16/08/2010

Letramento - Em busca do tempo perdido

Muito se fala na importância da educação para o desenvolvimento de uma nação, mas pouco se tem feito por ela. Embora venha diminuindo o número de analfabetos brasileiros – atualmente são 14 milhões, o que significa 10% da população com mais de 15 anos - vai ser difícil cumprir a meta estabelecida durante a Conferência Mundial de Educação, em Dacar (Senegal), no ano 2000. Com outros 128 países, o Brasil assinou um pacto para melhorar a qualidade do ensino e, entre as metas estabelecidas, está reduzir pela metade a taxa de analfabetismo até 2015, chegando ao percentual de 6,7%. Conseguirá?

A principal estratégia do Ministério da Educação para atingir a meta é o programa Brasil Alfabetizado, que dá apoio técnico e financeiro para que municípios e estados criem turmas de jovens e adultos. No entanto, além disso, o Brasil enfrenta outro grande desafio: o chamado analfabetismo funcional, que atinge 25% da população com mais de 15 anos, de acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE.

O indivíduo com menos de quatro anos de estudos completos é considerado um analfabeto funcional quando lê e escreve frases simples, mas não é capaz de interpretar textos e colocar ideias no papel. Mal lendo e escrevendo e fazendo apenas contas básicas, ele enfrenta dificuldades no seu dia-a-dia, principalmente na hora de entrar para o mercado de trabalho.

Como disse o presidente da ONG Ação Educativa, Sérgio Haddad, à Agência Brasil, “o analfabetismo funcional é um fenômeno novo que se deve, principalmente, à baixa qualidade do ensino público.” Na avaliação dele, é preciso eliminar o mal com a educação de qualidade para que crianças e jovens saiam da escola com domínio pleno da leitura e da escrita.

Essa incapacidade de dominar os textos, reflexo do mau funcionamento do sistema de ensino, é um problema que vem sendo bastante discutido pelos educadores em todo o mundo. E a solução pode ser o letramento. Paulo Freire, no Brasil; Jean Foucambert e Célestin Freinet, na França, lançaram as bases da formação pedagógica necessária para mudar o ensino da leitura. Para eles, o ato da leitura é um ato político e uma prática social.

No Paraná, foco no Letramento

O Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal do Paraná já agendou para 27, 28 e 29 de outubro sua Ação Integrada para o Letramento 2010, encontro que realiza há três anos, com a finalidade de disseminar esse modo de ler. O pedagogo francês, Jean Foucambert, autor de diversos livros sobre leitura, estará presente, pela segunda vez, ao encontro paranaense. A edição de junho da revista Les Actes de Lecture (www.lecture.org), da AFL- Associação Francesa para Leitura, de Paris, destaca o trabalho desenvolvido pela equipe do Departamento de Letras da UFPR.

Para a professora Lúcia Cherem, formada em Letras, com doutorado em literatura e professora de francês, coordenadora do Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica, que trabalha com o letramento, “o ensino da leitura, voltado para a realidade do nosso cotidiano, poderá ser o salto que a educação brasileira, apoiada por outros setores da sociedade, tanto precisa dar.” Ela e sua equipe acreditam numa promoção social coletiva no momento em que todos os alunos das escolas públicas e privadas tiverem acesso à leitura e á escrita.

Paralelamente ao trabalho de pesquisa, eles oferecem cursos de extensão universitária para professores de línguas estrangeiras e materna das redes de ensino básico e médio municipal e estadual. Ao todo são 100 professores alfabetizadores e 70 chefes regionais das escolas estaduais a cada ano. A pedagoga Nara Salamunes, Diretora do Departamento de Ensino Fundamental da Secretaria de Educação Municipal de Curitiba, que desde 2005 trabalha com foco na atualização continuada dos professores da escola básica, garante: “No convívio constante com os professores, já percebemos sua satisfação e compromisso crescente com os resultados desse trabalho.”

Leitura para todos


O fato de Curitiba ser a capital com maior número de bibliotecas por habitante no país (2,9), não é suficiente para garantir a formação de leitores: “É preciso promover ações que tornem as bibliotecas lugares atrativos e de ação, com bons agentes de leitura e com contadores de história. A literatura é importante, mas é preciso também oferecer jornais e revistas, com visões críticas da sociedade. E também livros sobre vários temas, como trabalho, problemas de gênero, imprensa, questões sociais próximas dos leitores”, diz Lúcia.

