12/04/2017

O ARTIFICIE

Dênio Mágno da Cunha*

 

            Estou relendo “O Artíficie”, escrito por Richard Sennett em 2008 e publicado pela editora Record em 2009. Já mencionei este livro aqui algumas vezes. Essas menções são justificadas pelas inúmeras possibilidades que o texto oferece no estabelecimento de relações com diversos temas ligados à educação e ao mundo do trabalho.

            Nesta última semana me chamou a atenção a possível relação que existe entre a evolução das formas de produção e o conceito de qualidade. Como sou professor no curso de Gestão da Qualidade indiquei o livro para meus alunos. Mas qual é esta relação? Quanto mais se produz, mais se reduz a qualidade. Parece óbvio, mas no mundo industrial e agora digital em que vivemos, corremos o risco de nos enganar com a qualidade da automação existente na produção sem série.

            Bem, Sennette traça a evolução do trabalhador da Idade Média até nossos dias, afirmando que é possível sermos um artifície nos dias atuais, mesmo que essa forma de produção – artesanal, individualizada – tenha desaparecido de nosso cotidiano, ficado restrita a ação específica de algumas categorias profissionais como os luthiers. Qual o argumento? De modo amplo, Sennette afirma que nos aproximamos ao artíficie, a seu significado, postura, representação e resultado alcançado, na medida em que estamos e somos mais próximos e conhecedores daquilo que fazemos.

            Lembro-me do texto de Herrigel (A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen) ao passar a imagem de total integração entre arqueiro, arco e flecha. Evolui-se no tiro com arco na medida em que estes elementos estão tão integrados que é possível metaforicamente e espiritualmente que o arqueiro siga junto com a flecha em direção ao alvo. Isto é, arqueiro, arco e flecha integram-se de tal maneira a ponto de serem um só integrado ao objetivo de atingirem o alvo.

            Só que o alcance dessa relação que traz consigo a expertise, o domínio da técnica, o controle e ao mesmo tempo a leveza ao fazer, exige treinamento, experiência, vivência, convívio, integração, compreensão, interação, estudo, foco e muito mais. Não é na teoria e nem no curto tempo – por mais que exista a habilidade nata – que se consegue alcançar esses resultados de qualidade. Sim, porque nesta relação evoluída ao longo do tempo a qualidade é uma consequência natural.

            Não posso deixar de lembrar, na área dos esportes, as grandes habilidades dos artistas Rafael Nadal e Federer ao manobrarem seus instrumentos de trabalho, ou para ficar no lugar comum, as habilidades de Oscar – o “mão santa” – e de Zico, “o galinho de Quintino”, ou de Pelé, ou de Neymar – a caminho da maturidade. E na música, na pintura, na literatura, na engenharia, na medicina, na arquitetura... em toda parte, quantos gênios!!! Todos estes, desde cedo se concentraram em exercitar e fazer evoluir um dom. Mas não pensem que apenas o dom garantiram a eles os resultados que foram capazes de alcançar.

            A poucos dias conversava com uma amiga que iniciara ainda cedo seus estudos de piano e nunca conseguira avançar dos estudos[i]. Estava sempre estudando, mas não alcançava o “estado da arte” na sua relação com o instrumento. Faltou-lhe tempo e espaço para uma dedicação maior. A vida não lhe deu as condições para uma aprendizagem superior.

            Durante esta conversa me veio à lembrança a relação que minha mãe manteve com a música e com os instrumentos musicais, o principal deles o piano. Durante anos eu acompanhei os seus estudos e a execução dos estudos citados por minha amiga. Foram anos estudando no Conservatório, anos dando aulas – na escola e em casa, formando novos pianistas. Mas o que mais me tocou nesta conversa foi o fato de perceber que minha mãe era uma artificie, uma arqueira Zen, uma pessoa para a qual o seu instrumento de trabalho era mais, muito mais do que apenas um objeto ou um meio para leva-la a seus objetivos. O piano e minha mãe eram amigos. Sim, amigos. Ele permitia a ela dar vasão a seu talento; ela permitia que ele realizasse sua função sonora. Havia entre eles um diálogo; eram unos. Havia entre eles uma integração inimaginável, ao ponto dele adaptar-se a ela quando a artrite reumatoide a atacou. Foram outros tantos anos de convivência em que ela, mesmo tendo a mão atrofiada, não perdeu suas habilidades; e ele, não deixou de emitir sua sonoridade – não transformaram um ao outro em um som mudo no canto da sala.

