23/02/2017

NOTAS SOBRE O TRABALHO E A EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS A PARTIR DA CONTRIBUIÇÃO MARXISTA

Vanessa Gonçalves Dias[1]

Dynara Martinez Silveira[2]

Resumo: O presente artigo parte de reflexões e debates mais amplos realizados na disciplina: Seminário de Pesquisa I no curso de Pós-Graduação em Educação – PPGedu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Caracteriza-se enquanto um estudo teórico, exclusivamente bibliográfico, sua perspectiva teórico-metodológica de abordagem da realidade é o materialismo histórico dialético, tendo como base os autores: (KOSIK, 1995; FRIGOTTO, 2000; TRIVIÑOS, 1987). E tem como objetivo central, a partir da reconstituição dos escritos de Marx (1978; 2002; 2004), Manacorda (1991; 2006) e Nosella (2003) sobre a educação, destacar contribuições dos autores para re-pensar a educação infantil e suas correlações com a categoria trabalho[3] na atualidade.

Palavras–Chave: Trabalho e Educação, Educação Infantil, Marxismo.

Resumen: Este artículo presenta reflexiones y discusiones más amplias sobre el tema: Seminario de Investigación I en el curso de la Educación de Postgrado - PPGEDU la Universidad Federal de Rio Grande do Sul - UFRGS. Se caracteriza por ser un estudio teórico, solamente la literatura, su punto de vista teórico y metodológico del enfoque de la realidad es el materialismo histórico dialéctico, basado en los autores: (Kosik, 1995; Frigotto, 2000; Triviños, 1987). Y tenía como objetivo, a partir de la reconstrucción de los escritos de Marx (1978; 2002; 2004), Manacorda (1991; 2006) y Nosella (2003) sobre la educación, destacando las contribuciones de los autores para volver a pensar la educación y de los niños de su correlaciones con la categoría de trabajo hoy en día.

Palabras-Clave: trabajo y educación, educación de la primera infancia, marxismo .

Introdução

O trabalho está na base da atividade econômica, que, sob o modo de produção capitalista[4], é criador de valores de troca e constitui exploração e alienação. E ele está para além da economia política, que é o intercâmbio orgânico entre o ser social e a natureza, com o fim último de produção de valores de uso para satisfação de necessidades sociais. Assim, para Marx, o trabalho tinha somente uma centralidade no sentido ontológico, mas na sociedade capitalista ele tem uma centralidade política. Logo, a concepção de trabalho que norteia esse estudo está centrada na formulação marxista do trabalho como princípio educativo.

Tumolo (2005) salienta em seus escritos que entre as décadas e 1980 e 1990, no Brasil, o “trabalho como princípio educativo” foi um tema recorrente entre pensadores que se amparavam num referencial teórico-político marxista, com enfoque gramsciano e provenientes do campo de conhecimento “trabalho e educação”. Mesmo com oscilações quanto à discussão e importância, academicamente falando, o tema se revitalizou quando passou a se estabelecer como base de propostas de educação tanto do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) quanto da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Movimentos sociais que ocupam um lugar de destaque no atual panorama político, e se almejam propostas educacionais inovadoras e progressistas.

Nesse sentido Frigotto (2005), aponta que tomar o trabalho como princípio educativo é considerar que por meio dele, desde a infância, os seres humanos socializam suas experiências na busca de suprir as suas necessidades físico-biológicas e sociais para viverem em harmonia com os seus pares e a natureza. O trabalho tem uma dimensão ontocriativa, pois é através dele, mediado pelo conhecimento, ciência e tecnologia, que os seres humanos criam, recriam sua própria existência, transformando a natureza para prover sua sobrevivência.

Nesta perspectiva defendemos que o processo de conhecimento deve ser formado na vida prática, das crianças agindo, pensando sobre a sociedade em que está inserida, logo, construir e potencializar o desenvolvimento omnilateral das/nas crianças pequenas, requer como tarefas a de identificação dos elementos culturais e objetivos do mundo do trabalho que devem ser apropriados pela criança em todo seus processos de aprendizagem, a partir da relação trabalho e educação.

Desta maneira, para compreendermos de forma mais profunda algumas das categorias e discussões levantadas por Karl Marx em um primeiro momento o artigo parte da obra de Leandro Konder (1999), para adentrar excertos da vida e obra deste autor. Que pouco ou nada escreveu sobre a infância, sobre a educação da infância. Contudo tentaremos identificar em seu legado, em parte de sua história principalmente por o que poderá vir a contribuir para qualificar a educação das crianças pequenas ou mesmo pensar em uma Educação Infantil na perspectiva marxista a partir da categoria trabalho.