Para a equipe da UFPR, a questão social está diretamente relacionada ao domínio da leitura. “Nossa sociedade se divide entre letrados e iletrados. É claro que os letrados detêm o poder e ditam as regras. Há letrados conscientes desse problema e há outros que se veem privilegiados nessa posição e acham normal que isso continue assim. No entanto, todos têm que ter acesso ao mundo da escrita, seja para ler, para escrever, posicionado-se, ou para organizar sua vida por escrito. A leitura e a escrita são extremamente importantes no tipo de sociedade em que vivemos. Experimente ir a um supermercado com lista e sem lista de compras. Você vai sentir a diferença nessa coisa básica. Imagine para o entendimento melhor da sociedade, para entender o seu lugar nela e para poder votar de forma mais consciente. E também para a estruturação da própria personalidade, por ser uma forma de autoconhecimento. Ler e escrever podem ajudar em muitas coisas, estão cada vez mais presentes em qualquer atividade humana”, diz a professora.

No Brasil, a questão da educação com qualidade depende de vontade política. “É claro que tem que passar pela escola, como já acontece em muitas delas através do trabalho excelente de alguns professores, mas não pode ficar apenas dentro da escola. Podemos colocar as crianças em contato com livros, sem pedir a elas que façam ficha de leitura e trabalho escolar. Elas precisam entrar nos livros, se envolver com eles. Contar sobre suas leituras a seus amigos e colegas, dividir suas experiências como numa rede, assim como fazem quando falam dos vídeo games, dos jogos que conhecem e que querem compartilhar. Isso contagia. Ler é contagiante”, afirma.

Nas bem sucedidas práticas de leitura que já vêm acontecendo no Brasil, os alunos são levados a ler em conjunto, com setores que aproveitam essa experiência. Discutem, por exemplo, a presença e a imagem dos velhos nos livros infantis, os estereótipos, leem com os velhos em asilos; há escolas que já promovem esse tipo de coisa, preparando com as crianças um material a ser lido com futuras mães, por exemplo, em postos de saúde, sobre amamentação, contracepção, etc...”A leitura deixa de ser uma tarefa apenas escolar, um martírio, para ter uma função social; a literatura também provoca prazer, alegria em se descobrir um jeito novo de lidar com a linguagem, como na linguagem poética. Há muita coisa a ser descoberta quando se domina o mundo da escrita.” garante a professora Lúcia Cherem.

No Rio, a Cátedra Unesco


Instalados numa casa branca dentro do campus da PUC-Rio, uma equipe de estudiosos prepara material para abastecer professores, pais, agentes culturais, agentes de saúde e demais adultos responsáveis pela formação de pessoas em todo o Brasil. Trata-se de um projeto coletivo desenvolvido pela Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio, sob a coordenação da professora Eliana Yunes: “Grupos de pesquisa formados por alunos, ex-alunos, mestrandos e doutorandos da Universidade, além de outros especialistas, desenvolvem programas de formação do leitor, que estão sendo colocados em prática pelo país a fora, com parcerias e articulações entre outros compromissados”, explica ela.

Desde quando descobriu que ler não é apenas a decodificação do texto gráfico, a professora, formada em Letras, com Pós Doc na Alemanha, vem disseminando esse novo conceito da leitura, que para ela, é transversal em tudo na vida humana: “Tudo é legível, não apenas a literatura; mas também uma exposição de arte, um espetáculo teatral, um filme, um acontecimento político.” Para Eliana, leitura não se limita a uma atividade intelectual e não pode ser dissociada dos sentimentos e afetos. E vai além: “ler mobiliza mais que a cognição e a sensibilidade, ler mobiliza a intimidade, a subjetividade de cada um”.

Quando assumiu a diretoria da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em 1985, ela pode sentir o encantamento que a leitura exercia sobre as crianças até a 3ª. e 4ª. séries: “Elas se envolviam com as histórias, era um aprendizado que mexia com emoções e com a inteligência, permitindo que tirassem lições de vida; mas da 5ª série em diante, o trato da literatura nas escolas deixava de ser a hora para conhecer a própria vida, passando a ser aula de informações críticas, com práticas construtivas, notas, avaliações sob um ponto de vista fechado, ditado pelo livro do professor”, lembra.

Como professora universitária, Eliana percebeu que os alunos não sabiam, de fato, ler: “Eles liam Graciliano Ramos, por exemplo, interessados apenas na crítica acadêmica construída, sem buscar sentir o ponto de vista dos personagens e sem entender o seu próprio, que é o verdadeiro aprendizado”. Ela constatou o grande abismo existente entre leitura e vida. Aqueles jovens, já cursando universidade, não tinham aprendido a ler; apenas acumulavam informações intelectuais desconectadas de sua realidade. Consequentemente, o sujeito que ia ensinar a experiência humana, nos 1º e 2º Graus, não tinha afinidade com a prática de leitor efetivo, que percebe a vida, os sentimentos, através da leitura.

