04/10/2021

Manifesto Por Uma Gestão em Defesa do Escolar

Jonathan Dalla Vechia Bugs

Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria

E-mail: jonathandbugs@hotmail.com


Este texto propõe uma provocação inicial e provisória sobre a possibilidade de uma gestão da educação básica comprometida em defender e promover o escolar na produção da escola, enquanto instituição privilegiada de formação. Para tanto, penso este ato reflexivo em dois momentos: identificando minimamente o ideário neoliberal no contexto do discurso sobre a escola e, em seguida, problematizo o entendimento comum para operar com modos outros de pensar e fazer esta escola, onde o princípio da igualdade respeita a diferença inerente ao humano. Nosso referencial teórico tem como base, na interlocução com alguns textos do campo das políticas de inclusão (Lopes, 2009; Lockmann e Henning, 2010; Veiga-Neto, 2001; Lockmann, 2014), a obra Em defesa da Escola: uma questão pública (2017), de Jan Masschelein e Maarten Simons; há, também, uma tímida e recente inspiração foucaultiana no modo como penso algumas das questões que permeiam este escrito, reservando-me, neste momento, o direito de não comprometer-me conceitualmente, apenas inspirar.

Lopes (2009) nos ajuda a compreender a influência do neoliberalismo nas políticas de Estado por meio do imperativo da inclusão dos excluídos, pensando esse imperativo como uma prática política de governamentalidade. A autora toma como referencial o pensamento político-filosófico de Michel Foucault na compreensão do neoliberalismo enquanto um conjunto de práticas que subjetivam as pessoas dentro de uma lógica de mercado e auto-gestão, ou de gerenciamento de si. Nesse sentido, conforme a problematização que a autora promove em torno do termo excluído, surge a necessidade de capturar os que estão à margem do status quo (que se constituí como norma nos modos de ser e estar) das sociedades neoliberais, reconduzindo-os à norma. Grosso modo, é dessa necessidade que a inclusão surge no discurso das políticas educacionais.

Lockmann e Henning (2010), seguindo uma leitura de Foucault, pensam o imperativo da inclusão como um dispositivo da governamentalidade neoliberal que se materializa no contexto da escola quando articula e mobiliza discursos e saberes diversos que culminam na elaboração de aparatos legais de sustentação para concretizá-lo e garanti-lo enquanto dispositivo. Nas palavras das autoras:

 

A inclusão escolar como um dispositivo da governamentalidade também constitui uma rede que engloba elementos heterogêneos. Pode-se dizer que ela articula primeiro diferentes saberes - médicos, psicológicos, pedagógicos, morais, políticos etc.; - segundo, diferentes instituições - escolas, clínicas, postos de saúde, casas de recuperação dos mais variados tipos, para drogados, para meninos de rua, para crianças sob ameaça de risco social, para menores infratores etc.; - terceiro, uma variedade de leis - educacionais, trabalhistas, sociais etc.; - além de enunciados científicos e organizações arquitetônicas. É pensando nessa rede que a inclusão mobiliza que é possível entendê-la como um dispositivo da governamentalidade (Foucault, 2008a, p.143). (LOCKMANN, K.; HENNING, P.C., 2010, p. 191).

 

 Com Veiga-Neto (2001) damos um passo atrás para compreender, à lá Foucoult, como se estabelece a norma (considerada normal) em detrimento da contra norma (considerada anormal), base para os dispositivos, instrumentos ou processos de subjetivação que capturam os diferentes (da norma) num esforço de normalização. Para explicar isso, Veiga-Neto (2001) considera os processos de ordenamento, ou categorização, próprias do ser humano tomando como centro a relação saber-poder.

A diferença é a condição da materialidade do mundo, as coisas são semelhantes, mas nunca idênticas, trata-se do princípio de identidade. No entanto o ser humano se relaciona com o mundo e com seus semelhantes movido por um esforço de ordenamento, de identificação e agrupamento dos iguais. Assim nascem os estereótipos, por exemplo. Ao nos depararmos com uma cobra, a reação imediata que nos toma é a cautela, assumimos de antemão que elas são nocivas e representam perigo, então nos afastamos, mesmo que nunca tenhamos sido picados por uma cobra na vida.

