01/10/2021

Notas sobre a noção de Gestão Educacional

Nas poucas linhas que seguem tenho por objetivo apresentar e problematizar alguns enunciados do campo da gestão educacional tendo em vista a natureza da instituição que se quer gerir: a escola – compreendia no sentido amplo de instituição de ensino. Minha alegação é que toda teorização sobre gestão educacional/escolar, de fundamentação sociológica ou administrativa, não pode perder de vista o que é próprio da escola, isto é, aquilo que a torna uma instituição ímpar e a justifica.

Heloísa Lück (2007) apresenta a concepção de Gestão educacional nos termos de uma quebra de paradigma, como uma forma de conduzir e organizar as instituições de ensino que supera a noção de administração educacional/escolar. A noção de administração é fortemente caracterizada pela centralização da autoridade e poder decisório. Ela é racionalizada e mecanicista. Isso significa que a leitura administrativa da realidade é estática e, portanto, previsível: “O ato de administrar corresponderia a comandar e controlar, mediante uma visão objetiva de quem atua sobre a realidade, de maneira distanciada e objetiva, tendo por base uma série de pressupostos (...)” (LÜCK, 2007, p. 58).

As características administrativas de organização de uma instituição podem ser melhor exemplificadas e fundamentadas pelas teorias produtivistas de Frederick Winslow Taylor e Henry Ford. Conforme Pinto (2013), por meio da proposta que denominou administração científica, Taylor busca centralizar na gerencia da fábrica os conhecimentos necessários para o controle do trabalho fabril a fim de maximizar a produção. Mais tarde, Ford se vale da teorização de Taylor para montar sua fábrica de carros, minimizando os gastos de produção a partir da maximização do tempo de produção em um sistema de esteiras, onde cada trabalhador exercia monotonamente e o dia todo uma mesma e única função/movimento. Assim, assistimos o deslocamento do domínio técnico de produção das mãos dos artesãos – antigos produtores da era medieval – para a gerência da fábrica. Isso possibilitou ao trabalho fabril a produção em massa de seus produtos, os indivíduos já não eram fundamentais para a produção, podendo ser facilmente substituídos por outro que recebendo um treinamento rápido seria capaz de exercer a mesma função, e assim adentramos a era da especialização.

Por outro lado, conforme Lück, a noção de gestão é assentada nos ideais democráticos de participação e tomada de decisão em conjunto nos processos que permeiam a condução e organização das instituições de ensino, isto porque a gestão educacional “(...) pressupõe um entendimento diferente da realidade, dos elementos envolvidos em uma ação e das próprias pessoas em seu contexto; abrange uma série de concepções, tendo como foco a interatividade social, não considerados pelo conceito de administração, e portanto, superando-a” (LÜCK, 2007, p. 55). No livro Concepções e processos democráticos de gestão educacional, Heloísa Lück analisa as práticas da gestão educacional à luz de três concepções: descentralização, democratização e autonomia, demonstrando o sentido da gestão educacional e as possibilidades de participação nos processos e afazeres das instituições de ensino. Alguns mecanismos apontados pela autora para efetivar tais concepções no cotidiano da vida escolar são: a formação de órgãos colegiados, eleição dos diretores, elaboração do projeto político-pedagógico da escola, clube de pais e mestres, entre outros.

A possibilidade de pensar a intervenção na organização educacional pressupõe o entendimento de que a escola de hoje não existiu desde sempre, que ela não é estática e incontingente. O próximo passo na reflexão é ter evidente a seguinte premissa: espaços de ensino são lugares produzidos, construídos, fabricados pelo humano em um determinado tempo e com um objetivo. A despeito das organizações fabris, a escola – como lugar de formação ampla de sujeitos – não possui, ou não deveria possuir, um proprietário que injeta nela sua intencionalidade. Escolas são de domínio público, uma instituição coletiva presente na maioria das sociedades no mundo.

Nesse sentido, converso com o exposto no texto A cultura organizacional nas empresas e nas escolas (In: OLIVEIRA, 2005), onde as autoras oferecem uma revisão bibliográfica acerca do conceito de cultura e como ele foi apropriado para pensar a administração das organizações, e como essa cultura organizacional adentra a escola. Conforme as autoras do texto mencionado:

As organizações, entendidas como culturas, são consideradas unidades sociais e estudadas como um sistema de valores e hábitos próprios, que peculiariza tanto seus comportamentos administrativos quanto seus significados. A perspectiva cultural procura mostrar que cada organização possui singularidade própria que a distingue das demais. (CRUZ; GARCIA; OLIVEIRA; BAHIA, 2005, p. 56)

Sendo a organização um fenômeno cultural, e a cultura nacional um fator que delineia o caráter da organização, existem variações nacionais nas organizações dos diferentes países; no âmbito dos padrões de cultura corporativa podem ser percebidas subculturas, entre e dentro das organizações (MORGAN, 1996). Assim, técnicas gerenciais podem ser aplicadas universalmente, com consequências objetivas, que independem da sociedade na qual são utilizadas. (CRUZ; GARCIA; OLIVEIRA; BAHIA, 2005, p. 57, grifo nosso).

Tenho acordo com a descrição oferecida pelas autoras acerca de organizações entendidas culturalmente, no entanto, vejo problema na conclusão que o texto traz na sequência da descrição desse cenário cultural influindo na organização da empresa. O argumento é o seguinte: as instituições são localizadas em um tempo histórico e em um espaço social específicos. Isso sinaliza ao leitor/a atento certa diversidade cultural, de práticas e valores. No entanto, disso se infere a possibilidade de universalizar certos padrões de técnicas gerenciais independentemente do contexto social em que serão utilizadas. Entendo ser essa uma pretensão perversa, colonialista e recorrente na administração da produção fabril, e seria um erro transpor essa universalização de um padrão técnico que visa uma maximização da produção para o processo de organização da educação, pois escolas – ainda que imersas na mesma sociedade e nas mesmas condições socioculturais – são substancialmente diferentes de empresas.

