06/10/2021

Notas Acerca do Princípio da Gestão Democrática Na Condução da Educação Pública

Jonathan Dalla Vechia Bugs[1]

 

[1] Mestre em Educação e Especialista em Gestão Educacional pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: jonathandbugs@hotmail.com. Este pequeno artigo constitui um capítulo de minha monografia, pesquisa desenvolvida no âmbito do programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Gestão Educacional da Universidade Federal de Santa Maria.


Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Constituição Federal de 1998, da República Federativa do Brasil

 

Somos herdeiros de uma longa história política, de um passado marcado pela invasão e pelo genocídio dos povos nativos desta terra, de inúmeros conchavos que deram origem ao que chamamos hoje, na ciência política, de mandonismo, coronelismo, clientelismo, populismo, patrimonialismo, corrupção, grilagem. Carregarmos as marcas de um país escravista, o último da América a abolir o regime, que recebeu quase metade do contingente de africanos retirados de seus países de origem sem consentimento e, sem escrúpulos, indenizou os ex-proprietários de pessoas escravizadas a fim de amenizar os “prejuízos” que lei da abolição havia lhes causado. Passamos por golpes de Estado e por vinte e um anos (1964-1985) de Ditadura Militar. Certamente não chegamos em nossos dias ilesos, a nossa situação atual, econômica, cultural, social ou educacional, é tributária das inúmeras decisões tomadas por aqueles que exerceram o poder e nos trouxeram até aqui – aqui é o lugar dos inúmeros indicadores sociais, econômicos, culturais e educacionais que mensuram a vida no contemporâneo[1].

Seguimos sendo um país com índices significativos de injustiça e desigualdade social, inclusive com indicativos recentes de crescimento desses indicadores. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), divulgado pelo Centro de Políticas Sociais da fundação em 2019, demonstrou que tivemos um aumento gradual por dezessete trimestres consecutivos (de 2015 a 2019) nos índices de desigualdade social, causando o acréscimo de 6,27 milhões de novos pobres, resultando um total de 23,3 milhões de pessoas em situação de pobreza, vivendo com R$ 233,00 ao mês – vale ainda ressaltar que o estudo aponta quais os sujeitos sociais que mais somam nesse índice: analfabetos, mulheres e negros.[2] Notadamente, há muito ainda pelo que disputar, não só em relação a indicadores econômicos, mas também em se tratando de culturas e práticas sociais que fazem e deixam morrer determinados grupos socias: as mulheres, os/as negros/as, os/as indígenas, as pessoas em situação de rua e de pobreza extrema, a comunidade LGBTQI+ (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e transsexuais, Queers, Intersexuais e demais expressões de gênero e sexualidade). Apesar desse panorama sócio-histórico e da herança política que nos foi legada, e com ela todas as questões sociais que dela derivam, penso que a educação tem um papel – não salvacionista, porém – importante na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

É recorrente na literatura educacional, também em alguns textos de ciência política, a afirmação de que a educação cumpre um papel imprescindível na promoção da cidadania. Em uma breve pesquisa no Google (portal de buscas) encontramos a definição de cidadania centrada na ideia de condição ou dignidade da pessoa que desfruta de direitos públicos e subjetivos que garantem sua participação na vida política do Estado. A Constituição Federal de 1988, da República Federativa do Brasil, instituiu um Estado Democrático de Direito. A forma da nossa democracia é representativa e de inspiração liberal, isto quer dizer que o processo de democratização do Estado consiste em uma metodologia de formação e manutenção de governos, no nosso caso, com livre disputa partidária ao pleito eleitoral e com sufrágio universal, extensivo a todos/as os/as brasileiros e brasileiras maiores de 16 anos que têm o direito de escolher aqueles/as que decidirão os rumos do país. Dito de outra forma, formamos um governo do povo e estamos à mercê das boas ou más escolhas daqueles/as que nos representam, a possibilidade de participação direta do povo em decisões públicas é limitada, mas, teoricamente, não é inexistente.

