03/09/2021

O cabimento da tutela Inibitória na Justiça Desportiva: a limitação da eficácia da Medida Inominada para fins de inibição e remoção do ilícito sob o olhar do culturalismo e a Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale

O cabimento da tutela Inibitória na Justiça Desportiva: a limitação da eficácia da Medida Inominada para fins de inibição e remoção do ilícito sob o olhar do culturalismo e a Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale.

Fernanda Cristina Santos Soares 

Resumo

O artigo demonstra a necessidade do cabimento de uma tutela que tenha o condão de inibir/ remover o ilícito na Justiça Desportiva, sob o olhar do culturalismo e da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale. O artigo aborda as situações nas quais os procedimentos previstos no CBJD, a depender da circunstância, podem deixar de tutelar o direito do jurisdicionado desportivo. Argumenta-se que, frente à conduta contrária à norma, há ameaça à fruição do direito in natura. Trata-se do direito ao esporte, em especial (quando refere-se à Justiça Desportiva) ao esporte de rendimento. É direito do jurisdicionado desportivo a fruição do direito in natura do esporte de rendimento por meio, por exemplo, da existência de uma Justiça Desportiva que efetivamente tutele o esporte, garantindo a lisura no esporte de rendimento e a estabilidade das competições. Argumenta-se que a Medida Inominada - procedimento especial previsto no artigo 119 do CBJD a ser utilizado quando ao jurisdicionado desportivo não restam alternativas processuais previstas no código para a busca do seu direito – pode mostrar-se insuficiente para a proteção do direito in natura ao esporte (em especial, quando refere-se à Justiça Desportiva, ao esporte de rendimento). Para sustentar o argumento, esse artigo inicia com uma breve exposição sobre a tutela inibitória, respaldada principalmente nos ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni, autor precursor da tutela inibitória no Brasil. Passa- se a fazer uma necessária distinção entre ato ilícito e dano para fins de esclarecimento acerca da necessidade da tutela inibitória na Justiça Desportiva. Adicionalmente, o artigo discute a fruição do direito ao esporte in natura sob a perspectiva da prática desportiva como direito fundamental e, finalmente, detalha-se o argumento sobre os limites da Medida Inominada para a inibição e remoção do ilícito na Justiça Desportiva. Tudo isso respaldado no olhar de Miguel Reale sobre o qual Direito sempre está atrasado; a sociedade caminha e o Direito a acompanha, tentando contemplar as situações que ainda não foram contempladas pelo legislador. É nesse espaço que entra a hermenêutica e a visão tridimensional de Miguel Reale, de fato, norma e valor, numa dinâmica processual de mútua implicação entre essas três esferas.

 

PALAVRAS-CHAVE: direitos fundamentais, esporte, tutela, ilícito, dano, direito in natura, Justiça Desportiva, tutela inibitória.

Abstract

The article demonstrates the need for a guardianship that has the power to inhibit/remove illegal activities in Sports Justice, under the gaze of culturalism and Miguel Reale's Three-Dimensional Theory of Law. The article addresses situations in which the procedures provided for in the CBJD, depending on the circumstance, may no longer protect the right of the sports jurisdiction. It is argued that, in the face of conduct contrary to the norm, there is a threat to the enjoyment of the right in natura. It is about the right to sport, in particular (when referring to Sports Justice) to performance sport. It is the right of the sports jurisdiction to enjoy the in natura right of performance sports through, for example, the existence of a Sports Justice that effectively protects the sport, guaranteeing fairness in performance sports and the stability of competitions. It is argued that the Innominate Measure - special procedure provided for in article 119 of the CBJD to be used when the sports court has no procedural alternatives provided for in the code for the pursuit of its right - may prove insufficient for the protection of the in natura right to sport (especially when referring to Sports Justice, performance sport). To support the argument, this article begins with a brief exposition on the injunction, based mainly on the teachings of Luiz Guilherme Marinoni, precursor author of the injunction in Brazil. A necessary distinction is made between tort and damage for the purpose of clarifying the need for injunction in Sports Justice. Additionally, the article discusses the enjoyment of the right to sport in natura from the perspective of sports practice as a fundamental right and, finally, the argument about the limits of the Innominate Measure for the inhibition and removal of illegal activities in Sports Justice is detailed. All this supported by the look of Miguel Reale about which Law is always late; society walks and the Law follows it, trying to contemplate situations that have not yet been contemplated by the legislator. It is in this space that Miguel Reale's hermeneutics and three-dimensional vision enter, in fact, norm and value, in a procedural dynamic of mutual implication between these three spheres.

KEYWORDS: fundamental rights, sport, guardianship, tort, damage, in natura law, Sports Justice, injunction.

1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 consagrou o esporte como direito fundamental; na esteira da formação de um Estado Social de Direito, a Constituição exprime a assunção da garantia de diversos direitos sociais, dentre eles o esporte.

O Estado moderno, ao tomar para si a garantia de certos direitos, também assume a responsabilidade de garantir a tutela efetiva de tais direitos, por meio do provimento processual adequado. É nessa linha que surge a necessidade da tutela inibitória, uma tutela que inibe a prática do ato contrário ao direito, uma conduta ilícita, ainda que desta conduta não se origine um dano. Trata-se, pois, da tutela da norma.