Ao final do texto, Cruz, Garcia, Oliveira e Bahia (2005) pontuam a relevância de considerar a cultura organizacional nas reflexões sobre gestão escolar visto que guarda em si pontos positivos, que são aqueles advindos daquilo que chamei anteriormente de descrição do cenário cultural em que as organizações se inserem, segundo elas:

[...] a abordagem da cultura organizacional vem se intensificando, nos últimos anos. Esse fato pode ser explicado devido aos pontos positivos que ela apresenta: visualização da escola como espaço sociocultural, como organismo vivo e dinâmico, que não se reduz, apenas, à sua estrutura administrativo-pedagógica e/ou pedagógico-didática; percepção da escola como locus de múltiplas dimensões; [...]. (CRUZ; GARCIA; OLIVEIRA; BAHIA, 2005, p. 70).

As autoras não se furtam de problematizar e chamar a atenção do/a leitor para os perigos da transposição da cultura empresarial de padronização e universalização de técnicas de produção para a organização da escola, nas suas palavras:

Contudo, não se pode deixar de mencionar que a cultura organizacional pode ser utilizada como mecanismo de controle pelas escolas e empresas, sendo usada como estratégia de cooptação, sedução e de persuasão, que busca o consenso, a harmonia, lançando mão de técnicas de padronização, de uniformização de comportamentos, atitudes que dificultam ou inviabilizam a crítica, os questionamentos, as posições contrárias às estabelecidas. (CRUZ; GARCIA; OLIVEIRA; BAHIA, 2005, p. 71).

Ao escreverem sobre a construção da escola pública: suas finalidades sociais e políticas, organização curricular e pedagógica, Libâneo, Oliveira e Toschi (2010) consideram que a educação é uma prática ampla que permeia a vida em sociedade e reflete a contradição inerente das relações sociais. Nesse sentido, podemos dizer que a escola aparece como um campo de disputa entre os diferentes interesses que permeiam a sociedade em geral: há forças que constantemente querem dominar a escola e cooptá-la para um fim específico, essa ideia é apresentada por Masschelein e Simons (2015) em uma discussão mais ampla na obra Em defesa da escola: uma questão pública”, eles dizem que:

Domar a escola implica governar seu caráter democrático, público e renovador. Isso envolve a reapropriação ou reprivatização do tempo público, do espaço público e do “bem comum” possibilitados por ela. Talvez não devêssemos ler a história da escola como uma história de reformas e inovações, de progresso e modernização, mas como uma história de repressão; uma série de estratégias e táticas para dispersá-la, reprimi-la, coagi-la, neutralizá-la ou controlá-la. (MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M., 2015, p. 105-106).

Masschelein e Simons retomam a criação da escola na sociedade grega antiga para responderem o que constitui a quinta-essência da escola: “(...) o que, em si, a escola faz e a qual propósito serve?” (2015, p. 20). Para eles a escola é uma questão de tempo livre (skholé) para o estudo e a prática de algo do mundo – a matemática, o português, a madeira, as peças de um motor, etecetera. Tempo livre aqui é entendido como tempo não produtivo – diferente do tempo da fábrica. Esse tempo não existia naturalmente para todos, ele era privilégio do aristocrata grego que tinha o direito natural de frequentar a “classe do bom e do sábio”. É através da suspensão e da profanação que a escola cria o tempo livre e torna público para seus alunos e alunas as coisas do mundo, para que eles/as possam experimentar a sensação própria da formação, a experiência de ser capaz de algo – realizar uma operação matemática, compreender um texto filosófico, etc. Nesse sentido, a escola é democrática, pois torna de uso público os conhecimentos produzidos pela humanidade e os coloca para uso de todos e todas no espaço escolar, independente dos antecedentes socioculturais, aptidões ou talentos naturais.

Assim, a fim de salvaguardar o que é próprio do escolar, concorda-se com Libâneo, Oliveira e Toschi (2010, p.251), quando dizem que cabe aos atores que compõe a escola construí-la valendo-se do projeto político-pedagógico, instrumental de autonomia das instituições escolares regimentado em lei. Para tanto, é premente a necessidade de uma cultura de Gestão escolar, tal qual exposta por Heloísa Lück quando apresenta a concepção de Gestão Educacional pautada nas noções de autonomia das instituições de ensino e democratização e descentralização do poder de decisão nas questões próprias do escolar.

 

 

Referências

CRUZ, M. B.; GARCIA, F. C.; OLIVEIRA, M. A. M.; BAHIA, M. G. M. A Cultura organizacional nas empresas e na escola. In: OLIVEIRA, M. A. M. O. (Org.). Gestão educacional: novos olhares, novas abordagens. Petrópolis: Vozes, 2005.

LIBÂNEO, J.C.; OLIVEIRA, J.F.; TOSCHI, M.S. Educação escolar: políticas, estrutura e organização. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2010

LÜCK, H. Gestão educacional: uma questão paradigmática. 3. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. (Série de Cadernos de Gestão, vol. I).

MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução Cristina Antunes. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. (Coleção Educação: Experiência e Sentido).

PINTO, G. A. A organização do trabalho no século XX: taylorismo, fordismo e toyotismo. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

 

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