17/05/2017

Igreja: Uma Retomada do Conceito Povo de Deus Na Lumen Gentium

RESUMO

O presente ensaio tem por intuito apresentar a dualidade perceptível no decorrer da história da Igreja, que é aquela que se apresenta como Poder e como Povo de Deus. Analisa-se a Constituição Dogmática Lumen Gentium que traz um novo entendimento sobre a Igreja, elaborada no Concílio Ecumênico Vaticano II em que recupera o conceito Povo de Deus qualificando o conjunto dos fiéis batizados, sejam eles, clérigos, religiosos(as) ou leigos(as). O conceito Povo de Deus tem raízes bíblicas que são fundamentais para sua compreensão, no entanto, devido as grandes complexidades deste tema, este estudo está mais voltado para as questões eclesiológicas antes do Concílio, a elaboração da Lumen Gentium e o depois da sua elaboração, em que se observa que após a sua realização, surgem tentações da busca pelo poder, optando-se pela excomunhão, voltando-se a antiga forma de exclusão dos que de forma diferente se posicionavam. Numa perspectiva hermenêutica, o propósito do ensaio é realizar uma pequena leitura da situação eclesial à luz dos autores Hans Küng e Leonardo Boff, dois teólogos críticos da contemporaneidade. O presente texto resgata o conceito de Povo de Deus, que também é formada por divorciados, homossexuais, mães solteiras, etc., afim de que o legado de Cristo perpetue por um espaço que irradie amor e não exclusão.

Palavras-chave: Igreja. Povo de Deus. Poder. Lumen Gentium.

 

1 CONSIDERAÇÃO INICIAIS

 

O Concílio Vaticano II através do conceito de Povo de Deus procurou fazer com que as fronteiras da Igreja se alargassem para abraçar a todos que são Povo de Deus. Porém, contra o que proposto no Vaticano II, verificou-se no período pós-conciliar leituras tendenciosas que dificultaram tanto para uma definição de Igreja, assim como para um coerente aproveitamento pastoral. Na realidade, “em virtude da sua origem e da sua essência, a igreja é universal: pensa e age em favor do mundo” (KÜNG, 1967, p. 68) de tal modo que nunca se deve cessar a busca por uma Igreja mais humana e menos institucional. Uma igreja Povo de Deus “não confessional estreita e, sim, uma Igreja ecumênica aberta. Não uma Igreja egocêntrica e, sim uma Igreja universal. Não uma Igreja patriarcal e, sim, uma Igreja parceira” (KÜNG, 2005 p.143). Isso será possível se a Igreja unida na comunhão agir em favor de todos e por uma nova forma de ser Igreja.

Ante a esses preceitos o presente ensaio versa através do seguinte problema: diante de toda caminhada histórica da Igreja, o que o Concílio Vaticano II, na Constituição Lumen Gentium tem a oferecer aos tempos hodiernos, para que de fato a Igreja seja constituída como Povo de Deus? As reflexões que se abrem diante deste ensaio, não tem a pretensão de esgotar as respostas, mas de ensaiar um diálogo com a Igreja que é Povo de Deus.  Partindo das reflexões de Hans Küng e Leonardo Boff, bem como de outros autores, o presente estudo propõe-se apresentar a dualidade perceptível na história da Igreja, que é a Igreja como Poder e como Povo de Deus. Embora ambas sejam distintas, este vem demonstrar que a verdadeira Igreja de Cristo é aquela que na comunhão gera libertação do ser humano. Para tanto, é preciso discernir qual (poder ou Povo de Deus) revela-se o modelo eclesial mais condizente e próximo da missão no seguimento à Cristo, estando atentos às necessidades da contemporaneidade. Em seguida, apresenta-se a Constituição Lumen Gentium como caminho de retorno às primeiras comunidades através da categoria Povo de Deus.