Conforme o professor Carlos Roberto Jamil Cury (2002), a adição do adjetivo “democrático” na forma do Estado brasileiro é uma novidade da Constituição Federal de 1988; as constituições que a antecederam definiram o Estado brasileiro como um Estado de Direito apenas. Não é pouca e sem importância a diferença que o acréscimo do princípio democrático lega ao povo ao compor a definição do Estado brasileiro; Cury a explicita da seguinte maneira:

 

[...] o Estado de Direito é um Estado em que se tem a soberania da lei, a legitimidade do sistema representativo baseado no voto popular e nas regras do jogo e a defesa dos direitos subjetivos contra o poder arbitrário. [...]. O Estado Democrático de Direito é certamente a soberania da lei e do regime representativo e por isso é um Estado de Direito. Ao mesmo tempo, reconhece e inclui o poder popular como fonte do poder e da legitimidade e o considera como componente dos processos decisórios mais amplos de deliberação pública e de democratização do próprio Estado. (CURY, 2002, p. 172).

 

O princípio de Gestão Democrática do ensino público é um exemplo de expressão desse reconhecimento e inclusão da população nos processos decisórios mais amplos de deliberação pública e democratização do próprio Estado, pois conclama e lega à sociedade civil a possibilidade de participar da construção, organização e garantia da educação, inscrita na Constituição Federal de 1988, em seu ducentésimo quinto artigo, como direito público e subjetivo da população brasileira. Mas qual a razão de enunciar a educação como um direito de todos/as e conferir a ela a responsabilidade de inserção na vida pública?

Cury (2007) dirá que o direito à educação está alicerçado na existência de uma herança cultural capaz de formar os sujeitos e torná-los aptos a participar da construção e transformação da sociedade. Além disso, conforme o autor, o acesso aos saberes sistemáticos e o desenvolvimento de padrões cognitivos capacitam os sujeitos para atuarem na construção e ampliação do próprio conhecimento. Cury também afirma que o pressuposto do direito à educação é a igualdade: “Um tal bem não poderia ter uma distribuição desigual entre os iguais.” (2007, p. 486) – fazendo referência a necessidade de garantir condições iguais de acesso à educação. Encontro na filosofia da educação de Hannah Arendt, sobretudo no texto A crise na educação (1958), publicado no Brasil na coletânea Entre o passado e o futuro (2016), possibilidade de dialogar com as afirmações feitas por Cury.

 Hannah Arendt (2016) afirma que a essência – a razão de ser – da educação é a natalidade. Conforme a autora, natalidade consiste no “[...] fato de que seres nascem para o mundo.” (2016, p. 222). Trata-se de um segundo nascimento, o primeiro diz respeito a chegada biológica das novas gerações na vida, que, por sua vez, se deparam com um mundo já instituído pelas gerações que as antecederam, um mundo que lhes é sempre anterior e, portanto, desconhecido. Se é pela ação de duas pessoas que um novo ser humano é trazido à vida, é pela educação que as novas gerações têm a possibilidade da natalidade, de nascerem para o mundo, isto é, de serem apresentadas ao mundo como a possibilidade de algo novo e de se apropriarem dele como seu legado. Nas palavras de Arendt:

 

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 2016, p. 247).

 

O conceito de mundo na filosofia de Arendt diz respeito aos artifícios produzidos pelos seres humanos, os conhecimentos sistematizados, as diversas línguas e linguagens, a arte, a música, a literatura, a filosofia, as instituições e tudo o que construíram na ação entre e com seus iguais. Esse mundo que nos é comum é a herança cultural mencionada por Cury. Ao inserir a nova geração no mundo, por meio da educação, não a abandonamos a própria sorte, pois damos a ela a formação necessária para o exercício pleno da cidadania. E tampouco deixamos o mundo ruir, uma vez que as novas gerações trazem consigo a novidade e a esperança de não o esquecer ou abandoná-lo, mas de preservá-lo e renová-lo pela constante ampliação e atualização do que nos é comum, dos conhecimentos socialmente produzidos e de novas formas de ser e estar no mundo.[3]

Além de definir a educação como um direito universal e anunciar a possibilidade de participação da sociedade no incentivo e promoção da educação, a Constituição Federal de 1988 confere ao Estado e a família o dever de fazer cumprir tal direito[4]. Posto dessa forma, entende-se que a educação é incumbência do conjunto da sociedade brasileira, não só daqueles que ocupam alguma posição no governo do Estado. Assim, a questão que se coloca é saber de que maneira se efetiva tal responsabilidade. O caminho que a legislação brasileira encontrou para contemplar a questão expressa-se no princípio de gestão democrática do ensino público.