A Justiça Desportiva, consagrada pela Constituição Federal no artigo 217, tem a função de tutelar o esporte, por meio de um sistema disciplinar organizado, com competência para julgar conflitos relativos à disciplina e às competições desportivas. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (“CBJD”) estabelece regras do processo desportivo, delimitando o rito processual a ser seguido pelos jurisdicionados da Justiça Desportiva.

De fato, o procedimento sumário e os procedimentos especiais previstos no CBJD englobam a maior parte das situações ocorridas no meio desportivo, cuja competência para dirimir conflitos recai sobre a Justiça Desportiva. Esse artigo aborda justamente as situações nas quais os procedimentos previstos no CBJD, a depender da circunstância, podem deixar de tutelar o direito do jurisdicionado desportivo.

São situações nas quais há a prática de um ato ilícito (portanto contrário à norma), mas não há dano. Frente à tais situações, argumenta-se que a Medida Inominada - procedimento especial previsto no artigo 119 do CBJD a ser utilizado quando ao jurisdicionado desportivo não restam alternativas processuais previstas no código para a busca do seu direito – pode mostrar-se insuficiente para a proteção do direito in natura ao esporte (em especial, quando refere-se à Justiça Desportiva, ao esporte de rendimento).

Para sustentar o argumento, esse artigo inicia com uma breve exposição sobre a tutela inibitória, respaldada principalmente nos ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni, autor precursor da tutela inibitória no Brasil. Passa-se a fazer uma necessária distinção entre ato ilícito e dano para fins de esclarecimento acerca da necessidade da tutela inibitória na Justiça Desportiva. Adicionalmente, o artigo discute a fruição do direito ao esporte in natura sob a perspectiva da prática desportiva como direito fundamental e, finalmente, detalha-se o argumento sobre os limites da Medida Inominada para a inibição e remoção do ilícito na Justiça Desportiva.

Tudo isso respaldado no olhar de Miguel Reale sobre o qual Direito sempre está atrasado; a sociedade caminha e o Direito a acompanha, tentando contemplar as situações que ainda não foram contempladas pelo legislador. É nesse espaço que entra a hermenêutica e a visão tridimensional de Miguel Reale, de fato, norma e valor, numa dinâmica processual de mútua implicação entre essas três esferas.

 

2. A tutela inibitória

Luiz Guilherme Marinoni afirma que existe um dogma de origem romana no sentido de entender que a tutela ressarcitória é a única forma de tutela contra o ilícito[1]. Ilicitude e responsabilidade civil foram duas categorias unificadas ainda no direito romano; tal entendimento percorre a história do direito, inclusive a do direito processual, sem que a doutrina o questionasse muito, inclusive identificando ilícito com o ressarcimento em dinheiro.

Nesse sentido, para explicar o fenômeno da unificação entre ilícito, fato danoso e ressarcimento em dinheiro e como isso repercutiu no processo, Marinoni considera a questão a partir do direito liberal clássico. O pensamento vigente na época admitia a existência de uma equivalência das mercadorias, o que levava ao entendimento de que o objeto da lide era sempre uma “coisa” que possuía um valor de troca. Uma vez que a lesão ao direito era passível de aferição em dinheiro, o direito liberal clássico trabalhava com a ideia de que os direitos poderiam ser sempre tutelados por meio do ressarcimento em dinheiro.

Assim, na lógica do liberalismo do século XIX, se os bens são sempre equivalentes, não haveria qualquer necessidade de uma tutela diferenciada; a transformação do bem em dinheiro estaria de acordo com a lógica do sistema. Dessa forma, afirma Marinoni que “se o magistrado não podia dar tratamento distinto às necessidades sociais, era natural que se unificasse a forma de tratamento e que se desse ao lesado uma quantia em dinheiro a título de reparação”. E continua o autor:

Se todos são iguais – e essa igualdade deve ser preservada inclusive no plano do contrato -, não há razão para admitir uma intervenção judicial mais incisiva diante do inadimplemento para a obtenção da prestação in natura. Se o princípio da igualdade formal atua da mesma forma diante do contrato e do processo, bastaria ao juiz conferir ao lesado a tutela pecuniária. A sanção pecuniária teria a função de igualizar os bens e as necessidades, pois se tudo é igual, inclusive os bens – os quais podem ser transformados em dinheiro -  não existiria motivo para pensar em tutela jurisdicional específica[2].

 

O princípio da igualdade formal ao qual Marinoni se refere era, pela lógica do sistema liberal clássico, necessário para a manutenção da liberdade e do funcionamento do mercado. De tal sorte que, a partir de tal lógica, não haveria razões para pensar em uma forma de tutela que levasse em conta certos interesses sociais ou de uma técnica processual que pudesse ensejar um tratamento diferenciado para situações sociais diferentes ou posições sociais específicas.

Nesse cenário, portanto, a tutela ressarcitória era suficiente para atender aos anseios do cidadão que buscava no judiciário a tutela dos seus direitos, já que a tutela ressarcitória não leva em conta as necessidades e espécies diferentes de bens. Tal tutela mantém o funcionamento do mercado na perspectiva do princípio da igualdade formal e ignora as características e as necessidades socialmente diversas.