Diante da constatação, a professora concluiu que era necessário, com urgência, operar uma mudança pedagógica, teórica e política: “Precisávamos de uma Política Pública de Leitura, que também oferecesse novos rumos pedagógicos, capazes de afetar a educação e a cultura como um todo.” Desde o início da década de 90, Eliana dedica-se em tempo integral ao estudo da leitura, da formação do leitor, e dos modos de transmitir essa prática de forma sedutora. Ela mantém um grupo de jovens pesquisadores, construindo um saber sobre o tema.

E nasceu o Proler


Depois de uma série de estudos no exterior, em 1991 Eliana integrou temporariamente a equipe da Biblioteca Nacional, onde Affonso Romano de Sant`Anna, então diretor, acabara de criar uma área de leitura. Foi nessa época que participou da criação do Proler – Programa Nacional de Incentivo à Leitura. Em carta para os então quase cinco mil municípios brasileiros, a equipe do Proler perguntou se gostariam de participar de uma experiência inovadora de estímulo à leitura. Setenta e dois responderam, interessados. A estes foram enviados questionários para conhecer os equipamentos e os recursos de que dispunham. Vinte e um preencheram as respostas e estes receberam a visita da equipe do Proler, que organizou encontros de sensibilização com a finalidade de mostrar que “a leitura tem que mexer com os nervos, o coração, a inteligência.”

Paralelamente à experiência do Proler,foi sendo construída uma pedagogia da leitura. Em cinco anos, a equipe visitou 600 municípios, formando agentes locais, que passaram a coordenar os encontros. “Hoje o Proler tomou outro jeito, mas continua existindo, apesar da falta de desdobramentos nos governos seguintes”, diz Eliana, que não acredita em fórmulas, receitas prontas, mas sim em prática, vivência, experiência, que resultam em políticas locais com força mobilizadora da sociedade dentro e fora da escola.
 
Principais projetos da Cátedra

Valeu a pena ter desistido de outras casas universitárias, onde era professora concursada, para atender ao convite da PUC-Rio para trabalhar em tempo integral com o ensino da leitura. “Agora temos aqui na Cátedra um projeto coletivo com base acadêmica na prática política que estuda pilotos de programas para serem colocados em prática, testados país a fora. “Trabalhamos com a formação dos adultos, pois eles são os mediadores para as novas gerações”, diz ela, relacionando alguns projetos em andamento:

• Com o Ministério da Cultura promove o Programa Nacional de Formação de Agentes de Leitura, dirigido a jovens de 18 a 28 anos. A Cátedra forma os supervisores, os multiplicadores e prepara o material pedagógico;
• Digitalização de Banco de Dados sobre Leitura, uma biblioteca Temática, em português e espanhol que estará disponível no site www.catedra.puc-rio.br, com apoio do MEC.
• Análise de texto e imagem de uma seleção de seu acervo de 19 mil livros de literatura infantil, para criar a primeira biblioteca digital de LIJ no Brasil.
• Para o Ministério da Educação analisa o Prêmio Viva Leitura, que já reuniu 10 mil projetos de leitura no País. Faz mapeamento da leitura no Brasil: quem faz o que, onde e como, com que recursos. Resultados estarão disponíveis para todos.
• Fórum e chats na Internet para as comunidades inscritas e organizadas enquanto rede de pesquisadores e promotores de leitura.

A equipe da Cátedra Unesco PUC-Rio de Leitura oferece seu assessoramento para um novo modo de ler e, consequentemente, de pensar, refletir sobre si mesmo e a vida. “O que a Cátedra busca é registrar o conhecimento que se produz mundo a fora por equipes diversas, além da nossa, que se constituem parceiras deste trabalho no qual se busca fomentar uma autonomia possível de mediadores e gestores em um programa permanente de incentivo à leitura, como hoje preconiza o PNLL – Plano Nacional do Livro, da Leitura e da Literatura. Para nós não interessa a cereja sobre o chantilly do bolo; o que nos interessa é o fermento na massa,” diz Eliana Yunes.

*Esta matéria é destaque na Edição 18 de Plurale em revista. Para ler online acesse http://www.plurale.com.br/revista-digital.php

(Envolverde/Plurale)

 
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