A noção de gestão é oriunda das discussões e produção do conhecimento na área da administração, no âmbito das teorias organizacionais. Com a consolidação da Revolução Industrial e do processo de urbanização, essas teorias surgiram da necessidade prática de reorganizar o modo de produção em ocasião das transformações sociais e econômicas possíveis a partir dos séculos XVIII e XIX. Nesse momento, além do surgimento da indústria, percebeu-se a necessidade de otimizar a produção nas fábricas a fim de atender a demanda de consumo, visto a ascendência de uma sociedade de massas que progressivamente adquiriu o poder de consumo sobre o produto do próprio trabalho. Nesse cenário, o trabalho ocupou lugar central na organização da sociedade e até mesmo figurou, na produção intelectual, categoria de análise das relações sociais – nas obras de Karl Marx e de Friedrich Engels, por exemplo.

Segundo Benno Sander (2005, p. 43), as teorias que compõem a denominada escola clássica de administração, protagonizadas por Frederick Winslow Taylor, Jules Henri Fayol e Max Weber, nos Estados Unidos da América, França e Alemanha, respectivamente, surgem no início do século XX e tiveram a pretensão de servir de teoria geral para a organização e condução das instituições. Nesse sentido, Sander pontua o seguinte:

 

Em muitos aspectos, no entanto, as teorias gerais de administração não resistiram ao tempo. No transcurso dos anos, a natureza do objeto governado foi definindo, com maior ou menor alcance, a própria natureza da ação administrativa. Consolidaram-se, assim, a administração empresarial, iniciada com o enfoque cientifico da teoria gerencial de Taylor, a administração industrial, concebida por Fayol, e a administração pública, protagonizada por Willoughby (1929) no contexto da ciência política. Esses desenvolvimentos deram origem ao princípio da especificidade no campo da administração. Foi à luz desse princípio que se desenvolveu, ao longo dos anos, a administração da educação, como campo de estudo e atividade profissional. (SANDER, 2005, p. 43).

 

No Brasil, segundo Sander (2005), a administração educacional surgiu como campo profissional de estudos nos anos de 1920 e 1930. Os estudiosos da época, integrantes do movimento escola nova: Anísio Teixeira, Querino Ribeiro, Carneiro Leão, Lourenço Filho, adotaram os termos administração escolar, administração do ensino ou administração educacional para nomear em seus trabalhos o processo de condução e orientação da educação pública. Essa nomenclatura se manteve hegemônica até a redemocratização do Estado nos anos de 1980, ocasião em que é possível identificar, conforme Sander (2005, p. 45), uma disputa semântica no emprego dos termos no campo da política educacional, com destaque para os termos gestão, gerência e governação. A conclusão dessa disputa é verificável na legislação brasileira: usa-se o termo gestão, acrescido do adjetivo democrática, para nomear o trabalho de condução da educação nacional.

Bobbio (1999) nos diz que na teoria política contemporânea não há uma definição unânime e substancial do que seja democracia, possibilitando diferentes compreensões, até mesmo divergentes entre si. No entanto, há duas tradições de pensamento de maior circulação que sustentam o conceito de democracia. Trata-se das teorias liberais e das teorias socialistas que hoje inspiram formas de governo. Grosso modo, e para os fins desta discussão, a democracia de inspiração liberal compreende o sufrágio universal como garantia do direito individual e o ápice da democratização do Estado, uma vez que dá ao maior número possível de pessoas o direito de escolher representantes entre si, esses formam o governo e tomam as decisões. Por outro lado, na democracia de inspiração socialista, a universalização do voto é apenas o ponto de partida da democratização do Estado. Defende-se a democracia direta como forma de ampla participação popular nos processos de construção da vida social, não restringindo a participação do povo apenas ao direito de escolher quem tomará as decisões. Nessa diferenciação reside o que Bobbio (1999, p. 328) nominou de democracia formal, compreendida enquanto método para formar governos, um governo do povo, e democracia substancial, compreendida como valor, ação direta de governo pelo povo.