Só faz sentido pensar em uma tutela preventiva ou em uma tutela contra o ilícito no contexto de um Estado que prevê a proteção de direitos que não podem ser reduzidos à pecúnia, ou seja, cuja fruição depende do próprio reconhecimento do Estado sobre a natureza de tais direitos.

Não era o caso do pensamento liberal clássico, que entendia direitos fundamentais como direitos de defesa contra o Estado. A preocupação do Estado liberal era a defesa da liberdade contra eventuais agressões da autoridade Estatal e não com as diferentes necessidades sociais das pessoas. É por esse motivo que destaca Marinoni que a confusão entre tutela contra o ilícito e tutela ressarcitória pelo equivalente tem raízes na monetização dos direitos[3], que era acentuada pelos valores do Estado liberal clássico em que o equivalente em dinheiro, sem colocar em risco a liberdade, mantinha em funcionamento os mecanismos do mercado.

Esse cenário começa a mudar quando o Estado passa a assumir para si a proteção dos direitos fundamentais de forma distinta, passando, assim, a reconhecer que, pela natureza de certos direitos, sua fruição in natura necessitava de uma tutela específica.

Assim, a medida em que o Estado assume novas preocupações sociais, tais como a proteção do meio ambiente, da saúde, da posição do consumidor e o fomento do esporte, são editadas normas que, para proteger tais direitos, impõem condutas positivas e negativas.

            É esta a função primária do Direito, na visão de Miguel Reale. Para a corrente culturalista e para o autor (que, a despeito de o pensamento não poder ser encaixado em uma única corrente, certamente a vertente culturalista é forte nos escritos do autor), a visão do positivismo sobre a função do Direito, no sentido de atribuir a este somente a questão da garantia da segurança jurídica é limitada. De acordo com Miguel Reale, o Direito, além de se prestar à garantia da segurança jurídica  (e, portanto, a garantia das expectativa de comportamento das pessoas), a função primária do Direito seria a de instituir valores na sociedade; atribuir como correto determinado valor que uma cultura considera como “melhor” e instituí-lo, tornando-o obrigatório por meio das normas jurídicas[4].

Para que as normas que objetivam a proteção desses direitos sociais sejam realizadas, ou seja, para que as normas efetivamente protejam esses direitos, há a necessidade de uma tutela contra o ato contrário ao direito, ou seja, uma tutela da norma. Trata-se, portanto, de uma tutela que inibe a violação da norma ou remove os efeitos concretos que vieram da sua violação, o que nada mais é do que a estruturação do processo ao ordenamento jurídico atual que se propôs a proteger determinados bens mediante a imposição de certas condutas.

Prevê o artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito[5]”. Tal ditame constitucional é a base do direito fundamental de ação, um direito que ultrapassa o simples direito de uma sentença de mérito. Como nos ensina Cássio Scarpinella Bueno, o direito de acesso à justiça é o direito que deve garantir a tutela efetiva de todos os demais direitos[6].

Marinoni destaca que a própria corte constitucional italiana já afirmou que o direito a tutela jurisdicional está entre os princípios supremos do ordenamento constitucional, que deve assegurar a todos e sempre, em conexão com o próprio princípio democrático, o juiz natural e a tutela jurisdicional efetiva.

Não ter essa tutela jurisdicional efetiva, ressalta Humberto Theodoro Júnior, transforma os direitos garantidos pela CF em “meras declarações políticas[7]”. E, continua o autor: “o direito de acesso à justiça garante a tutela jurisdicional capaz de fazer valer o direito material e, por consequência, o direito à técnica processual capaz de viabilizar essa tutela jurisdicional”.

Nesse sentido, quando o mencionado artigo 5º, inciso XXXV refere-se a “ameaça a direito”, o ditame garante a possibilidade de qualquer pessoa requerer a tutela inibitória. Ou seja, há direito constitucional à tutela jurisdicional capaz de inibir a violação de um direito, mesmo que esta violação ainda não tenha ocorrido e mesmo que não tenha se configurado dano nem o perigo de dano, já que não se fala em dano na tutela inibitória.

João Batista Lopes, nessa linha, afirma que o disposto no artigo 5º, inciso XXXV já seria suficiente para admitir o cabimento da tutela inibitória. De acordo com o autor:

A tutela inibitória é uma técnica especial e refinada cujo escopo é impedir a prática do ilícito ou, se este já foi praticado, obstar sua continuidade. Ao contrário da tutela ressarcitória, que se refere ao passado – o autor vai a juízo para pleitear indenização por dano já consumado – a tutela inibitória volta-se ao futuro uma vez que se reveste de caráter preventivo. A Constituição dispõe, no artigo 5º, inciso XXXV, que 'a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito'. Seria suficiente, pois, essa norma para que se admitisse a tutela inibitória, mas o legislador processual se preocupou em contemplá-la expressamente, ainda que fora da sede própria (CPC, artigo 497, parágrafo único). Ao contrário do que muitos supõem, porém, a tutela inibitória não é uma novidade ou, antes, é uma 'antiga novidade'. Sua admissibilidade ressaltava clara, por exemplo, do interdito proibitório disciplinado no CPC revogado[8].