Nesse exemplo, que estereotipa a cobra como animal nocivo à vida humana, os saberes das ciências naturais nos dizem dos perigos que as cobras representam, descrevemos um processo de ordenamento ou categorização do mundo tornado possível graças a relação saber-poder que acaba por nos subjetivar. Da mesma forma dá-se a relação de saber-poder nos processos que nos subjetivam em relação ao que é dito anormal. Segundo a leitura que Veiga-Neto faz de Foucault, é a partir do saber psi que se cria um discurso que gera a necessidade de normalização do anormal (do louco) e isso se traduz nas políticas estatais de enquadramento à norma. Nas palavras de Veiga-Neto:

O que ocorreu foi propriamente a desalienação da Psiquiatria, um alargamento do campo psi que levou Foucault a dizer que, a partir de um determinado "momento" histórico, "nada há, em suma, nas condutas humanas que não possa, de uma ou outra maneira, ser interrogado psiquiatricamente" (id., p. 148). Um "momento" a partir do qual os saberes do campo psi se tornam saberes tanto médicos - como análise e tratamento das anomalias de comportamento -, quanto judiciários - como regramento e controle sobre a boa conduta social. Saberes onde se cruzam a doença e o crime. Saberes que são vistos como capazes de avaliar e evitar o duplo risco que cada um corre: o risco de ser um anormal e o risco de conviver com um anormal.

É essa dupla realidade da norma - de um lado: norma como regra de conduta, como oposição à irregularidade e à desordem; de outro lado: norma como regularidade funcional, como oposição ao patológico e à doença - que faz dela um operador tão útil para o biopoder. (VEIGA-NETO, A. 2001, p. 28-29).

 

Neste momento poderíamos perguntar: se a inclusão dos ditos anormais aparece como imperativo legalizado pelo aparelho do Estado e traduzido nas políticas educacionais, como a inclusão acontece na prática da vida escolar?

Lockmann (2014) nos ajuda a responder a essa questão a partir de seu estudo das práticas de in/exclusão na escola. Por meio de análise de discurso das fichas de encaminhamentos dos alunos para serviços de saúde externos a escola e do conteúdo das entrevistas com professores e diretores de uma escola da rede municipal metropolitana de Porto Alegre, a autora chega à conclusão de que a centralidade da aprendizagem dos alunos ditos anormais, os incluídos, está no governo de si e não nas habilidades e conteúdo das disciplinas ofertadas pelo currículo escolar, inaugurando, assim, o que a autora chama de “redefinição dos conhecimentos escolares”. Nas palavras da autora: “Esse governo de si só pode acontecer mediante a construção de determinadas aprendizagens. Essa é a forma de governamento contemporâneo: um governamento pela aprendizagem.” (LOCKMANN, K., 2014, p. 291).

Iniciamos este texto pontuando que gostaríamos de problematizar o entendimento comum acerca da escola para refletir sobre modos outros de pensá-la tendo em vista a garantia do princípio de igualdade, próprio de uma escola que preserva sua essência, uma escola propriamente escolar. Nesse sentido, como acadêmico e pesquisador no campo das políticas e gestão educacional, concentro meus esforços em dar voz a premissa de que é preciso defender uma certa função sócio-política de educação e escola nos nossos modos de pensá-las e fazê-las – nossas pequenas revoltas diárias, diria Foucault.