            A essa altura pergunta-se: qual a relação existente entre essas histórias e a educação?

            Vejo a princípio dois aspectos. O primeiro o do professor (mestre) que deve ser exímio conhecedor de todos os instrumentos através dos quais ele poderá exercer sua profissão. Isso significa: ele deve conhecer das metodologias de ensino-aprendizagem; deve dominar a técnica de uso da tecnologia de comunicação; deve conhecer profundamente os conteúdos do conhecimento que irá ensinar/repassar; deve saber utilizar como ninguém os instrumentos de avaliação e sua aplicação de forma adequada ao aprendizado e, se necessário, deve conhecer até a legislação que rege o seu trabalho. Deve buscar ser um artificie, executando cada gesto, cada obra como se fosse única e junto com seus instrumentos de trabalho, buscar com toda a atenção e foco alcançar o seu objetivo-alvo, construindo a sua obra. O “professor artificie” é aquele que aperfeiçoa constantemente na sua profissão e, por mais contrário possa parecer, é também um eterno aprendiz. O lema do mais famoso professor do Ocidente é justamente este: o que sei é que nada sei.

            O segundo aspecto está ligado ao aluno (aprendiz), aquele que deve conhecer as suas necessidades de aprendizagem; suas limitações; ter um objetivo de aprendizagem a ser alcançado no tempo; ter foco no que faz e, sobretudo, saber exatamente sobre os esforços a ser empreendidos na jornada do conhecimento. Na relação entre mestre e aprendiz, é deste último o esforço maior a ser empreendido na busca do conhecimento.

            É do encontro entre estes dois – mestre e aprendiz – e da relação que conseguem estabelecer que deriva toda a evolução da Humanidade (não é exagero). Quanto mais consciência de suas características de artíficie o professor tem; quanto mais consciência de sua característica de aprendiz o aluno tem; mais amplo e mais leve a trajetória até o alvo, mais qualidade teremos na educação.

            Leitores dirão: como ser um artificie no mundo da produção em massa? Respondo. Estou falando de uma visão de mundo, de uma postura que deve permanecer mesmo que à sua frente estejam dez ou sessenta alunos, ou cento e vinte alunos como no caso dos cursos pré-Enem ou nos cursos Pré-Enade. Estou falando de algo que é individual, pessoal e intransferível, que habita o mundo interior, aquele com que fomos tocados pela luz divina a nos dizer que seríamos professor e não jogador de tênis ou futebol. Portanto, é possível.

            Finalmente, chamo a atenção para algo que no dia a dia nos passa despercebido. No final das contas, o que separa o mestre do aprendiz é o tempo. Cronologicamente o aprendiz de hoje será o mestre de amanhã. Nosso aluno de hoje se tiver dentro dele a visão do artificie do seu conhecimento, tornar-se-á no futuro, um mestre em sua área de atuação.  Ser artificie é a característica final e evolutiva do mestre. Na educação, o artificie é aquele professor que além de dominar os aspectos técnicos de sua profissão, é capaz de construir a integração ao aprendiz de tal jeito que formam um conjunto indissociável na jornada do conhecimento, capaz de formar futuro mestres.

* Dênio Mágno da Cunha, Doutor em Educação pela Universidade de Sorocaba, professor em Carta Consulta e Una.

 


[i] Lembro-me de um autor que se especializou em desenvolver estudos: Czerny que era muito utilizado por minha mãe. 

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