 

Não obstante a indicação de João Batista Lopes sobre o cabimento da tutela inibitória sustentado no texto da Constituição Federal, o Código de Processo Civil de 2015 a prevê no artigo 497, in verbis:

Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.

Parágrafo único. Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo.

Como João Batista Lopes afirma na citação acima, o referido artigo 497 não trouxe uma completa novidade já que a tutela inibitória já era admissível no interdito proibitório. De fato, o que redação do parágrafo único do artigo 497 traz de novidade é a inclusão do ilícito como elemento qualificador da necessidade de inibição, a descrição mais clara das modalidades da tutela inibitória ao mencionar a inibição da prática, a reiteração ou a continuação de um ato ilícito, e finalmente, deixa clara a desnecessidade de demonstrar o dano, a culpa e o dolo.

Assim, o fundamento da tutela inibitória é o direito à tutela contra ato contrário ao direito, ou, dito de outro modo, o direito à tutela que faça valer a norma de direito; a fruição do direito in natura. O direito à tutela inibitória vem da mera existência do direito material, especialmente daqueles direitos de conteúdo não patrimonial.

Edson Antônio Sousa Pinto e Daniela Lopes de Faria conceituam assim a tutela inibitória, fundamentados nos estudos de Sérgio Cruz Arenhart:

A tutela inibitória pode ser conceituada como um provimento jurisdicional que visa impedir a prática, a continuação, ou a repetição de um ato ilícito (ou antijurídico), possibilitando de forma definitiva, por meio de cognição exauriente, a fruição in natura do direito do autor da ação – de acordo com o direito substancial previsto no ordenamento jurídico. É, em outras palavras, tutela adquirida pelo titular do direito por meio de processo de conhecimento voltado para o futuro, requerendo ao réu o cumprimento de uma obrigação de fazer (inibitória positiva) ou de não fazer (inibitória negativa), sob pena de imputação de multa ou outras medidas necessárias que garantam o resultado prático equivalente – ou seja, a inibição do ato ilícito (e não do dano)[9]. (Grifo nosso)

 

 

3. O Culturalismo Jurídico e a Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale

 

O culturalismo jurídico é um modelo explicativo do direito pensado, inicialmente, em oposição ao positivismo jurídico. O positivismo jurídico é o modelo que explica o direito essencialmente a partir da forma, e tem como grande protagonista Hans Kelsen.

O culturalismo entende o Direito enquanto um fenômeno cultural. E quando se concebe o Direito como parte do reino da cultura, enquanto fenômeno cultural, é necessário tentar trazer uma definição do que seria cultura. Miguel Reale abordar essa questão na obra “Cinco Temas do Culturalismo” dizendo que “cultura é tudo aquilo que é produzido pelo homem e tem significado, faz sentido, para o homem. Cultura é tudo aquilo que resulta numa projeção do espírito humano[10]”. E continua o autor

 

A cultura, portanto, deve ser entendida como processo histórico e constitui-se graças a seleções que o homem realiza na história. A axiologia não pode ser desvinculada do processo histórico. O “ser” do homem é essencialmente histórico e é essa historicidade que está no âmago do processo cultural. O homem servindo-se das leis naturais criou um segundo mundo sobre o mundo dado: o mundo histórico, o mundo cultural. Isto porque, o homem é um ser livre e dotado de poder de síntese, que lhe permite reunir os elementos dispersos da experiência.

 

O Direito, como manifestação imaterial da cultura, segue os rumos desta. A cultura muda, o direito vai mudar também. Como se o direito fosse um acessório da evolução das discussões culturais. Para compreender o Direito, portanto, é preciso compreender os valores que constituem determinada sociedade. A função primária do Direito, na visão culturalista, é instituir valores na sociedade. Atribuir como correto determinado valor que uma cultura considera como melhor, e institui-lo, torna-lo obrigatório por meio das normas jurídicas. Nessa esteira, para o culturalismo, o direito se compreende lastreado no mundo da cultura; é resultado de uma processualidade histórica.

Essa concepção e olhar sobre valores que o culturalismo traz permeia a Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale. Para o autor, Direito é norma, valor e fato. A compreensão plena do Direito demanda a análise dessas três camadas, ou três dimensões.

A crítica que Miguel Reale faz ao positivismo de Hans Kelsen e a outras compreensões filosóficas do Direito que analisam a dimensão da justiça, às teorias que analisam a história do direito e às teorias que a analisam a dimensão sociológica do direito é de que tais vertentes teóricas, que os autores dessas fornecem uma descrição correta do Direito, porém incompleta. Nesse sentido, a grande contribuição de Miguel Reale é dizer que o principal problema desses autores foi ter descrito apenas uma das dimensões do direito. Para o autor:

 

(...)o Direito não é só norma, como quer Kelsen; Direito não é só fato, como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato, é valor. (...) o Direito é uma integração normativa de fatos segundo valores[11].

 

Assim, para o autor, uma esfera implica a existência de outra; não há como falar de uma esfera sem tratar das demais. De tal sorte que, ao falar do fato, deve-se falar da norma e do valor, assim numa interação entre as três[12]. Não bastaria, portanto, aglutinar norma, valor e fato para obter uma definição. Para Reale, é preciso promover a interação adequada entre esses 3 elementos.