E por fim, considerações e reflexões sobre a educação das crianças a partir dos delineamentos sobre trabalho e educação a partir das obras de Marx e Engels (1978; 2002; 2004), Manacorda (1991; 2006) e Nosella (2003). Salientamos que este esboço reflexivo não pretende encerrar-se aqui, tendo convicção de que tal discussão é mais ampla e profunda, logo defendemos a perspectiva de uma educação para a infância que proporcione desde tenra idade a contra internalização nos processos educativos que tenham como direcionamento a - emancipação humana.

1. Contexto acerca da vida e obra de Karl Marx

Encontramos desde a Filosofia até a Política, ideias designadas como “marxismo” que de acordo com Giannotti (2000) “são constantemente invocadas tanto por filósofo liberal e humanista quanto por tiranos”. Para além de paixões impensadas e percepções superficiais é preciso uma leitura atenta e profunda das contribuições deixadas por Karl Marx. Pensador que para além de seus manuscritos, muitos deles publicados postumamente por Friedrich Engels, amigo e companheiro, deixa como legado no decorrer da sua vida, em que deu forma às heranças recebidas das pessoas a sua volta, suas leituras e lutas.

Segundo Konder (1999), Marx nasceu em 1818, em Trèves no sul da Prússia Renana, região hoje da Alemanha Ocidental e no perímetro da França. O pequeno Marx um dos nove filhos de Hirschel e Henriette Marx, sua infância se deu em um período histórico de estagnação e conservadorismo, em que alguns países europeus mais reacionários, entre eles a Prússia, com o objetivo de aniquilar os efeitos da Revolução Francesa e da época napoleônica organizaram a Santa Aliança.

Os círculos liberais de Trèves que inicialmente apoiaram o imperador prussiano contra o regime ditatorial de Napoleão Bonaparte se decepcionaram frente a uma administração absolutista, cuja política econômica e financeira dificultou a industrialização da região. O povo, desorganizado, só conseguiu demonstrar seu descontentamento com os ecos da Revolução de 1830, através de manifestações antiprussianas.

De acordo com Konder (1999), “já aos dezessete anos Marx ao dissertar sobre “Reflexões de um jovem a propósito da escolha de uma profissão, acabou desenvolvendo duas ideias que perpassariam toda sua vida”. Ainda que com uma linguagem ingênua e romântica, a convicção nas ideias escritas jamais foi abandonada, ou seja, de que o trabalho deve ser realizado de forma eficaz a favor da humanidade e acerca das condições sociais objetivas que impedem os indivíduos de tecer seu destino.

             Marx retorna a Trèves e em segredo fica noivo de Jenny, também filha do barão Ludwig von Westphalen, preocupado com o filho o dr. Heinrich o envia para estudar em uma universidade mais séria, a de Berlim onde pairava a influência de Hegel (1770-1831), cujos discípulos se dividiam em “hegelianos de direita”, presos a sua filosofia conservadora, defendiam a ordem constituída, a defesa do Estado prussiano, quanto aos “hegelianos de esquerda” tinham como objetivo aplicar o método historicista de Hegel à análise das questões sociais, sob a influência de um professor Marx se inclinou a estes.

            Konder (1999) salienta que na perspectiva de se tornar um professor e assim se estabelecer e casar, entre os anos de 1838 a 1840 Marx se dedicou a sua tese de doutorado e ao estudo de autores como Hegel, Spinoza, Kant, Leibniz, Aristóteles e Epicuro, tendo em 1841 defendido sua tese e alcançando o diploma. No entanto, mesmo com a tese,

Marx não conseguiu resolver o seu problema pessoal, econômico. Não pôde obter a cátedra que pretendia, pois, o governo não queria hegelianos de esquerda pontificando nas universidades. E, em lugar de Marx alcançar o posto de professor universitário, como seu amigo Bruno Bauer, foi este quem perdeu o emprego. (KONDER, 1999, p. 22)

Diante da impossibilidade de se voltar a carreira universitária, segundo Konder (1999) ele se voltou aos jornais, através de publicações conseguiu expor suas ideias, alguns artigos foram censurados e publicados em outros meios como revistas, Marx era contra ao fato da imprensa virar uma indústria, para ele de acordo com Konder (1999, p. 24), “uma vez que a imprensa se deixasse comercializar, perderia sua capacidade de informar com objetividade e criticar com independência, tornando-se impotente para combater a censura como instituição”.