Utiliza-se, como fio condutor para a investigação a abordagem hermenêutica, que é voltada para a compreensão e a interpretação de textos.  A hermenêutica utilizada para estudar algumas das obras de Hans Küng, Leonardo Boff e outros interlocutores, visa repensar novos sentidos que nos permitam enxergar e responder aos desafios de uma Igreja que o nosso tempo requer. Nesse contexto, a linguagem torna-se base para a construção do conhecimento, uma vez que os debates eclesiais necessitam de uma atitude hermenêutica, pois requer um trabalho interpretativo que parte dos contextos culturais de cada realidade eclesial emergente. Conforme Gadamer (2005, p. 407), “nossas reflexões sempre nos levaram a admitir que, na compreensão, sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido à situação atual do intérprete”. Para que a compreensão ocorra é preciso que aquilo que tentamos interpretar faça sentido para nós mesmos. A atitude hermenêutica é uma perspectiva dialógica que garante a interpretação e a compreensão de diferentes visões de mundo como questões fundamentais para avançar nos ideais eclesiais, fazendo com que o estudo não tenha somente por intuito tomar posição em relação às duas formas de ser Igreja, mas mobilizar e fazer com que nós, enquanto Povo de Deus, percebamos a necessidade de empreendermos mudanças de paradigmas na Igreja atual.

 

2 BREVE RETROSPECTIVA HIERÁRQUICA DA IGREJA

 

Visando compreender o caminho trilhado pela Instituição Eclesial na contemporaneidade, é necessário fazer uma retrospectiva eclesial. De acordo com Hans Küng (2012), as características da Igreja não são resultados de fatores atuais, mas de um processo histórico em que

 

a Igreja se autocompreenderá fundamentalmente como aquela comunidade que vem investida de poder (Hierarquia) em face da outra comunidade destituída de poder (Povo de Deus dos leigos), mas sobre a qual se exerce o poder. O poder se instaurará como horizonte máximo a partir do qual será assimilado, compreendido e anunciado o Evangelho. (BOFF, 1994, p. 96)

 

 

Jesus foi profundamente religioso, no entanto, sua religiosidade entrou em conflito com os setores poderosos do judaísmo, pois o templo era o centro religioso e econômico da Palestina. Era a principal mediação entre o povo e Deus através do sacerdócio e dos sacrifícios, recebendo um valor quase absoluto como se fosse garantia de salvação. No entanto, Jesus Cristo atualiza o conceito de Povo de Deus através do acolhimento do outro, da partilha, das mudanças de consciências e da conversão. A construção do Reino de Deus fundamentada pelo mandamento do amor precisa passa por uma mudança interior de cada uma das pessoas em favor do coletivo. Isso aconteceu de modo especial com os discípulos, recebendo de Jesus a missão de levar para todas as nações os seus ensinamentos. Já primeiras comunidades cristãs, percebe-se a Igreja como comunidade de fé que consistia na transmissão, reflexão e vivência do Evangelho deixado por Cristo, mantendo a unidade cristã através da comunhão, ou seja, aí se manifestava a verdadeira essência cristã. Na realidade,

 

ecclesia-Igreja significa em grego profano a reunião dos cidadãos (homens livres), convocados por um arauto com o fim de se discutirem em praça pública as questões da comunidade. Ekklesia significa também o evento e o momento da reunião que, de si, não implicava continuidade. Em sentido teológico podemos dizer que a Igreja é o encontro da comunidade dos fiéis, encontro provocado por Cristo e pelo Espírito para celebrar, aprofundar sua fé e discutir seus problemas à luz do Evangelho. Igreja, nesse sentido primitivo, é mais acontecimento que pode ocorrer debaixo de uma mangueira, na casa de um coordenador ou mesmo dentro do edifício da Igreja do que a instituição com todos os seus bens, serviços, leis, doutrinas e ministérios, com continuidade história. (BOFF, 1994, p. 235)

 

 Porém, com as mudanças de conjunturas, a Igreja deixou de ser perseguida (como eram as primeiras comunidades) e tornou-se perseguidora (a partir da adesão ao Império Romano sob o reinado de Constantino). Desta maneira, a Igreja se organizou conforme o Sistema Romano com o poder centralizado na figura do Papa.