Nesse sentido, propõe o autor a chamada dialética de integração (ou de complementariedade). A dialética é composta de três etapas: tese, antítese e síntese. Da contradição entre duas teses opostas (da tese e antítese) é criada uma terceira tese, a síntese. Assim, para haver dialética, é necessário contradição e negatividade entre tese e antítese, para assim gerar uma síntese.

É possível atribuir à ideia da dialética na compreensão da tridimensionalidade de Miguel Reale. A partir de uma interação entre fato e valor, gera-se a norma. Portanto, o Direito se dá a partir da relação entre essas três dimensões: fática, valorativa axiológica e a normativa. Nos ensina o autor:

 

Há uma correlação permanente progressiva entre 2 ou mais termos (fato, valor e norma), os quais não podem ser compreendidos separados um dos outros, sendo ao mesmo tempo irredutíveis uns aos outros. Tais elementos distintos ou opostos da relação, por outro lado, só tem plenitude de significado na unidade concreta da relação que constituem, enquanto se correlacionam e dessa unidade participam[13].

 

 

Na dialética nada permanece estático, imóvel; tudo está em movimento. Então, a partir do choque de teses opostas, surgem movimentos sucessivos. É por isso que o pensamento de Miguel Rale é de uma processualidade histórica; é assim que o autor analisa o Direito, e não a partir de algo imóvel e estático, mas em constante movimento. Assim, para Miguel Reale,

 

A integração de 3 elementos na experiência jurídica: o axiológico, o fático e o técnico formal, revela-nos a precariedade de qualquer compreensão do Direito isoladamente como fato, como valor ou como norma. E, de maneira especial, o equívoco de uma compreensão do Direito como pura forma, suscetível de albergar com total indiferença as infinitas e conflitantes possibilidades dos interesses humanos. Sendo o Direito um bem cultural, nele há sempre uma exigência axiológica atualizando-se na condicionalidade histórica, de maneira que a objetividade do vínculo jurídico está sempre ligada às circunstâncias de cada sociedade, aos processos de opção ou de preferência entre os múltiplos caminhos que se entreabrem no momento de qualquer realização de valores. Põem-se assim, no âmago da experiência jurídica a problemática do poder, que procura segurar por todos os modos, inclusive pela força física, a realização do Direito[14].

 

4. A distinção entre dano e ilícito

Em sede de tutela inibitória não há que se falar em questionamento sobre algum resultado danoso advindo de um ato ilícito, como assinalado por Edson Antônio Sousa Pinto e Daniela Lopes de Faria no conceito reproduzido no tópico anterior. Marcelo Abelha ressalta que a tarefa de distinção entre dano e ilícito não é tão fácil porque o próprio Código Civil, no artigo 186[15], vincula ilícito com dano pra fins de responsabilidade civil e leva a crer que dano e ilícito só poderiam ser tutelados de forma indenizatória[16]. O mesmo autor afirma que o dano não é consequência natural do ato ilícito e que também é possível haver dano sem a ocorrência de ilícito; reitera o autor que não há uma regra no ordenamento jurídico que impeça a tutela do ilícito de forma autônoma, pelo contrário.

Alexandre Freitas Câmara também pontua a dificuldade de obter-se uma diferenciação entre dano e ilícito partindo apenas de uma análise do referido artigo 186 do Código Civil. Para o autor:

[...] o artigo 186 do CC estabelece que '[a]quele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito'. Da leitura desse texto normativo, fica a impressão – equivocada, diga-se desde logo – que só comete ato ilícito quem, agindo culposamente, causa dano a outrem. Isso, porém, não é correto. [...] Ocorre que na demanda inibitória o objeto do processo não é o reconhecimento da obrigação de indenizar. O que se busca é, tão somente, uma decisão destinada a inibir a prática do ato. Por isso, é absolutamente irrelevante saber se o demandado agiu culposamente ou se algum dano foi – ou está na iminência de ser – produzido. Estas questões poderão ser relevantes em outro processo, no qual se busque alguma indenização. Não, porém, no processo cujo objeto é a tutela inibitória. Neste, basta a demonstração de que se está na iminência da prática de um ato ilícito (contrário ao Direito), ou que este é um ato de duração prolongada no tempo e que está sendo praticado, para que se profira decisão que determine a abstenção de sua prática ou que ele não seja reiterado ou que não continue a ser praticado[17].

 

Marinoni destaca que o dano não é uma consequência necessária do ato ilícito. Para o autor, sustentado nos entendimentos de Aldo Frignani, o dano é requisito indispensável para o surgimento da obrigação de ressarcir, mas não para a constituição do ilícito. Dessa forma, se o dano não é elemento constitutivo do ilícito, podendo este existir independentemente do dano, não há razão para não se admitir uma tutela que leve em consideração apenas o ilícito, deixando de lado o dano. E continua o autor:

 

Perceba-se, enfim, que a possibilidade de se requerer uma tutela independentemente da existência de dano tem relação com o próprio conceito de norma jurídica, uma vez que se a única sanção contra o ilícito fosse a obrigação de ressarcir, a própria razão de ser da norma estaria comprometida. Só isso demontra a necessidade de o processo abandonar a indevida associação entre ilícito e dano, que até hoje faz pensar que a tutela contra o ilícito futuro é tutela contra a probabilidade de dano e a tutela contra o ilícito passado é a tutela ressarcitória[18].

