NEOLIBERALISMO, MASCULINIDADE HEGEMÔNICA E O AVANÇO FASCISTA: ESTABELECENDO APROXIMAÇÕES ENTRE CRISES ECONÔMICAS E CRISES IDENTITÁRIAS
Em 2019 foi lançado o documentário brasileiro “O Silêncio dos Homens”. Valendo-se de uma pesquisa feita com mais de 40 mil pessoas, o documentário busca sustentar a premissa de que entre os homens existe um imenso não dito. Trata-se das emoções, das inseguranças, da vulnerabilidade. Sons que, não podendo ser abafados, transformam-se em ruídos. As consequências desse condicionamento expressam-se não apenas na saúde mental masculina e nas relações nocivas que se estabelecem, mas na própria estrutura social tão marcada pela violência.
De acordo com a pesquisa realizada para o documentário, 6 em cada 10 homens declaram lidar com algum tipo de distúrbio emocional. Os principais são: ansiedade, depressão, insônia, vício em pornografia e, em seguida, vícios em álcool, drogas, comida, apostas e jogos eletrônicos. Além disso, homens vivem 7 anos a menos que as mulheres e se suicidam quase 4 vezes mais. Tudo isso, como aponta o documentário, diretamente relacionado a uma ideia de masculinidade antiga e perene que associa a virtude masculina à virilidade guerreira: poder, força e dominação.
Nos estudos de gênero, tal conceito de masculinidade é denominado masculinidade hegemônica. O conceito, desenvolvido por Raewyn Connell, refere-se ao ideal de virilidade que predomina tanto com relação a outras formas possíveis de expressão da masculinidade, às quais subjuga hierarquicamente, quanto em relação às mulheres, às quais exige subordinação por considerar inferior toda e qualquer característica culturalmente atribuída à “feminilidade”. Ainda que a sociedade tenha se modificado significativamente, a identidade masculina continua moldada, em grande medida, por referenciais bélicos. Percebe-se, além disso, que justamente diante das mudanças estruturais provocadas pelo feminismo, o conceito de masculinidade bélica e provedora parece se acentuar, como uma forma de retorno a uma identidade familiar.
Tal imagem, reforçada pelos ideais neoliberais de empreendedorismo e competitividade, é a que se vê, aliás, na imagem de dirigentes de diversos países, e relaciona-se, penso, com a guinada conservadora que se observa em tantas nações. A partir de um levantamento bibliográfico, busco aqui estabelecer uma aproximação entre o conceito de masculinidade hegemônica e o avanço fascista nas políticas neoliberais. Em seu livro Gênero e desigualdades: os limites da democracia no Brasil (2018), Flávia Biroli apresenta dados estatísticos do IBGE mostrando que as mulheres trabalham, em média, 10,4 horas semanais a mais do que os homens, se considerada a jornada adicional de trabalho que é realizada no âmbito doméstico. Esse dado certamente reflete noções culturais a respeito dos papéis de gênero e das funções a eles atribuídas historicamente. Trata-se da herança cultural do patriarcado refletida no conjunto de valores que tendem a ser associados aos conceitos de masculinidade e feminilidade. Estes ainda se configuram enquanto pilares estruturantes de nossa sociedade e a não problematização de tais referenciais culturais contribui para a permanência de crenças essencialistas.
Essas crenças são responsáveis pela solidificação de identidades construídas com base em oposições dualistas, tais como racionalidade/emotividade, brutalidade/sensibilidade, sujeito/objeto, dentre outras, que reforçam papéis de gênero e servem de base para justificar preconceitos e desigualdades de diversos tipos. Oriunda daí, a necessidade de colocar em cheque tais crenças a partir da promoção de discussões sobre as origens históricas e culturais de tais papéis de gênero, como propõe o documentário mas, para além disso, a necessidade de, também, com o foco em uma abordagem filosófica, problematizar os conceitos de identidade, essência, diferença, gênero, entre outros.
Somado a isso, contudo, se se trata de um problematizar os referenciais que norteiam a masculinidade contemporânea, cabe levantar uma série de questões que não são trazidas pelo documentário, isto é, a estrutura de produção da sociedade capitalista neoliberal e os valores que a sustentam. Christian Laval, em seu livro A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (2016) propõe que certos fundamentos teóricos pouco explícitos do neoliberalismo remontam ao darwinismo social propagado, dentre outros, por Edward Spencer nos séculos XIX e XX. A mesma retórica biologizante que visa justificar a exploração da classe trabalhadora é, repetidamente através dos tempos, empregada para justificar a dominação masculina. A construção da figura masculina enquanto aquela que é naturalmente disposta a liderança e ao domínio, enquanto a feminina seria predisposta à submissão é reafirmada nos mais diversos discursos, de modo que pouco se questionou, através da história, se as características tradicionalmente atribuídas à masculinidade como a agressividade e a extroversão, bem como as tradicionalmente atribuídas à feminilidade, como a docilidade e a introspecção, são inatas ou fazem parte de uma estrutura ideológica que sustenta e justifica a dominação patriarcal.
O historiador Federico Finchelstein, bem como outros pensadores ao longo da história, afirmam que há relações diretas entre o fascismo e a masculinidade hegemônica, também conhecida como masculinidade tóxica. Frequentemente o fascismo surge em torno de figuras masculinas que emulam valores análogos aos que sustentam o conceito tradicional de virilidade: autoridade, força, dominação, belicosidade, etc. Acompanha-o a depreciação de valores atribuídos ao “feminino”, como a sensibilidade, a cautela, o acolhimento, etc.
É certo, portanto, que uma crítica ao fascismo precisa vir acompanhada de uma crítica aos valores que os sustentam, dentre eles as noções construídas em torno da masculinidade. Tais noções têm sido problematizadas por coletivos de homens que percebem que a reconfiguração dos papéis tradicionais atribuídos aos gêneros não é a desestabilização de uma ordem natural essencialista mas é, ao contrário, a possibilidade de libertação de uma identidade bélica e limitante que deveria se tornar passado. Essa problematização, contudo, deve vir acompanhada de uma crítica ao modelo econômico neoliberal e das tensões que ele produz nas subjetividades individuais, seja em momentos de estabilidade, seja em momentos de crise.
Referências:
BIROLLI, Flávia; Gênero e desigualdades: os limites da democracia no Brasil.São Paulo: Boitempo, 2018.
CONNELL, Raewyn. Masculinities: second edition. University of California Press; 2nd ed, 2005.
LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo,2016.
MEAD, Margaret. Sexo e temperamento. 4ªedição, São Paulo: Perspectiva, 2009.
STANDING, Guy. O Precariado: a nova classe perigosa. Tradução Cristina Antunes. -- 1. ed.; 1. reimp, - Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2014.