Nesse sentido, concordamos com o pensamento de Hannah Arendt sobre o pape a educação, sobretudo a partir de seu texto A crise na Educação publicado em 1957 e incorporado na coletânea Entre o passado e o futuro (2000). Assim, penso a educação como momento em que o mundo é apresentado a nova geração de seres humanos circunscritos nesta existência. Arendt cunha o conceito de natalidade para explicitar o que entende ser o essencial da educação: o fato de que novos seres humanos são inseridos em um mundo instituído, que lhes é anterior. O conceito de mundo na filosofia de Arendt é amplo, compreende os diversos sentidos que o humano atribuiu a tudo que o circunda, desde o mundo natural até o mundo artificial criado no campo da linguagem, na dimensão do trabalho e da ação: no fato que os seres humanos agem sobre o mundo orgânico e o transformam, sobretudo coletivamente na relação uns com os outros, na criação das instituições, dos direitos, deveres, leis, e tudo o mais que é no mundo onde a vida humana acontece.

O mundo, por meio da educação, é apresentado as crianças que têm como tarefa conhecê-lo progressivamente, nesse sentido, a escola surge como lugar central de encontro entre os novos que chegam e o mundo que já existe, o encontro com a matemática, o português, a literatura e as artes, a filosofia, a física e a química, a biologia, a sociologia, com os saberes de educar o corpo e com tudo mais que fosse possível inserir em um currículo ideal capaz de promover uma formação ampla e integral das crianças e jovens que representam o novo em um mundo velho. Assim, na esteira de nossa argumentação, a função da escola parece ser a de assegurar à nova geração o contato com os saberes consolidados ao longo dos séculos na cultura humana.

Em virtude disso e apoiados em Masschelein e Simons (2017), dizemos que a escola não é uma instituição para a aprendizagem somente, nela há algo de mais substancial que a justifica e sem o qual, no contemporâneo, ela se confundo e é transformada em mais um espaço de aprendizagem entre tantos outros tornando-se redundante, portanto, descartável. A escola de fato guarda em si os tantos problemas que os saberes da sociologia e psicologia da educação já evidenciaram. Os autores do Em defesa da escola: uma questão pública não desconhece as acusações feitas a escola por diferentes campos de saberes, e tão pouco as negam. A genialidade da reflexão dos autores belgas consiste em pensar a escola de um outro lugar que não do juiz que bate o martelo e decreta sua morte.

Então, a escola não é esse aparelho reprodutor das desigualdades sociais, dispositivo de subjetivação a serviço do Estado, essa coisa de tantas mazelas? Se não é isso, o que ela é? Diríamos apoiados em Masschelein e Simons (2017), respectivamente: Sim e outra coisa. Sim porque a escola feita desde a modernidade, e os estudos críticos estão aí para evidenciar essa conclusão, foi tornada nesse lugar de mazelas. Outra coisa porque ela pode ser diferente disto que a fizemos, ela pode ser reinventada de tal forma que nela o escolar possa ser novamente encontrado.

Esse é o convite dos autores que nos inspiram quando escrevem sobre a necessidade de uma defesa da escola. Para Masschelein e Simons (2017), a escola é o lugar (tempo e espaço) do tempo tornado livre para o estudo e a prática, tornado livre para a experiência própria de um espaço escolar: ser capaz de. Tempo livre dos outros tempos: do tempo da família, da sociedade, do mercado de trabalho, das inúmeras categorias que de antemão dizem até onde os sujeitos escolares são capazes de ir, aprender, fazer, ser.

Esse tempo é tornado livre por meio da suspensão e da profanação. Suspensão diz respeito a um exercício de deixar para fora dos muros escolares a carga social que os alunos trazem nos bolsos de seus casacos, nas suas mochilas, trata-se de suspender, mesmo que momentaneamente, o status quo que categoriza e localiza este aluno na sociedade. Trata-se de suspender a norma que diz que este aluno por ser pobre, negro, gay, mulher, deficiente não aprende a matemática, não está apto para a educação física, não pode jogar futebol, e tantas outras interdições.