 

5. A fruição do direito ao esporte in natura – a prática desportiva como direito fundamental

Viu-se que a tutela inibitória visa a proteção do direito in natura. Argumenta-se neste artigo que é a tutela inibitória a ferramenta adequada, inclusive em sede de Justiça Desportiva, para garantir a proteção do direito ao esporte in natura. Tal direito é expresso na Constituição Federal, na esteira de um Estado social de direito, que toma para si a proteção de direitos sociais, o que, como vimos, não ocorre sob a lógica de um sistema liberal clássico.

O direito ao esporte é positivado na Seção III (Do Desporto) do Capítulo III (Da Educação, da Cultura e do Desporto), do Título (Da Ordem Social) da Constituição Federal, no artigo 217, in verbis:

Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;

IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.

 

O esporte tem papel fundamental nas sociedades desde os primórdios das nossas civilizações, evoluindo ao longo dos séculos como uma ferramenta de inclusão social. Há três modalidades de manifestação do esporte: esporte de rendimento, esporte de participação e esporte educacional. Todas as modalidades gozam de proteção do Estado como direito fundamental. É nesse sentido que discorre Luiz Alberto David Araújo:

 

A Constituição, no Capítulo “Da Ordem Social”, onde estão concentrados os direitos que têm por propósito o resgate da dignidade da pessoa humana para todos os cidadãos, prevê o direito ao desporto. Os direitos sociais objetivam a formação do ser humano integral: agente da sociedade, das relações de trabalho, construtor do mundo moderno e, ao mesmo tempo, um ser relacional, humano, que, desse modo, deve integrar sua vida com o lazer, o convívio familiar e a prática desportiva. Assim, o desporto, quer como forma de lazer, quer como parte da atividade educativa, quer ainda em caráter profissional, foi incorporado ao nosso sistema jurídico no patamar de norma constitucional[19].

 

Ainda nessa esteira, nos ensina Álvaro Melo Filho:

 

A constitucionalização do desporto através do art. 217 da Carta Magna de 1988 teve, primacialmente, a virtude de ressaltar que as decantadas potencialidades do desporto brasileiro ganham mais consistência e força expressiva, quando é a própria Constituição que aponta diretrizes para que as atividades desportivas desenvolvam-se em clima de harmonia, de liberdade e de justiça com sentido de responsabilidade social, além de dotar o desporto nacional de instrumentos legais para, se não reduzir, pelo menos resolver desportivamente grande parte das demandas entre os atores desportivos, até porque, como dizia Voltaire “as leis do jogo são as únicas que em toda parte são justas, claras, invioláveis e executadas”[20].

 

Na mesma esteira do texto Constitucional, o Estatuto do Torcedor (Lei Federal n° 10.671/2003), que estabelece normas de proteção e defesa do torcedor, traz ao lume jurídico diversos direitos tais como a publicidade e transparência na organização das competições administradas pelas entidades de administração do desporto, amplo acesso ao Ouvidor da Competição, a divulgação, durante a realização da partida, da renda obtida pelo pagamento de ingressos e do número de espectadores pagantes e não-pagantes, a divulgação do  regulamento, as tabelas da competição e o nome do Ouvidor da Competição em até 60 (sessenta) dias antes de seu início, a garantia de que a participação das entidades de prática desportiva em competições organizadas pelas entidades de administração do desporto seja exclusivamente em virtude de critério técnico previamente definido, a segurança nos locais onde são realizados os eventos esportivos antes, durante e após a realização das partidas, entre outros.

Todos estes direitos trazidos pelo Estatuto do Torcedor são normas que, ao serem violadas, impedem a fruição do direito in natura. O ilícito, o desrespeito à norma, já é um ato a ser combatido pelo Estado, mesmo que o jurisdicionado não demonstre ter sofrido qualquer dano direto, já que, como dito, a violação da norma impede a fruição do direito in natura. De tal sorte que a tutela apropriada para combater tal ilícito é a tutela inibitória.

6. Os limites da Medida Inominada para a inibição e remoção do ilícito na Justiça Desportiva

A Justiça Desportiva, consagrada pelo artigo 217 da Carta Magna, tem a função de disciplinar as questões relativas à prática formal do desporto no País, por força do § 1º do referido artigo.

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), publicado em 2003 pelo Conselho Nacional do Esporte (integrante do então Ministério do Esporte) através de sua Resolução n. 01, futuramente alterado em 10 de dezembro de 2009, estabelece regras delimitando o rito processual a ser seguido pelos jurisdicionados da Justiça Desportiva[21], trazendo também ao ordenamento pátrio a exposição e sanção dos delitos de natureza disciplinar.