Konder (1999) lembra que Marx teve durante boa parte da sua vida um grande amigo, Friedrich Engels, nascido em 1820, filho de um industrial rico, religioso, conservador. Começou a publicar artigos de conteúdo liberal e democrático em contradição aos pontos de vista do seu pai. Engels conheceu Marx em 1842, mas a amizade se efetivou em 1844, depois que redigiu “A situação das classes trabalhadoras na Inglaterra”, com base em sua colaboração junto aos negócios de seu pai. Quando chegou a Paris Marx se interessou por suas informações e experiências, dando início a uma sólida parceria de amizade e inúmeros trabalhos.

Com base nos escritos de Konder (1999) podemos fazer um breve relato sobre a vida de Marx que em 1843 casou com Jenny von Westphalen, com quem em 1847 já tinha três filhos: Jenny, Laura e Edgar. Em 1849 deixou Paris e foi para Londres com a família, suas vidas foram marcadas por infortúnios, privações e até mesmo a miséria o que levou a morte outros dois filhos que nasceram neste período e sobreviveram cerca de um ano cada.

Foi à frente da Gazeta Renana que Marx saiu em defesa dos camponeses do sul do Reno que diante da miséria vivida roubavam madeira, sendo punidos por isso, sem que o problema fosse efetivamente solucionado, afinal prevalecia o interesse dos grandes proprietários, o que levou Marx a constatar que as questões sociais não podem ser deliberadas por meios jurídicos, assim,

pouco a pouco, o que para Marx parecia dever ser uma revolução política, reclamando uma reorganização do Estado, transformou-se na ideia de uma revolução social, que deveria modificar a própria estrutura da sociedade como um todo. (GIANNOTTI, 2000, p. X)

Em Segundo Konder (1999) em meados de 1843, após o fechamento da “Gazeta Renana”, Marx e a esposa se mudaram para Paris onde seriam editados os “Anais Franco-Alemães”, nesta época cresceu seu interesse pelos problemas políticos, o que o levou a leituras de Rousseau, Montesquieu e Maquiavel. Marx sentiu necessidade de retificar a dialética idealista de Hegel com o materialismo de Feuerbach, se bem que este tinha uma visão contemplativa e não ativa da política, e para que a filosofia se realize deve estar aliada a política.

Mas, foi somente em Paris que se deu seu contato com os operários do movimento socialista que de forma coletiva estavam voltados à luta política pela transformação da sociedade, o que veio profundamente lhe impressionar. Ao escrever uma crítica à Hegel conhecida por “Introdução à crítica da filosofia do direito”, Marx deixou claro que a teoria deste sobre o direito era inocente, pois não induziria à superação real dos problemas humanos, já que não indicavam os meios práticos, materiais e sociais para tanto.

Ainda Marx, de acordo com Konder (1999) sustentava que apenas as massas proletárias poderiam transformar a ordem social, econômica e jurídica, sendo os proletários a arma material da filosofia, que pode combater a sociedade como a encontramos hoje, fazendo prevalecer o ideal de humanismo de forma prática e social. Além da crítica feita à Hegel, os “Anais Franco-Alemães”, continha outro texto sob a autoria de Marx, neste ele expôs sua opinião sobre a questão judia escrita por Bruno Bauer, em que este conceituava os judeus como egoístas, por lutarem apenas por sua liberdade religiosa, em vez de lutar de forma generalizada pela liberdade política do gênero humano.

            Konder (1999) traz que para Marx as religiões são reflexos da sociedade que está dividida em classes, que nada contribuem no combate a “exploração do homem pelo homem”, as religiões servem como ópio, pois frente a sua impotência em liderar a luta pela transformação do mundo, e pela superação das instituições fundamentadas na propriedade privada, só lhes resta pregar entre o povo o conformismo e a resignação.

