia do Direito, têm como compromisso contribuir para romper com o quadro de racismo epistêmico no campo das ciências jurídicas, que em grande medida não considerou os sujeitos históricos descendentes de africanos e dos povos indígenas como formuladores e intérpretes do Direito. Desse cenário emana a ideia de um Direito monista que deriva unicamente do Estado em sua acepção moderna ocidental, e que cabe somente aos profissionais instituí-lo, interpretá-lo e modificá-lo.

A metodologia utilizada é dedutiva, por meio da pesquisa e análise da bibliográfica do marco teórico de José Paulino Castiano (2010).  Contribuirão sobremaneira com esta reflexão a obra do filósofo também moçambicano Severino Elias Ngoenha, destacando-se Filosofia Africana: das Independências às Liberdades (1993), Os Tempos da Filosofia: Filosofia e Democracia Moçambicana (2001), Concepções Africanas do Ser Humano (2011a), Ubuntu: Novo Modelo de Justiça Glocal? (2011b).

O conceito de intersubjetivação no contexto africano assume o sentido de diálogo entre filosofias e filósofos africanos e não africanos para pensar a realidade do continente. Castiano parte do contexto pós-descolonização e de construção de novas possibilidades de desenvolvimento e de construção de uma democracia.

No tocante a essa proposta original e que inspira esta reflexão, Castiano apresenta os três momentos que caracterizam a filosofia africana para a qual ele expõe Referenciais, e não Paradigmas. O primeiro momento diz respeito à objetivação empenhada pelo projeto colonizador, no qual os sujeitos africanos e suas produções culturais e modos de organização social e política são colocados na posição de objetos. Esse momento é caracterizado pela etnofilosofia e pela objetivação. O segundo momento surge da necessidade de legitimar o discurso do escravo como um discurso abolicionista através da subjetivação, na qual o próprio escravo se torna o sujeito do discurso. Desses referenciais podem ser citados o afrocentrismo e o ubuntismo. O terceiro momento se caracteriza pela intersubjetivação aqui delineada, cujas principais características são de um diálogo intercultural, de liberdade e de construção de espaços de intersubjetivação para além do campo acadêmico (CASTIANO, 2010).

Ademais, o autor propõe que deve se romper com uma das mais promissoras estratégias de exploração e dominação: se apropriar dos conhecimentos e recursos técnicos, tecnológicos locais, deixando os próprios sujeitos de “fora da festa”, e, por conseguinte, de fora do desenvolvimento (CASTIANO, 2020). Essa perspectiva do filósofo está em consonância com o objetivo desta proposta: romper com a vitoriosa estratégia ocidental de apropriação e de excluir os sujeitos históricos da formulação e condução do direito. O direito cria as condições de possibilidades para as subalternizações e exclusões para, em seguida, ele mesmo propor as soluções para os problemas.

É importante delinear também que Castiano (2010) afirma que o que deve ser desconstruído é o discurso que busca o futuro como nação no passado e nas tradições milenares, pois estas só interessam se oferecerem soluções válidas para a realização da liberdade. Advoga-se aqui que, no caso brasileiro, essa dimensão não se aplica sem as devidas elaborações adequadas ao nosso contexto, uma vez que as tradições afrodiaspóricas/afro-brasileiras são vivas, existem e coexistem no tempo presente, a preservar a função ancestral de dar suporte para que os sujeitos e suas comunidades possam viver e construir o futuro. Portanto, as tradições vivas afro-brasileiras e suas instituições possibilitam a imaginação e o exercício da liberdade.

Importante ressaltar que não se confunde intersubjetivação com intersubjetividade. Aqui, interessa o primeiro termo que diz respeito, além do já explicitado, ao diálogo envolvendo os sujeitos em ação. Trata-se, sobretudo da criação de lugares que possibilitem a intersubjetivação.  Esses que se configuram como espaços de interculturalidade e cooperação, para trocas de saberes e conceitos por meio do diálogo entre as filosofias atuais e as do passado, com os próprios sujeitos hermeneutas/cidadãos em geral, pensadores, filósofos e juristas profissionais e não profissionais e os sábios (CASTIANO, 2020).