Para além do procedimento sumário, o CBJD lista os chamados procedimentos especiais. São eles:

  • Transação disciplinar: inspirado na transação penal, este instrumento permite que a Procuradoria de Justiça Desportiva sugira a aplicação imediata das penas de multa, suspensão por partida e suspensão por prazo. Neste procedimento, a Procuradoria de Justiça Desportiva oferece ao suposto infrator a aplicação imediata de uma das sanções citadas, evitando-se que o processo siga seu curso natural, imprimindo ainda mais celeridade ao processo desportivo.
  • Inquérito: trata-se de uma investigação preliminar conduzida quando os fatos não estão suficientemente claros para a apresentação de uma denúncia. Pode ser determinado pelo Presidente do Tribunal competente (Superior Tribunal de Justiça Desportiva ou Tribunal de Justiça Desportiva), a requerimento da Procuradoria ou da parte interessada. Caso não seja determinado pela Procuradoria, esta deve acompanhar o inquérito.
  • Impugnação de partida: este procedimento é limitado a duas hipóteses: 1) modificação de resultado, e; 2) anulação da partida. Aqueles que disputaram a partida ou aqueles que tenham imediato e comprovado interesse no seu resultado podem promover a impugnação de partida.
  • Mandado de garantia: inspirado no mandado de segurança da justiça comum, o mandado de garantia será concedido sempre que alguém sofrer (ou tiver justo receio de sofrer) violação de seu direito líquido e certo, ilegalmente ou com abuso de poder.
  • Reabilitação: Após 2 anos do trânsito em julgado da decisão (ou seja, quando não mais cabem recursos), a pessoa que sofreu a pena de eliminação pode pedir reabilitação ao tribunal.
  • Revisão: a revisão de processos já finalizados é admitida em três situações: 1) quando a decisão resultou de manifesto erro de fato ou de falsa prova; 2) quando a decisão tiver sido proferida contra a literalidade da lei ou evidência da prova; 3) quando, após a decisão, se descobrem provas da inocência do punido ou de atenuantes relevantes. A revisão só pode ser pedida pelo prejudicado.

Completa a lista de procedimentos especiais a Medida Inominada, objeto de maior atenção desse artigo. Tal medida é prevista no artigo 119 do CBJD, nos seguintes termos:

Art. 119. O Presidente do Tribunal (STJD ou do TJD), perante seu órgão judicante e dentro da respectiva competência, em casos excepcionais e no interesse do desporto, em ato fundamentado, poderá permitir o ajuizamento de qualquer medida não prevista neste Código, desde que requerida no prazo de três dias contados da decisão, do ato, do despacho ou da inequívoca ciência do fato, podendo conceder efeito suspensivo ou liminar quando houver fundado receio de dano irreparável, desde que se convença da verossimilhança da alegação. § 1º Recebida pelo Presidente do Tribunal (STJD ou TJD) a medida a que se refere este artigo, proceder-se-á na forma do art. 78-A. § 2º Os réus, a Procuradoria e as partes interessadas terão o prazo comum de dois dias para apresentar contra-razões, contado a partir do despacho que lhes abrir vista dos autos. § 3º Caberá recurso voluntário da decisão do Presidente do Tribunal (STJD ou TJD) que deixar de receber a medida a que se refere este artigo.

Extrai-se da redação do artigo que o uso da Medida Inominada é possível quando não houver outro caminho a seguir, ou, nas palavras de Milton Jordão, “quando a parte necessita de um provimento judicial, contudo, não encontre forma legal própria e predefinida[22]”.

Assim, para que seja cabível a utilização da Medida Inominada, os seguintes critérios devem estar presentes na situação concreta:

  1. Deve tratar-se de caso excepcional;
  2. Deve ser requerida no prazo de três dias contados: i) da decisão; ii) do ato; iii) do despacho, ou; iv) da inequívoca ciência do fato;
  3. Deve haver receio de dano irreparável para a concessão de medida liminar.

Conclui-se que, o jurisdicionado desportivo, frente a uma situação concreta que não cumpra os requisitos listados para o cabimento da Medida Inominada, não poderá de esta fazer uso. Caso tal situação tampouco se adeque aos demais procedimentos especiais listados no CBJD, o jurisdicionado desportivo não terá meios de acionar a justiça desportiva e buscar a tutela do seu direito.

Milton Jordão afirma ainda que, a despeito de tratar-se de medida sempre utilizada em face de situação imprevista no CBJD, não é raro o uso da Medida Inominada nos tribunais desportivos. O autor cita alguns casos em que a medida foi utilizada e afirma que:

Em todos eles foi imprescindível a demonstração do risco que as suas pretensões corriam caso, ainda em sede liminar, fosse suspensa uma agremiação do certame, ou decretada a perda de mando de campo ou determinado a chancela de condições de jogo para atleta, enfim, deve restar sobejamente evidenciado que a delonga em ser proferido provimento cautelar implique em irreparável dano[23].

 

A interessante contribuição do autor nos alerta para o fato de que o uso da Medida Inominada na prática forense desportiva envolve a necessária demonstração de risco de dano e, mais importante, a desnecessidade de ocorrência de ato ilícito. Ou seja, a Medida Inominada -  instituto utilizado quando não há alternativa processual ao jurisdicionado desportivo - não atende a situações nas quais há a ocorrência de ato ilícito sem que haja dano.

