17/12/2019

Literatura, escrita e silêncio: Rodrigo S. M. e Bernardo Soares

Denis Leandro Francisco[1]

 

Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela, p. 70.

Rodrigo S. M., o narrador-escritor de A hora da estrela (1977), coloca-nos, a partir do fragmento reproduzido na epígrafe acima, diante de um caminho que é, a um só tempo, de busca e de constatação do impossível dessa busca. Se, de um lado, ele afirma estar à procura da “palavra no escuro”, de outro, admite o seu cansaço e a certificação de que a única coisa por ele encontrada é algo da ordem do silêncio, da mudez. 

Também Bernardo Soares, o semi-heterônimo de Fernando Pessoa, desassossegado em sua escrita, nos fala, em sua “autobiografia sem fatos”, dessa impossibilidade de escrever e do encontro com esse mesmo silêncio. Afirma ele:

Invejo – mas não sei se invejo – aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nessas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões e, se nelas nada digo, é que nada tenho a dizer. [...] Faço paisagens com o que sinto.[2]

Também ele parece procurar a “palavra no escuro” e, nessa procura, deparar-se contínua e irremediavelmente com o silêncio – constatação da impossibilidade que atravessa o gesto da escrita. Mas trata-se, em Soares, de uma problematização ainda maior, posto que ele afirma uma dupla impossibilidade: impossibilidade de escrever e, também, de ser escrito. Contudo, vejamos seu movimento seguinte: apesar da afirmação dessa dupla impossibilidade, o ajudante de guarda-livros escreve sua “autobiografia sem fatos” e narra sua “história sem vida”. Como? De fato, “Só o escritor pode dizer: não se pode e, desse lugar da impossibilidade, escrever”[3]. Porque só  o escritor sabe que se trata exatamente disso: uma tensão entre escrever o que não pode ser escrito e não escrever aquilo que exige que se escreva, aquilo a que Clarice denominou o “tormento da escrita”. Trata-se de uma exigência impossível de ser cumprida – e igualmente impossível de não o ser.

É justamente da obra e de suas exigências que nos fala Maurice Blanchot[4], do sujeito que é levado em busca desse ponto inalcansável para dele regressar com um pobre livro na mão, um amontoado de palavras estéreis e inúteis. Estéreis, inúteis e mudas. A mudez que acompanha S. M. acompanha também Bernardo Soares, acompanha todo aquele que se envereda pelos escuros caminhos onde (não) se encontram as palavras: o caminho da escrita.

Para cumprir a exigência, o sujeito que escreve irá “perder” horas, irá “gastar” a vida, no desejo de se alcançar aquilo que não se alcança, de captar a “palavra no escuro” e de – quem sabe – trazê-la à luz. Então esse sujeito irá trabalhar para encontrar a palavra, para acabar a frase, para concluir o livro, já sabendo que, a cada vez, terá de exclamar “Isso nunca está acabado”[5] porque, a despeito de qualquer esforço, o sujeito que escreve terá de admitir que as  palavras terminaram por ressoar como um “gongo vazio” e que o que se tem, ao fim, é o silêncio daquilo que não cessa de dizer ou a voz daquilo que se cala: “Se nada digo” – afirma Soares –, “é que nada tenho a dizer”. Se nada dizes, é que nada podes dizer, diria Blanchot.

O não dizer  é esse  “degrau acima” clariceano, degrau do não escrever. Lugar infinitamente mais ambicioso que o da escrita, lugar ao qual nem Clarice nem Soares pertenciam. Soares escreve seu livro em potência, seu livro em ruínas, seu livro por vir entre 1913 e 1935. Uma “autobiografia” composta de textos avulsos e embaralhados que, mais do que “pistas” sobre a vida empírica do seu autor, fornece a nós, leitores, sua posição frente à escrita, frente à literatura. A imagem que se entrevê após a leitura de suas “impressões sem nexo, nem desejo de nexo” aproxima-se muito mais de uma experiência, de uma exigência da escrita – de forma que é a escrita que se afigura como o próprio fim da obra e não a sua publicação – do que como um perfil desse semi-heterônimo. Em seu Livro do desassossego (1982), percebemos claramente que não mais se trata do narrador a contar a sua história, nem mesmo do autor se trata – este já dissipado pela escrita, já disseminado no texto –, mas de uma “vida que se fez grafia”[6].

Paradoxalmente, se nada se pode dizer, sabemos que, quando se pensa na escrita memorialística, é preciso contar uma história. Mas essa história, curiosamente, não mais pertence àquele que a conta, e não pertence mais à imagem reproduzida. Não há um retrato, criou-se uma imagem literária[7]. Sim, se o que pede para ser escrito não é passível de registro, aquilo que se conta – ou que não se conta – reverbera, de algum modo, em algum outro lugar, um outro espaço, como imagem: imagem literária ou, conforme afirma o ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, como paisagem tecida com os fios daquilo que se sente. Pois, se há esse ponto morto da escrita, esse lugar que não se alcança, esse dizer-que-não-se-diz, há também a “febre de dizer”. Se não se pode escrever, pode-se perseverar nesse contínuo morrer que é o gesto mesmo da escrita e, como Bernardo Soares, fazer “paisagens com o que se sente”, paisagens com “tudo quanto poderia ter dito”[8]

Referências

ARAÚJO, Cinara de. Tinha medo de ver, num mesmo olhar, um trem e um passarinho: a escrita íntima de Maura Lopes Cançado. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2002. (Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira).

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

CASTELLO BRANCO, Lucia. A pena da escrita. (Manuscrito inédito).

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 [1977].

PESSOA, Fernando. Livro do desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. São Paulo: Companhia da Letras, 1999 [1982].


[1] Doutor em Literatura Comparada. Professor Visitante. Universidade Federal de Lavras – UFLA. Departamento de Estudos da Linguagem – DEL. E-mail: denisleandro@outlook.com  

[2] PESSOA. Livro do desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa , p. 54.

[3] CASTELLO BRANCO. A pena da escrita, p. 5.

[4] BLANCHOT. O espaço literário.

[5] Cf. ARAÚJO. Tinha medo de ver, num mesmo olhar, um trem e um passarinho: a escrita íntima em Maura Lopes Cançado, p. 39.

[6] ARAÚJO. Tinha medo de ver, num mesmo olhar, um trem e um passarinho: a escrita íntima em Maura Lopes Cançado, p. 31.

[7] Cf. ARAÚJO. Tinha medo de ver, num mesmo olhar, um trem e um passarinho: a escrita íntima em Maura Lopes Cançado, p. 50.

[8] PESSOA. Livro do desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa , p. 64.

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