            A natureza segundo Konder (1999) dita aos animais o comportamento para sua sobrevivência, assim estes trabalham e produzem para atender de forma direta suas exigências materiais. O que não acontece no caso do homem que conseguiu, de certa forma, dominá-la através do seu trabalho, ou seja, colocou a natureza a seu serviço e a modificará conforme suas vontades e possibilidades, pois para Konder (1999, p. 33), “antes de realizar o seu trabalho, o homem é capaz de projetá-lo, ou seja, é capaz de figurar na sua cabeça diversos caminhos possíveis para alcançar o seu objetivo, escolher livremente o caminho que lhe parecer melhor e procurar segui-lo”.

Contudo, Konder (1999) ao retomar o pensamento de Marx, destaca que o homem por não reconhecer o produto do seu trabalho como sendo fruto de sua atividade criadora, é algo sem utilidade, estranho. Assim, não pertence ao trabalhador, mas a outro homem, o capitalista. Proprietário da indústria, do meio de produção, ele compra de forma vantajosa a força de trabalho do operário que tem urgência, pois, precisa comer.

Marx considera isso “alienação do trabalho”, para Konder (1999, p. 35), esse é o “fenômeno pelo qual o trabalhador, desenvolvendo a sua atividade criadora em condições que lhe são impostas pela divisão da sociedade em classes, é sacrificado ao produto do trabalho”. Assim, é o mercado capitalista que dita regras, cabendo aos produtores se submeterem às reivindicações do produto. Para o próprio Marx (1985, p. 22),

a alienação aparece tanto no fato de que meu meio de vida é de outro, que meu desejo é a posse inacessível de outro, como no fato de que cada coisa é outra que ela mesma, que minha atividade é outra coisa, e que, finalmente (e isto é válido também para o capitalista), domina em geral o poder desumano.

Deste modo, é na vida prática que os operários aprendem que o mundo pode ser mudado, e frente à ampla participação das massas populares essa transformação se efetiva frente às ações históricas, Marx de acordo com Konder (1999, p. 48), “assinalou que os filósofos materialistas do passado estavam no bom caminho quando chamavam a atenção da humanidade para a importância das circunstâncias exteriores e para o papel do educador que a vida prática tem para os indivíduos”. Foram os materialistas que introduziram o socialismo, uma concepção capaz de atender os anseios das massas populares, assim, é preciso formar circunstâncias humanamente, para que o homem possa se formar destas.

De acordo com Konder (1999, p. 54), “com a exploração do trabalho escravo, apareceram a primeira forma de propriedade privada de uma fonte de produção”. “Divisão social do trabalho” e “propriedade privada” são termos cunhados por Marx e Engels e que está diretamente ligada a escravidão e a seu produto. Com a divisão de classes, não há a possibilidade de um ponto de vista universal, passando a existir pontos de vista particulares, principalmente o das classes dominantes que,

ao governar a sociedade dividida, utilizam o aparelho do Estado para inculcar nos indivíduos das classes exploradas a ideologia que serve para justificar a exploração. Ou, no melhor dos casos, a ideologia que prejudica qualquer ação eficaz contra o sistema que convém aos explorados. “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes. Ou, dito em outros termos, a classe que exerce o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante.”. (KONDER, 1999, p. 54-5)

Konder (1999) considera que Marx foi um grande estudioso, mesmo frente às diferentes intempéries pelas quais passou na sua vida adulta, nunca deixou de ler e se dedicar aos estudos, como da economia, organização bancária, crédito, entre outros que exigia dele uma complementação, neste caso, considerar os problemas humanos mais amplos. Método marxista da história que ficou conhecido como “materialismo histórico”, desta forma,

é possível ter uma compreensão científica das grandes mudanças sociais sem ir à raiz dessas mudanças, isto é, sem chegar às causas econômicas que, em última instância as determinam. Daí que um marxista, quando se dispõe a analisar um determinado período histórico, procure sempre dispor das mais completas e seguras informações acerca da situação econômica e de suas transformações no período a ser analisado. (KONDER, 1999, p. 80)

Salienta Konder (1999) que Marx não restringia seus estudos a economia e a análise política, se estendia em diferentes direções, assim desenvolvia e aumentava seu conhecimento. Marx nos “Manuscritos de 1844” expos reflexões sobre a arte ser educadora dos sentidos, uma atividade humanizadora, no entanto, para que a produção artística seja avaliada devem ser consideradas as condições históricas em que ela se dá.