A respeito da democratização da educação e ciente da polissemia que o termo democracia conduz, Drabach (2016) discorre do ponto de vista histórico sobre o contexto do qual emerge o princípio de gestão democrática a fim de refletir sobre seu significado, de acordo com os grupos sociais que o reivindicaram. Segundo a autora, no contexto de construção da Constituição Federal de 1988, houve disputa de projetos para a educação nacional entre progressistas e conservadores; os primeiros identificavam-se com a proposta do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, enquanto os conservadores representavam os interesses do setor privado de ensino:

 

Inicialmente, o princípio da gestão democrática foi apresentado pelo projeto do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública com o sentido de atribuir-se a todas as instituições de ensino, tanto públicas quanto privadas, e a todos os níveis de ensino. Esta proposição expressava o entendimento de que a formação de cidadãos para uma sociedade democrática impõe a necessidade de vivências democráticas desde o cotidiano formativo das instituições de ensino e anunciava-se através da seguinte redação: “gestão democrática do ensino, com participação de docentes, alunos, funcionários e comunidade” (ADRIÃO; CAMARGO, 2007, p. 66). Entretanto, o grupo ligado aos interesses privatistas contrapunham-se a tal formulação, no que concerne à forma de participação na gestão da escola e ao conjunto de instituições a que este princípio se aplicava, restringindo-o ao campo público estatal. A participação defendida pelos privatistas restringia-se à mera “colaboração” da comunidade escolar na execução de decisões previamente tomadas, retirando o caráter público da participação. (DRABACH, 2016, p. 280-281).

 

Essa questão resultou em um meio termo que levou em conta ambos os projetos em disputa. Dessa forma, a gestão democrática se consolidou na Constituição Federal de 1988 como princípio que orienta a condução do ensino público, não se estendendo às instituições privadas de ensino. A redação ficou a que segue: “Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: [...]; VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;” (BRASIL, 1988).  Contudo, ao analisar a produção do conhecimento em políticas e gestão da educação, Sander (2005. p. 50) afirma que a consolidação da gestão democrática na legislação marca na história brasileira uma conquista da sociedade em torno da reconstrução da democracia e de suas instituições.

O princípio de gestão democrática do ensino público é reafirmado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDBEN/96). No entanto, Paro (1998) critica a vagueza com que a Lei em questão trata da gestão democrática, pois repete em seu art. 3º, inciso VIII, a fórmula já instituída na Constituição Federal de 1988, transcrita anteriormente, isentando-se em avançar na regulamentação da gestão democrática e legando aos sistemas de ensino tal responsabilidade. Conforme Paro (1988, p. 245), os grupos organizados da sociedade civil que reivindicaram a democratização da gestão do ensino buscavam romper com as práticas hierarquizadas e autoritárias presentes nas instituições públicas, pautando a instituição e regulamentação de uma gestão escolar que pudesse ser de fato democrática, na avaliação do autor:

 

Em vez disso, ao renunciar a uma regulamentação mais precisa do princípio constitucional da “gestão democrática” do ensino básico, a LDB, além de furtar-se a avançar, desde já, na adequação de importantes aspectos da gestão escolar, como a própria reestruturação do poder  da autoridade no interior da escola, deixa também à iniciativa de estados e municípios – cujos governos poderão ou não estar articulados com interesses democráticos – a decisão de importantes aspectos da gestão, como a própria escolha dos dirigentes escolares (PARO, 1996). (PARO, 1998, p. 245).

 

Embora a expectativa de avanços em torno da gestão democrática tenha sido frustrada, no âmbito da instituição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em1996, é inegável que a referida Lei instituiu importantes elementos para a prática democrática no governo da educação pública. Atribuir aos sistemas de ensino a tarefa de regulamentar as normas da gestão do ensino é um passo, mesmo que pequeno, em direção à descentralização do poder. O art. 4º estabelece o dever do Estado para com padrões mínimos de qualidade do ensino público, enquanto que em seu art. 25 diz da responsabilidade e direito dos sistemas de ensino em exigi-los; na avaliação de Paro (1998, p. 245) esse dispositivo diz respeito a gestão democrática na medida em que nutre os sistemas de ensino e as escolas do poder de reivindicar a garantia e adequação de recursos necessários “[...] para dar conta dos objetivos da escola pública.”. O art. 15 assegura às escolas progressivos graus de autonomia pedagógica, administrativa e financeira, observando, claro, a legislação vigente para cada aspecto mencionado; a respeito da autonomia escolar, Paro (1998, p. 247) faz duas ressalvas, a primeira alertando para que não se confunda a descentralização do poder, quando uma pessoa jurídica transfere determinadas atribuições a outra, compartilhando assim o poder, com desconcentração, compreendida como delegação de tarefas no âmbito de uma mesma instituição, sendo possível mediante a hierarquização das funções, isto é, a autonomia escolar vem pela descentralização do poder quando o sistema de ensino (uma pessoa jurídica diversa) confere às escolas (outra pessoa jurídica) certas responsabilidades na construção do ensino.[5] A segunda ressalva diz sobre não confundir autonomia financeira com abandono do Estado, nem com privatização do ensino.