A título exemplificativo, imagine-se a situação na qual o presidente de uma entidade de prática desportiva exerce também o cargo de auditor do Tribunal de Justiça Desportiva competente para julgar competições das quais a entidade a que preside participa, além de outras questões de ordem disciplinar.

Prevê o artigo 16 do CBJD[24] que, respeitadas as exceções da lei, é vedado o exercício de função na Justiça Desportiva aos dirigentes das entidades de prática desportiva.

Como titular da ação que tramita por meio do procedimento sumário, caberia à Procuradoria apresentar denúncia e iniciar o procedimento disciplinar desportivo. Cabe aos demais jurisdicionados desportivos o recurso da apresentação de uma notícia de infração disciplinar desportiva nos termos do artigo 74 do CBJD[25] em caso de inércia da Procuradoria. Contudo, caso a Procuradoria entenda que não é cabível a apresentação de uma denúncia com base nos fatos relatados na notícia de infração disciplinar desportiva, o caso será arquivado nos termos dos §§ 2º e 3º do referido artigo 74 do CBJD.

Não poderia, tampouco, o jurisdicionado desportivo fazer uso da Medida Inominada, já que o caso em tela não atende aos requisitos do artigo 119 do CBJD: não se trata de caso excepcional; a data da posse do hipotético auditor supera três dias, e, principalmente; não há dano a ser comprovado.

Há, no caso hipotético, uma violação à norma (portanto, há ocorrência de ato ilícito), mas não há dano resultante de tal violação já que não houve uma decisão eivada de parcialidade clubista por parte do auditor, que é justamente o que a norma quer evitar.

Não há o dano na situação hipotética, mas a violação à norma. Tal violação põe em xeque a fruição do direito in natura do jurisdicionado ao esporte profissional. Dito de outro modo, a violação da norma é uma ameaça ao direito fundamental ao esporte de rendimento, expresso no artigo 217 da Carta Magna.

A ferramenta para a busca da tutela do direito, no caso hipotético descrito, é a tutela inibitória.

7. Conclusão – A contribuição da tutela inibitória para a Justiça Desportiva

Esse artigo demonstrou a necessidade do cabimento de uma tutela que tenha o condão de inibir/ remover o ilícito na Justiça Desportiva. Segundo Luiz Guilherme Marinoni, “para a configuração do ilícito basta a prática de um ato contrário ao direito; basta uma conduta, ainda que esta não seja seguida por um evento. O dano, com efeito, não é essencial para a configuração do ilícito[26]”.

Argumentou-se que, frente à conduta contrária à norma, há ameaça à fruição do direito in natura. Trata-se do direito ao esporte, em especial (quando refere-se à Justiça Desportiva) ao esporte de rendimento. É direito do jurisdicionado desportivo a fruição do direito in natura do esporte de rendimento por meio, por exemplo, da existência de uma Justiça Desportiva que efetivamente tutele o esporte, garantindo a lisura no esporte de rendimento e a estabilidade das competições.

Este artigo ainda tratou da questão do culturalismo e do pensamento de Miguel Reale. Para o culturalismo o Direito também é responsável por incutir valores na sociedade. Quando da criação da norma, há, subjacente, uma discussão sobre fatos e valores que vão compor tal processo de criação legislativa. Essa norma (que tem um valor em si), será concretizada na sociedade e será invocada quando os fatos que envolvam a aplicação dessa norma acontecerem. Na medida em que essa norma é aplicada – ou não – isso gera efeitos nessa sociedade. E esses efeitos na sociedade vão gerar novos valores, vão afetar tal sociedade e o comportamento das pessoas.

O professor Miguel Reale acredita que "uma vez elevados à categoria de consciência coletiva, determinados valores se tornam semelhantes às entidades ontológicas adquirindo caráter permanente e definitivo[27]."

Estes valores transformam-se em valores fixos e universais orientando a humanidade, por exemplo, o valor da pessoa humana, o direito à vida, à igualdade, à liberdade e etc. Este artigo demonstrou que a prática do ilícito pode ameaçar a fruição do direito em natura, razão pela qual a tutela inibitória é o procedimento apropriado para combate-la.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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[1]MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória e tutela de remoção do ilícito. 7ª. ed. São Paulo: Revista dosa Tribunais, 2019. Pág. 13.

[2] Idem, pg.14.

[3] Idem. Pág.25

[4] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. Imprenta: São Paulo, Saraiva, 2016. ISBN: 9788502041479

[5] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, [...]. Brasília, DF: Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

[6] BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. 5ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2019

[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – vol. I: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento, procedimento comum / 60. ed. – [2.Reimpr.]. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[8] LOPES, João Batista, LOPES, Maria Elizabeth de Castro. Tutela inibitória. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Processo Civil. Cassio Scarpinella Bueno, Olavo de Oliveira Neto (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/164/edicao-1/tutela-inibitória

[9] SOUSA PINTO, Edson Antônio; FARIA, Daniela Lopes de. A Tutela Inibitória e Seus Fundamentos no Novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. Volume 252/2016. Pág. 303-318. Fevereiro/2016. DTR/2016/217.

[10] REALE, Miguel. Cinco Temas do Culturalismo. São Paulo. Saraiva, 2002.

[11] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 1

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