2. Aproximações de Marx com a Educação Infantil na relação: trabalho e educação

                Foi durante a efervescência das transformações sociais, instituídas a partir do modo de produção capitalista, particularmente a partir do fim do século XVIII na Inglaterra, denominado como Revolução Industrial, que Marx e Engels buscaram demonstrar ampliação da exploração da mão-de-obra feminina e principalmente infantil nas fábricas. Os autores demonstram a constante preocupação em romper com a separação entre formação manual e formação intelectual, contribuindo assim para que a formação da classe trabalhadora avance no sentido de construção de um novo projeto de sociedade – emancipação humana.

         Deste modo, homens, mulheres e crianças, expulsos da terra, se ajuntavam na periferia das cidades e, para sobreviverem, vendiam sua força de trabalho nas manufaturas e nas primeiras indústrias. Segundo Nosella (2003), trata-se do fenômeno posteriormente chamado por Marx de “acumulação primitiva” do capital, quando nem sequer a escravidão de homens e crianças era poupada, tanto em alguns países europeus, quanto nas colônias: “A maquinaria recentemente inventada foi utilizada em grandes fábricas, à margem de correntes de água capazes de fazerem funcionar a roda hidráulica. Milhares de braços tornaram-se de súbito necessários [...]. Nesses lugares procuravam-se principalmente dedos pequenos e ágeis.

         Era interesse desses feitores de escravos fazerem as crianças trabalhar o máximo possível, pois sua remuneração era proporcional à quantidade de trabalho que delas podiam extrair (Marx, 2002). De certa forma, a importante função que a criança exerce na inicial acumulação do capital faz com que a sociedade, pela primeira vez na história, a tome a sério, mesmo que fosse, infelizmente, para explorá-la como força produtiva barata. Segundo NOSELLA (2003, p. 10)

Ao ler a obra de Philippe Ariés, História Social da Criança (1978), entende-se perfeitamente esse tipo de afirmação. Aprende-se aí que, nas sociedades pré-industriais, a criança era apenas uma possibilidade (remota) de um dia ser um adulto e um cidadão, com nome próprio e identidade individual de cidadão. A criança, naquelas sociedades, não representava ainda uma subjetividade social. Só quando a criança se tornou força de trabalho interessante para o capital, começou a ser contemplada pela legislação de forma autônoma de sua família.

            Assim, a questão da guarda e da educação das crianças tornou-se assunto principal no debate político, na legislação social e nas reformas escolares desde o final do século XVIII. Nas grandes cidades europeias da época, criaram-se “refúgios” onde as crianças eram guardadas enquanto seus pais trabalhavam. Em seguida, surgiram organizações com o objetivo de “cuidar” das crianças lactentes cujas mães trabalhavam fora de casa.

            Conforme aponta NOSELLA (2003, p. 13):

As primeiras creches urbanas da França e da Inglaterra do final do século XVII eram, naturalmente, caracterizadas pelo assistencialismo, “visavam afastar as crianças pobres do trabalho servil que o sistema capitalista em expansão lhes impunha, além de servirem como guardiãs de crianças órfãs e filhas de trabalhadores”. Marco histórico importante, em 1774, surgiu a primeira escola para crianças de dois a seis anos, organizada por João Frederico Oberlin, chamada de Ecóles à Tricoter. Eram escolas que abrigavam também filhos de operários.

             Já na obra o Manifesto do Partido Comunista (1848), estão expressas as ideias de Marx e Engels sobre educação: “Educação pública e gratuita de todas as crianças. Abolição do trabalho das crianças nas fábricas na forma atual. Unificação da instrução com a produção material, etc.” (Marx; Engels, 2006, p. 61).  De acordo com Manacorda (1991), “no Manifesto, os autores assumem princípios burgueses do campo da educação, como: universalidade, estatalidade, gratuidade, trabalho. No entanto, a proposta já apresenta caráter socialista, devido ao anúncio, mesmo que tímido, da união da instrução com o trabalho”.

            Nesta contenda não podemos esquecer como aponta Nosella (2003), durante toda a metade do século XIX, Friedrich Froebel difundiu os jardins-de-infância nas favelas alemãs, ao redor de Berlim, e escreveu textos sobre educação infantil, “As famílias educadoras”. Ou seja, quando Marx e Engels criticavam a família e a escola burguesas, por elas não entenderem historicamente a evolução das forças produtivas e seus inexoráveis, mas revolucionários, reflexos na educação. Ainda, conforme NOSELLA (2003, p. 18):

ou seja, enquanto os programas de educação infantil de caráter assistencialista se preocupavam em criar espaços de abrigo, de cuidados, de manutenção física e de segurança contra os perigos da rua e do trabalho fabril, o socialismo científico do final do século XIX encarava a grande indústria como sendo a parteira e a pedagoga do novo homem.