A proposta de reformulação do modo como operam as ciências jurídicas passa necessariamente pelo reconhecimento de sua responsabilidade nesse processo excludente. No intuito de contribuir como esse processo se propõe que elas assumam, enquanto categoria teórico-metodológica, a intersubjetivação numa perspectiva afrodiaspórica, fundada na Filosofia Ubuntu, termo de língua Banta formado pelo prefixo ubu, que significa existência em geral, e a raiz ntu, quando a existência assume uma forma concreta. O termo ntu equivale ao umuntu, o ser humano criador de política, religião e lei, e que comunica a partir da fala. A partir do Ubuntu, o ser humano afirma sua humanidade por reconhecimento da humanidade de outros, e sobre essas bases estabelece relações humanas (SANTOS, 2020). Mogobe Ramose (1999a, 1999b) explicita a concepção de Ser Humano Africano em suas três dimensões: a) vivência – umuntu: que torna possível o discurso e o conhecimento do ser; b) não viventes: os ancestrais, que são reverenciados pela memória; c) ainda não nascidos: seres do futuro.

Desse modo, a categoria que embasa a reflexão filosófica que em sua acepção original visa dar voz ao sujeito africano, compreendido como o umuntu, aqui objetiva, como já explicitado, trazer para a cena jurídica da diáspora brasileira os sujeitos que fazem parte da experiência jurídica unicamente como tutelados e nunca como autores (CASTIANO, 2020). Tais sujeitos são majoritariamente os descendentes de africanos e os povos originários.

Agrega à esta proposta compreender que todo esse processo que precisa ser rompido no campo das ciências jurídicas se deve também ao fato de que a centralidade da categoria raça tem sido sistematicamente negada. O que se apresenta como uma contradição, uma vez que todas as ciências jurídicas do passado e do presente por meio do racismo solidificaram o terreno para que fosse possível a discriminação racial epistêmica, institucional, estrutural e intergeracional, conforme já dito, que excluiu, criminalizou e subalternizou os sujeitos.

Segundo o filósofo camaronês Achille Mbembe, a negação da existência da raça enquanto construção histórico-política tenta criar a falaciosa ideia de um racismo sem raça (MBEMBE, 2014). Nesse sentido, a exclusão na história do direito das memórias e histórias de instituições criadas ou ressignificadas pelos africanos e descendentes na diáspora se deve ao racismo epistêmico e ao epistemicídio, que resulta no genocídio e na impossibilidade do futuro, como já abordado por Abdias do Nascimento em sua obra O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (2016).

Finalizar estas reflexões implica considerar fomentar espaços de diálogos ou de intersubjetivação entre as diversas áreas das ciências jurídicas, com ênfase na Teoria e História do Direito, e com vistas a possibilitar a construção de um direito mais justo que considere categorias epistêmicas e metodológicas a partir da experiência da diáspora africana no Brasil. Tal possibilidade se apresenta como uma promissora forma de reparação pela desumanização, zoomorfização e subalternização de africanos e seus descendentes promovida pelas ciências jurídicas de matriz ocidental. Ressalta-se que em nenhuma hipótese, significa excluir as contribuições ocidentais, pelo contrário, deve-se estabelecer com elas o diálogo, como já dito, sem hierarquizações.

Desse modo, é possível, a partir da categoria intersubjetivação, repensar institutos, áreas e problemas jurídicos fundamentais. Alguns exemplos: a) Propriedade: que, considerada pelo modelo ocidental, exclui completamente a dimensão coletiva e solidária, e, por conseguinte, todas as comunidades de origem africana e indígena do direito à terra/território;  b) Ser humano: a concepção de ser humano afrodiaspórica não é individual, todavia uma completude na qual o ser humano integra a natureza e os demais seres em comunidade, e está em conexão com a memória, o presente e o futuro; c) Justiça: Ubuntu enquanto justiça restaurativa de respeito ao outro, admitindo que toda vida é igual e comprometida com um lugar nessa vida em comum, diferindo-se de uma justiça criminal seletiva, injusta e punitiva em relação às pessoas negras; d) Direitos Culturais: o atual modelo trata os sujeitos históricos, os detentores dos saberes tradicionais e das tradições vivas como subalternos, a determinar um direito que na verdade os exclui ; e) Direito Ambiental: reverter o que está vigente por uma perspectiva de não dissociação Ser Humano/Natureza, não extrativista, não imediatista, não individualista; f) Direito Econômico: Economia das comunidades sempre foi baseada no modelo de vida e organização solidária, a comunidade cuida de seus problemas, sobretudo as etnias de origem Bantu em África e na diáspora, por exemplo os quilombos; g) Direito Administrativo:  uma administração pública e gestão de políticas públicas que partam das realidades dos sujeitos e que estes, em ela e dela: participem de fato. O modelo de controle social do Estado vigente não se materializa na realidade da maioria das comunidades, pois está baseado em uma hierarquização burocrática que as exclui.