 Por meio da profanação os saberes do mundo são liberados na escola para o estudo e a prática, isto é, os saberes do estudo e da prática escolares também se desligam dos outros tempos em que eles são utilizados para fins específicos. Isso quer dizer que na escola o aluno não vai aprender da matemática o que ele precisa saber somente pra operar uma função técnica no mercado de trabalho. Não. Na escola, a matemática, e os demais saberes, são libertados de suas finalidades sociais e apresentados a nova geração (os alunos) para que a conheçam e a partir desta libertação de uso possam criar o novo.

A suspensão e a profanação produzem o tempo livre da escola, e é a partir do tempo livre que a experiência do ser capaz de, por meio do estudo e da prática, é tornado possível. Neste ponto chegamos ao princípio da igualdade a que nos referimos no início. Tal princípio não é sobre assumir equivocadamente que todos são iguais, mas que todos tem são capazes de estudar e praticar a matemática, o português, a filosofia, a sociologia, as artes e literatura, a química e física, de treinar o corpo na educação física. Ser capaz de não é sobre uma finalidade a que todos tenham que atingir ou um modo a priori de estudar X coisa, é sobre o direito que a nova geração: crianças, jovens e adolescentes têm de tentar, e tentar de novo e de novo e de novo, é sobre praticar, melhorar, aprender. Nas palavras de apresentação da obra onde desenvolvem esse modo de pensar a escola, os autores nos dizem:

 

Nós nos recusamos, firmemente, a endossar a condenação da escola. Ao contrário, defendemos a sua absolvição. Acreditamos que é exatamente hoje – numa época em que muitos condenam a escola como desajeitada frente a realidade moderna e outros até mesmo parecem querer abandoná-la completamente – que o que a escola é e o que ela faz se torna claro. Também esperamos deixar claro que muitas das alegações contra a escola são motivadas por um antigo medo e até mesmo ódio contra uma de suas características radicais, porém essencial: a de que a escola oferece “tempo livre” e transforma o conhecimento e as habilidades em “bens comuns”, e, portanto, tem o potencial para dar a todos, independentemente de antecedentes, talento natural ou aptidão, o tempo e o espaço para sair de seu ambiente conhecido, para superar e renovar (e, portanto, mudar de forma imprevisível) o mundo. (MASSCHELEIN, J.; SIMONS,M., 2017, p. 10, grifo do autor).

 

A guisa de conclusão, compreendendo o potencial que a escola tem de possibilitar a emergência do novo que nos colocamos no lugar dos que não se confortam com o resultado do diagnóstico do presente, com o que fizemos da escola, e mais uma vez nos unimos as enunciações de Masschelein e Simons (2017) e dizemos com eles:

 

[...] a escola pode ser reinventada, e é precisamente isso o que vemos como nosso desafio e, como esperamos deixar claro, a nossa responsabilidade no momento atual. Reinventar a escola se resume a encontrar formas concretas no mundo de hoje para fornecer “tempo livre” e para reunir os jovens em torno de uma “coisa” comum, isto é, algo que aparece no mundo que seja disponibilizado para uma nova geração. (MASSCHELEIN, J.; SIMONS,M., 2017, p. 11).

 

Onde, em quê, quando, você reinventa a escola?

 

 

 

Referências

 

ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro. 5º ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2000.

LOCKMANN, K. As práticas de in/exclusão na escola e a redefinição do conhecimento escolar: implicações contemporâneas. Educar em Revista, Curitiba, PR, n. 54, p. 275-292, out./dez. 2014.

_____________; HENNING, P.C., inclusão escolar na atualidade: um dispositivo da governamentalidade neoliberal. Revista de Educação PUC-Campinas, Campinas, SP, n.29, p.189-198, jul./dez., 2010.

LOPES, C.M., Políticas de inclusão e governamentalidade. Educação & Realidade, Porto Alegre, RS, n. 34(2), p. 153-169, mai/ago. 2009.

VEIGA-NETO, A. Incluir para saber. Saber para excluir. Pro-posições, v. 12, n. 2-3 (35-36). jul.-nov. 2001.

MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução Cristina Antunes. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. (Coleção Educação: Experiência e Sentido).

 

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