Já os art. 12, 13 e 14 estabelecem as incumbências da comunidade escolar e suas possibilidades de participação no processo de gestão do ensino público:

 

Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de:

I – elaborar e executar sua proposta pedagógica;

II – administrar seu pessoal e seus recursos materiais e financeiros;

III – assegurar o cumprimento dos dias letivos e horas-aula estabelecidas;

IV – velar pelo cumprimento do plano de trabalho de cada docente;

V – prover meios para a recuperação dos alunos de menor rendimento;

VI – articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola;

VII – informar pai e mãe, conviventes ou não com seus filhos, e, se for o caso, os responsáveis legais, sobre a frequência e rendimento dos alunos, bem como sobre a execução da proposta pedagógica da escola;

VIII – notificar ao Conselho Tutelar do Município, ao juiz competente da Comarca e ao respectivo representante do Ministério Público a relação dos alunos que apresentem quantidade de faltas acima de cinquenta por cento do percentual permitido em lei.

Art. 13. Os docentes incumbir-se-ão de:

I – participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;

II – elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;

III – zelar pela aprendizagem dos alunos;

IV – estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento;

V – ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional;

VI – colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade.

Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:

I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;

II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. (BRASIL, 1996).

 

Ao se referir aos anos de 1990, Drabach afirma que “[...] a política educacional desenvolvida em âmbito nacional neste período teve grande ênfase na gestão participativa.” (2016, p. 285), sustentada pela ideia de autonomia das instituições de ensino e descentralização do poder de decisão em nome da democratização da educação. Cabe mencionar que essa ideia de participação é problemática, pois a atuação dos sujeitos escolares no processo de autonomia de suas instituições é restrita a um conjunto de possibilidades previamente decidida no contexto mais amplo das políticas públicas educacionais, que por vezes são arbitrárias e contrárias ao interesse público. Nesse sentido, se entendemos o papel de enorme importância da educação no desenvolvimento humano e econômico das pessoas e do país, a fim de salvaguardar as instituições de ensino da ação autoritária de governos descomprometidos com os princípios de uma democracia substancial, comprometida com a soberania popular, a luta pela ampliação das possibilidades de implicação ética e política na construção da educação pública deve seguir. Além do mais, cabe mencionar a afirmação de Cury a respeito do espírito com o qual se reivindicou a democratização da educação:

 

A gestão democrática é um princípio do Estado nas políticas educacionais que espelha o próprio Estado Democrático de Direito e nele se espelha postulando a presença dos cidadãos no processo e no produto de políticas dos governos. Os cidadãos querem mais do que serem executores de políticas, querem serem ouvidos e ter presença em arenas públicas de elaboração e nos momentos de tomada de decisão. Trata-se de democratizar a própria democracia. (CURY, 2002, p. 172).

 

No livro Un mundo común (2013), Marina Garcés, professora e filósofa espanhola, opera um diagnóstico do tempo presente ao refletir sobre a ideia de mundo comum. No que diz respeito ao modo como o sistema de poder político contemporâneo tem organizado a nossa relação ético-política com a realidade da qual fazemos parte, sobretudo nas democracias representativas, Gárces diz o seguinte:

 

En muchos casos, se nos oferecen tempos y espacios para la elección y la participación que anulan nuestra possibilidad de implicación y que nos ofrecen un lugar cada uno que no altere el mapa general de la realidad. Como electores, como consumidores, como público inclusivo interactivo [...]. Lo que se nos oferece así es um mapa de opiciones, no de posiciones. Um mapa de posibles com las cordenadas ya fijadas. Tratar lo real com honestidade significa entrar en escena no para participar de ella y escoger alguno de sus posibles, sino para tomar posición y violentar, junto a otros, la validez de sus coordenadas. (2013, p. 71).