Em suma, propor a intersubjetivação enquanto categoria teórico-metodológica para as ciências jurídicas e a criação de espaços de diálogo poderá realizar uma revolução no campo jurídico, trazendo de fato os sujeitos históricos, estes que já compreendem desde sempre o mundo para além das determinações subalternizantes e colonizadoras do Direito vigente. E, para, além disso, faz-se necessário estarmos atentos para não incorrermos no equívoco de permanecer unicamente no campo do discurso, embora esse também seja ação, e de uma formalidade jurídica. Faz-se necessário apresentar possíveis soluções para transformar a realidade concreta da experiência humana e cidadã.

 

Referências

 

CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: em busca da intersubjetivação. Moçambique, Maputo: Sociedade Editorial Nadjira ltda, 2010.

CASTIANO, José Paulino. O lugar da intersubjetivação nas Filosofias Africanas. Evento Áfricas e Africanidades, realizado em 29 de setembro de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cKxmhaWXMjs&t=822s. Acesso em: 23 out. 2020.

MBEMBE, Achille. A Crítica da Razão Negra.  Lisboa: Antígona, 2014.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.

NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana: das Independências às Liberdades. Maputo: Edições Paulistas, 1993.

NGOENHA, Severino Elias. Os Tempos da Filosofia: Filosofia e Democracia Moçambicana. Maputo: Imprensa Universitária, 2004.

NGOENHA, Severino Elias. Concepções Africanas do Ser Humano. In: Pensamento Engajado: ensaios sobre filosofia africana, educação e cultura política. Maputo: Editora EDUCAR, Universidade Pedagógica, 2011a, p. 183-196.

NGOENHA, Severino Elias. Ubuntu: Novo Modelo de Justiça Glocal? In: Pensamento Engajado: ensaios sobre Filosofia Africana, Educação e Cultura Política. Maputo: Editora Educar, Universidade Pedagógica, 2011b, p. 63-74.

RAMOSE, Mogobe. African Philosophy through Ubuntu. Harare: Mond Books, 1999a.

RAMOSE, Mogobe. A filosofia Ubuntu e Ubuntu como uma filosofia. African Philosophy through Ubuntu. Tradução para uso didático por Arnaldo Vasconcelos. Harare: Mond Books,

1999b, p. 49-66. 

SANTOS, Vanilda Honória dos. Apontamentos de Antropologia Filosófica Afrodiaspórica das Congadas no Brasil. Revista Ítaca, n. 36, p. 7-42. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/Itaca/article/view/31776/19605. Acesso em 26 nov. 2020.

SANTOS, Vanilda Honória dos. A intersubjetivação como categoria para as ciências Jurídicas. Painel do I Encontro Nacional da Advocacia Negra. Associação Nacional da Advocacia Negra (ANAN), realizado em 25 de novembro de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yUVPKwUEZUA&t=6299s. Acesso em: 28 nov. 2020.

 

[1] Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestra em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduada em Direito e Filosofia (UFU). Membro do Ius Commune – Grupo Interinstitucional de História da Cultura Jurídica UFSC/CNPq.

[2][2]  Este texto foi originalmente apresentado e publicado nos Anais do IX Simpósio Direito das Minorias, realizado pela Unisosiesc/Joinville, em novembro de 2020. Também embasou a palestra A Intersubjetição da Filosofia Africana como categoria para as Ciências Jurídicas no I Encontro Nacional da Advocacia Negra, promovido pela Associação Nacional da Advocacia Negra, em 25 de novembro de 2020.

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