Em textos posteriores a concepção de instrução de Marx e Engels é apresentada de forma mais explícita e aprofundada nas Instruções aos delegados ao I Congresso da Internacional dos Trabalhadores, realizado em Genebra em setembro de 1866. Nesse documento, Marx afirma que cada um deve participar do trabalho produtivo a partir dos nove anos de idade, dentro do limite de sua força física, e trabalhar não somente com o cérebro, mas também com as mãos.

Sua proposta divide em três categorias a educação das crianças e dos jovens trabalhadores.  Cada categoria compreende três grupos: o primeiro de 9 aos 12 anos, o segundo de 13 aos 15 anos e o terceiro de 16 aos 17 anos; distribuídos em horários diários de trabalho na fábrica ou no domicílio compreendendo 2, 4, 6 horas, respectivamente. Marx considera três momentos que devem configurar a educação da classe trabalhadora: educação mental; educação física; educação tecnológica. Segundo o autor

Por educação entendemos três coisas:

1.Educação intelectual.

2.Educação corporal, tal como a que se consegue com os exercícios de ginástica e militares.

3. Educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e de caráter científico de todo processo de produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos das indústrias.

À divisão das crianças e adolescentes em três categorias, de nove a dezoito anos, deve corresponder um curso graduado e progressivo para sua educação intelectual, corporal e politécnica. Os gastos com tais escolas politécnicas serão parcialmente cobertos com a venda de seus próprios produtos.

Esta combinação trabalho produtivo pago com educação intelectual, os exercícios corporais e formação politécnica elevará a classe operária acima dos níveis das classes burguesas e aristocrática. (MARX; ENGELS apud MANACORDA, 2006).

            Pode-se verificar que a proposta socialista de educação se propõe a contribuir para a formação de um novo homem – o homem omnilateral em oposição à unilateralidade burguesa. Trata-se de uma educação que deve propiciar aos homens um desenvolvimento integral de todas as suas potencialidades. Para tanto, essa educação deve fazer a combinação da educação intelectual com a produção material, da instrução com os exercícios físicos e destes com o trabalho produtivo.

Dessa maneira, assim como os apontamentos de Marx e Engels, entendemos que seja preciso uma educação rica em interações que venha a se dar com o envolvimento nas mudanças societárias por parte dos indivíduos, o que para Mészáros (2008, p. 96), “seria uma interação social plena de significado, fundada na reciprocidade mutuamente benéfica entre os indivíduos sociais e sua sociedade”. Beneficamente tal reciprocidade entre indivíduos e sociedade, pode atingir e transformar as práticas econômicas dominantes de forma qualitativamente diferente. 

Nesse sentido contra hegemonicamente, os Sem Terra são importante referência na construção de novas formas de conviver e viver nos assentamentos, em comunidades no campo, onde o que predomina é o interesse e o bem-estar de todos, do coletivo contrariando a forma dominante capitalista. Mesmo na educação das crianças difundida pelas práticas das Cirandas Infantis e Escolas Itinerantes, a intenção é envolver a vida como um todo, de forma ampla e compartilhada com o coletivo.

Devemos ter clareza, no entanto que há uma ligação profunda entre os processos educacionais e sociais de reprodução. Segundo Mészáros (2008) para que incida uma transformação do quadro social, é imprescindível uma reformulação da educação para que esta cumpra sua função de mudança vital e histórica. Frente à alternativa hegemônica que está posta entre o capital e o trabalho, qualquer utopia educacional por mais nobre que fosse, permaneceu dentro dos limites da perpetuação do domínio do capital.

Sublinhamos que a maior parte do processo de aprendizagem acontece fora dos limites das instituições formais. É um processo contínuo de aprendizagem que se dará em diferentes momentos de nossa formação e que são reavaliados ao longo da vida contribuindo na formação da personalidade. Isso porque se dependesse só da educação formal, o indivíduo seria induzido ao conformismo acentuado por diferentes formas de internalização, levando segundo a ordem estabelecida à subordinação.