 

Nesse sentido, implicação vai além da participação na medida em que exige dos sujeitos que se coloquem nas situações vivenciadas não apenas para escolher entre um conjunto de possibilidades disponíveis, mas que o façam de modo a criar outras possibilidades na construção e relação com a realidade da qual fazem parte. Embora a atuação dos sujeitos escolares na construção de suas realidades de ensino seja limitada pela normatividade das políticas educacionais que regulam a gestão democrática, ela também é tornada possível por essas mesmas normas. Todavia, conforme Drabach (2016, p. 284), a existência de uma norma não significa necessariamente a existência de práticas que a reflitam, daí a importância da implicação. Esquinssani e Dametto (2018) afirmam o mesmo ao comentar sobre o princípio de gestão democrática enquanto conceito:

 

Cabe ponderar que a menção do termo ‘Gestão Democrática’ não significa, necessariamente, a execução ou formalização de tal princípio. É preciso criar, identificar e fortalecer mecanismos que o acionem, bem como suportes que o garantam [...]. Admite-se, assim, que o conceito não se constitui, se sustenta ou se reduz apenas à força da sua semântica ou de sua ligação histórica com movimentos democráticos. Parte-se do pressuposto que os mecanismos de gestão são constituídos por espaços legitimados em diferentes níveis (por leis e/ou arranjos e ações organizadas), caracterizados por desenvolverem papel central nesse processo. (ESQUINSSANI; DAMETTO, 2018, p. 7).

 

Esquinssani e Dametto (2018) operam uma revisão bibliográfica acerca da produção do conhecimento em torno do princípio de gestão democrática, em ocasião dos trinta anos de sua instituição na Constituição Federal de 1988, a fim de mapear os avanços e insuficiências do mesmo. As autoras identificaram alguns consensos entre a multiplicidade de definições acerca das características e práticas do que seria uma gestão democrática. Esses consensos tratam de critérios, tais como participação, diálogo, respeito e coletividade, cujo exercício se reflete na autonomia das instituições escolares, livre organização e descentralização do poder de decisão, por exemplo. Como resultado dessa operação, Esquinssani e Dametto (2018) acentuam a ausência de uma descrição explícita na legislação nacional “[...] em direção a uma definição inequívoca do que seria a Gestão democrática e/ou de quais mecanismos a garantiriam na prática de redes e sistemas públicos de ensino.” (p. 11), isso porque, segundo as autoras:

 

[...] a discussão sobre o princípio da Gestão Democrática do ensino público ainda está bastante calcada na retórica e na retomada do conceito, autorizando conclusões ainda pouco materializáveis sobre o que constitui, no âmbito da prática, a gestão sob o adjetivo de ‘democrática’. (ESQUINSSANI; DAMETTO, 2018, p. 10).

 

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu a educação como direito público e dever do Estado, já a LDBEN/96 avançou e estabeleceu o modo como o Estado procederá no cumprimento desse dever. A legislação educacional vigente divide a tarefa da gestão da educação nacional entre o Estado e seus entes federados, que, por sua vez, organizam sistemas de ensino em seus respectivos campos de ação, federal, estadual e municipal, responsáveis pela regulamentação, deliberação e execução da educação no âmbito das instituições escolares públicas e privadas. Assim, além do princípio de gestão democrática discutido até aqui, ao revisar alguns dos conceitos empregados na política e gestão da educação básica a fim de elucidar ao leitor/a as articulações entre a teoria e prática na organização do ensino, Vieira (2007) nos ajuda a compreender o modo como se organiza a educação básica por meio de dois conceitos recorrentes e por vezes tomados como sinônimos, trata-se da gestão educacional e da gestão escolar.

A gestão educacional nomeia a organização da educação no âmbito dos sistemas de ensino e situa-se, conforme Vieira (2007, p. 61), como campo de ação dos governos por meio de diferentes órgãos, tais como: Ministério, Secretarias e Coordenadorias de educação e seus respectivos agentes. Por outro lado, a gestão escolar dá nome a organização da educação no interior de cada instituição de ensino, cujas possibilidades e incumbências são mencionadas nos art. 12 e 13 da LDBEN/96, transcrito anteriormente. Dessa forma, a(s) política(s) educacional está para a gestão educacional do mesmo modo que o Projeto Político-Pedagógico está para a gestão escolar. É nesse sentido que Vieira (2007, p. 63) afirma que a gestão educacional se refere a dimensão macro da educação ao passo que a gestão escolar diz respeito ao micro, o que não significa ausência de relação entre as partes e o todo, pois as escolas se guiam pelas normativas dos sistemas de ensino que obedecem as políticas públicas educacionais – políticas que, em um governo democrático, são fruto das reinvindicações sociais e síntese das disputas em torno de suas formulações.

