29/05/2023

NEOLIBERALISMO, MASCULINIDADE HEGEMÔNICA E O AVANÇO FASCISTA: ESTABELECENDO APROXIMAÇÕES ENTRE CRISES ECONÔMICAS E CRISES IDENTITÁRIAS

Em 2019 foi lançado o documentário brasileiro “O Silêncio dos Homens”. Valendo-se  de uma pesquisa feita com mais de 40 mil pessoas, o documentário busca sustentar a  premissa de que entre os homens existe um imenso não dito. Trata-se das emoções, das  inseguranças, da vulnerabilidade. Sons que, não podendo ser abafados, transformam-se  em ruídos. As consequências desse condicionamento expressam-se não apenas na saúde  mental masculina e nas relações nocivas que se estabelecem, mas na própria estrutura  social tão marcada pela violência.

De acordo com a pesquisa realizada para o  documentário, 6 em cada 10 homens declaram lidar com algum tipo de distúrbio  emocional. Os principais são: ansiedade, depressão, insônia, vício em pornografia e, em  seguida, vícios em álcool, drogas, comida, apostas e jogos eletrônicos. Além disso,  homens vivem 7 anos a menos que as mulheres e se suicidam quase 4 vezes mais. Tudo  isso, como aponta o documentário, diretamente relacionado a uma ideia de  masculinidade antiga e perene que associa a virtude masculina à virilidade guerreira:  poder, força e dominação.

Nos estudos de gênero, tal conceito de masculinidade é  denominado masculinidade hegemônica. O conceito, desenvolvido por Raewyn  Connell, refere-se ao ideal de virilidade que predomina tanto com relação a outras  formas possíveis de expressão da masculinidade, às quais subjuga hierarquicamente,  quanto em relação às mulheres, às quais exige subordinação por considerar inferior toda  e qualquer característica culturalmente atribuída à “feminilidade”. Ainda que a  sociedade tenha se modificado significativamente, a identidade masculina continua  moldada, em grande medida, por referenciais bélicos. Percebe-se, além disso, que  justamente diante das mudanças estruturais provocadas pelo feminismo, o conceito de  masculinidade bélica e provedora parece se acentuar, como uma forma de retorno a uma  identidade familiar.

Tal imagem, reforçada pelos ideais neoliberais de  empreendedorismo e competitividade, é a que se vê, aliás, na imagem de dirigentes de  diversos países, e relaciona-se, penso, com a guinada conservadora que se observa em  tantas nações. A partir de um levantamento bibliográfico, busco aqui estabelecer uma  aproximação entre o conceito de masculinidade hegemônica e o avanço fascista nas  políticas neoliberais. Em seu livro Gênero e desigualdades: os limites da democracia no  Brasil (2018), Flávia Biroli apresenta dados estatísticos do IBGE mostrando que as  mulheres trabalham, em média, 10,4 horas semanais a mais do que os homens, se  considerada a jornada adicional de trabalho que é realizada no âmbito doméstico. Esse  dado certamente reflete noções culturais a respeito dos papéis de gênero e das funções a  eles atribuídas historicamente. Trata-se da herança cultural do patriarcado refletida no  conjunto de valores que tendem a ser associados aos conceitos de masculinidade e  feminilidade. Estes ainda se configuram enquanto pilares estruturantes de nossa  sociedade e a não problematização de tais referenciais culturais contribui para a  permanência de crenças essencialistas.

Essas crenças são responsáveis pela solidificação  de identidades construídas com base em oposições dualistas, tais como  racionalidade/emotividade, brutalidade/sensibilidade, sujeito/objeto, dentre outras, que  reforçam papéis de gênero e servem de base para justificar preconceitos e desigualdades  de diversos tipos. Oriunda daí, a necessidade de colocar em cheque tais crenças a partir  da promoção de discussões sobre as origens históricas e culturais de tais papéis de gênero, como propõe o documentário mas, para além disso, a necessidade de, também,  com o foco em uma abordagem filosófica, problematizar os conceitos de identidade,  essência, diferença, gênero, entre outros.

Somado a isso, contudo, se se trata de um  problematizar os referenciais que norteiam a masculinidade contemporânea, cabe  levantar uma série de questões que não são trazidas pelo documentário, isto é, a  estrutura de produção da sociedade capitalista neoliberal e os valores que a sustentam.  Christian Laval, em seu livro A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade  neoliberal (2016) propõe que certos fundamentos teóricos pouco explícitos do  neoliberalismo remontam ao darwinismo social propagado, dentre outros, por Edward Spencer nos séculos XIX e XX. A mesma retórica biologizante que visa justificar a  exploração da classe trabalhadora é, repetidamente através dos tempos, empregada para  justificar a dominação masculina. A construção da figura masculina enquanto aquela  que é naturalmente disposta a liderança e ao domínio, enquanto a feminina seria  predisposta à submissão é reafirmada nos mais diversos discursos, de modo que pouco  se questionou, através da história, se as características tradicionalmente atribuídas à  masculinidade como a agressividade e a extroversão, bem como as tradicionalmente  atribuídas à feminilidade, como a docilidade e a introspecção, são inatas ou fazem parte  de uma estrutura ideológica que sustenta e justifica a dominação patriarcal.

O  historiador Federico Finchelstein, bem como outros pensadores ao longo da história,  afirmam que há relações diretas entre o fascismo e a masculinidade hegemônica,  também conhecida como masculinidade tóxica. Frequentemente o fascismo surge em  torno de figuras masculinas que emulam valores análogos aos que sustentam o conceito  tradicional de virilidade: autoridade, força, dominação, belicosidade, etc. Acompanha-o  a depreciação de valores atribuídos ao “feminino”, como a sensibilidade, a cautela, o  acolhimento, etc.

É certo, portanto, que uma crítica ao fascismo precisa vir  acompanhada de uma crítica aos valores que os sustentam, dentre eles as noções  construídas em torno da masculinidade. Tais noções têm sido problematizadas por coletivos de homens que percebem que a reconfiguração dos papéis tradicionais  atribuídos aos gêneros não é a desestabilização de uma ordem natural essencialista mas  é, ao contrário, a possibilidade de libertação de uma identidade bélica e limitante que  deveria se tornar passado. Essa problematização, contudo, deve vir acompanhada de  uma crítica ao modelo econômico neoliberal e das tensões que ele produz nas  subjetividades individuais, seja em momentos de estabilidade, seja em momentos de  crise.  

Referências: 

BIROLLI, Flávia; Gênero e desigualdades: os limites da democracia no Brasil.São  Paulo: Boitempo, 2018. 

CONNELL, Raewyn. Masculinities: second edition. University of California Press; 2nd  ed, 2005. 

LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São  Paulo: Boitempo,2016. 

MEAD, Margaret. Sexo e temperamento. 4ªedição, São Paulo: Perspectiva, 2009. 

STANDING, Guy. O Precariado: a nova classe perigosa. Tradução Cristina Antunes. -- 1. ed.; 1. reimp, - Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2014.

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