Aqui está uma grande brecha para pensarmos as possibilidades de relação do trabalho e educação na educação infantil, a partir da perspectiva do trabalho enquanto princípio educativo, os processos educativos na atualidade, necessitam de experiências e formação ligadas à formação integral dos seres humanos, o que pode ser traduzido em uma consciência crítica que proporcione uma educação contextualizada, participativa, de preparo para a convivência numa sociedade democrática e não uma educação voltada para a venda da força de trabalho e de obediência cega aos ditames da sociedade classista, ou ingênua como a que vem sendo desenvolvida no contexto das escolas públicas brasileiras.

Considerações Finais

            Pensamos que as escritas de Marx e Engels sobre educação foram a base e o ponto de partida construção da educação socialista, que contribuiu fundamentalmente para a construção de um novo homem e uma nova mulher em outra sociabilidade societária. E ainda, as escritas suscitam questões fundamentais para refletir a realidade educacional na contemporaneidade. Do ponto de vista prático as dificuldades se elevam, com a expansão do ensino público, a separação do ensino com o trabalho produtivo, com os modos desenvolvidos pelo Estado de controle da educação, etc.

            Do ponto de vista teórico, as obras nos permitem refletir sobre acerca da necessidade de novas articulações e aproximações da concepção de trabalho enquanto princípio educativo com a educação das crianças pequenas. Assim, cabe a educação, formal ou informal, incentivar às crianças desde pequenas a pensarem, questionarem a ideologia que pretende perpetuar a exploração, pois só assim será possível transpor a consciência ideológica que está ligada a divisão de classes, quando junto às crianças desenvolvermos uma consciência ampliada, que sirva de contra internalização da lógica formal.

Referências Bibliográficas:

BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LDB 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

GIANNOTTI, José Arthur. Marx: Vida e Obra. 2000.

KONDER, Leandro. Marx: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

FRIGOTTO, G. O enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional. In: FAZENDA, Ivani (org.). Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 2000. p. 71-90.

KOSIK, K. Dialética do concreto. 2 eds. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1995.

MARX, K., ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004.

_____________________. Crítica da Educação e do ensino. Introdução, tradução e notas de Roger Dangeville. Paris: Maspero, 1978.

MARX, K. Capítulo XIII: A maquinaria e a indústria moderna. In. O Capital: crítica economia política. Livro 1, V.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

MARX. K. “Instrução aos delegados do Conselho Central Provisório” In: MARX e ENGELS. Textos sobre educação e ensino. São Paulo, Centauro, 2004.

MANACORDA, Mário Aligliero. História da educação: a Antiguidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 2006.

MÉSZÁROS, István; A Educação Para Além Do Capital. São Paulo: Boitempo, 2008.

NOSELLA, Paolo.  A linha vermelha do planeta infância. Especial para Gramsci e o Brasil. Ano, 2003.

MÉSZÁROS, István; A Educação Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2008.

TRIVIÑOS, A. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1987.

TUMOLO, P. S. O trabalho na forma social do capital e o trabalho como princípio educativo: uma articulação possível? Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 90, p. 239-265, 2005.

 


[1] Doutoranda em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul /UFRGS, Faculdade de Educação - FACED, Porto Alegre - RS.

[2] Doutoranda em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul /UFRGS, Faculdade de Educação - FACED, Porto Alegre - RS.

[3] A concepção de trabalho que norteia esse estudo está centrada na formulação marxista do trabalho como princípio educativo.

[4] Segundo José Paulo Netto (2008), o Modo de Produção é determinado pela articulação entre as relações de produção e as forças produtivas, ou seja, a articulação entre as relações sociais que se desenvolvem em função da produção material da vida, e os três elementos que se configuram como forças produtivas: a) os meios de trabalho: aquilo de que se vale o ser social para trabalhar, como instrumentos, ferramentas, máquinas, instalações, além da terra; b) os objetos do trabalho: aquilo sobre o que incide o trabalho do ser social, que se constitui em natureza bruta ou em natureza modificada pela ação humana; e c) a força de trabalho: a energia do ser social que, utilizando os meios de trabalho, transforma os objetos do trabalho para satisfação das necessidades humanas. O modo de produção, assim, é a forma geral como o sistema social de uma determinada época se organiza.

 

 

Assine

Assine gratuitamente nossa revista e receba por email as novidades semanais.

×
Assine

Está com alguma dúvida? Quer fazer alguma sugestão para nós? Então, fale conosco pelo formulário abaixo.

×