Certamente as considerações a respeito da democratização da gestão do ensino público não se esgotam nessas poucas linhas, sobretudo pela vasta literatura sobre o assunto. Quisemos até aqui afirmar o caráter público da educação e o espírito democrático com o qual ela deve ser conduzida, seja pelos governos e seus órgãos competentes, seja pelas instituições de ensino e seus agentes, a fim de preservar e garantir o direito inalienável de nossos jovens de acesso e permanência ao ensino público, gratuito e de qualidade.

 

 

Referências

 

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa. São Paulo: perspectiva, 2016.

 

BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Política. Coord. Trad. João Ferreira. 11. Ed.  Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. 2 v.

 

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_03.07.2019/CON1988.pdf. Acesso em: 11 mar. 2020.

 

_______, Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Senado Federal, 1996. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/544283/lei_de_diretrizes_e_bases_2ed.pdf. Acesso em: 11 mar. 2020.

 

CURY, R. J. C. Gestão democrática da educação: exigências e desafios. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 163-174, jul./dez., 2002.

 

____________. A gestão democrática na escola e o direito à educação. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 23, n. 3, p. 483-495, set./dez., 2007.

 

DRABACH, N. P. A trajetória de construção do princípio da gestão democrática na legislação educacional brasileira. Revista Transmutare, Curitiba, v. 1, n. 2, p. 275-292, jul./dez. 2016.

 

ESQUINSANI, R.S.S.; DAMETTO, J. 30 anos do princípio de Gestão Democrática do ensino: o que temos para celebrar? Jornal de Políticas Educacionais, Curitiba, v. 12, n. 17., setembro, 2017.

 

GARCÉS, M. Um mundo común. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2013.

 

PARO, V. H. O. princípio da gestão democrática no contexto da LDB. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 243-251, jul./dez., 1998.

 

SANDER, B. A produção do conhecimento em políticas e gestão da educação. Linhas Críticas, Brasília, v. 11, n. 20, p. 41-54, jan./jun., 2005.

 

VIEIRA, S.L., Política(s) e Gestão da Educação Básica: revisitando conceitos simples. Revista Brasileira de Políticas e Administração da Escola, Porto Alegre, v. 23, n. 1, p. 53-69, jan./abr., 2007.

 

 

 

[1] Recomendo a leitura do livro Sobre o autoritarismo brasileiro (2019), de Lilia Moritz Schwarcz; a autora trata de uma série de temas constitutivos da forma como se fez política por aqui a fim de compreender as continuidades de práticas autoritárias em nossos dias, apesar da experiência democrática das últimas três décadas.

[2] Dados disponíveis no relatório: A ESCALADA DA DESIGUALDADE SOCIAL – Qual foi o Impacto da Crise sobre a Distribuição de Renda e a Pobreza?, Marceli Neri – 34 páginas. Rio de Janeiro, RJ – Agosto/2019 – FGV Social. Disponível em: https://cps.fgv.br/desigualdade. Acesso em: 13 de fev. de 2020.

[3] Para uma aproximação da filosofia da educação de Hannah Arendt, recomento a tese de livre docência do professor José Sérgio Fonseca de Carvalho, intitulada: Educação: uma herança sem testamento (2015). Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/48/tde-04032015-143155/pt-br.php. Acesso em 17 de fev. de 2020. Ou o livro decorrente de sua tese: Educação, uma herança sem testamentos: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt (2017).

[4] A título de registro histórico: recentemente, o atual Ministro da Economia, Paulo Guedes, sugeriu alteração na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 188/2019, que trata de uma proposta de reestruturação do Estado em vistas da redistribuição de recursos entre União, Estados e Municípios a fim de abarcar proposta que desobriga o poder público a ampliar a rede de ensino público na necessidade de expansão de vagas, com o intuito de incentivar a expansão do ensino privado, conforme coluna de Bernardo Caran na Folha de São Paulo, em 14 de novembro de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/11/pec-de-bolsonaro-e-guedes-desobriga-poder-publico-de-construir-escolas.shtml. Acesso em:18 de fev. de 2020. A PEC 188/2019 passou pelo Plenário e tramita na Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça.

[5] Para melhor compreensão da diferença das noções de descentralização e desconcentração, ver a matéria disponível em: https://direitodiario.com.br/descentralizacao-e-desconcentracao/. Acesso em 05 mar. de 2020.

 

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