 

Em termos de decisão o eixo circula em torno do Papa, do bispo e do presbítero, excluindo o leigo e o religioso. Sociologicamente considerando, a Igreja se rege pelos quadros de um sistema autoritário. [...] as comunidades cristãs primitivas encontravam-se sob a férrea necessidade de se instuticionalizar. Esta necessária mundanização da Igreja era condição de sua continuidade no mundo [...]. A autoridade em estilo romano e feudal se caracteriza, em primeiro lugar, por uma hierarquia piramidal [...]. O estilo romano e feudal de poder na Igreja [...], perdura até hoje e, a nosso ver, constitui uma das principais fontes de atrito com a consciência que desenvolvemos dos direitos humanos. (BOFF, 1994, p. 78-79)

 

As fatalidades foram ainda maiores com o advento da Idade Média, pois se criou uma forma de vida padrão, fazendo com que os fiéis que não se enquadrassem dentro das normas estabelecidos pela cristandade, eram considerados hereges e levados à punição, reprimindo qualquer forma de liberdade de expressão através das Inquisições. Enquanto hierarquia continuou fortalecendo a centralidade do poder na figura do Papa. Desta forma, Hans Küng (2012) afirma que por meio desse sistema de domínio eclesiástico o papa exerce seu poder a partir de Roma sobre toda a Igreja.  Através do poder através do papa “o jurisdicismo e o clericalismo, a hostilidade institucionalizada contra sexo e mulheres – tudo era imposto, se necessário fosse, com violência (Inquisição, fogueiras, guerras, cruzadas)”. (KÜNG, 2012, p. 97). 

            Ainda nesse período, iniciou-se a prática da simonia, que consistia na venda de objetos sagrados e de sacramentos, de modo que a Igreja conseguiu a arrecadar cada vez mais dinheiro e consequentemente aumentava o poder.  Portanto, com um emaranhado de acontecimentos, o clericalismo financeiro e centralizado não pode ser evitado, pois a Igreja passou a ser identificada e reconhecida pelo clero. “O Clero como administrador dos meios da graça acabou por construir, por si só, ‘a Igreja’, uma Igreja de clero, organizada hierárquica e monarquicamente, culminando no papa”. (KÜNG, 2012, p. 109).  Boff (1994, p. 99) destaca que “o poder eclesiástico sempre se entendeu como poder de legação divina. Entretanto, o divino no poder da Igreja-instituição é só de origem; seu exercício concreto pouco tem de divino, mas se processa na lógica de qualquer outro poder humano, com todas suas artimanhas”.

A Igreja, conforme Hans Küng (2012), no período da Idade Média, à medida que deixava cada vez mais a desejar no âmbito da fé em Cristo, tornava-se cada vez mais como o maior poder financeiro aquisitivo da Europa. Porém, começaram a surgir novas ideias com a tentativa de mudança da Igreja, especialmente por ocasião do período da Reforma Protestante e da Contra Reforma com o Concílio de Trento (1545–1563). Esse período fez com que a Igreja começasse a perder cada vez mais sua superioridade. Isso porque não soube reconhecer os sinais dos tempos e, com a cisão entre Católicos e Protestantes, o Concílio, ao invés de pensar em uma melhoria eclesial em todos os sentidos, investiu ainda mais em doutrinas e normas, de modo que a Igreja fechou-se para com o que era diferente (com o mundo).

Quando se inicia a modernidade, houve uma descentralização de Deus como fundamento principal, voltando toda a atenção para o gênero humano, ou seja, a partir das atitudes tomadas pela Igreja no final da Idade Média, ocasionou uma interrupção da cristandade e a cisão em razão e fé, ou entre religião e ciência, de modo que a fé não supria mais as necessidades humanas. Assim, “a cristandade perdera muito em credibilidade, e exatamente por isso a partir dali cada vez menos ela tomaria parte no engaste religioso, cultural, político e social da Europa”. (KÜNG, 2012, p. 133).  A partir de então, a liberdade de pensamento e expressão não eram mais oprimidos pela Igreja. Isso fez com que desse início às críticas a respeito da Igreja, entre eles Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud entre outros. Tudo isso contribuiu para um maior distanciamento da Igreja perante a realidade dos fiéis e das comunidades. Na realidade, diante da modernização, no sentido da “ciência, avanço tecnológico, democracia e industrialização, a igreja católica se contrapôs a todo esse processo de modernização, assumindo atitude fundamentalmente defensiva”. (KÜNG, 2012, p. 135)

Deste modo, o sistema católico-romano ideologicamente fechado, como denomina Hans Küng (2012), permaneceu de forma severa até meados de 1960, quando o Papa João XXIII, tocado pelos sinais dos tempos e pelas necessidades humanas, declarou aberto o Concílio Vaticano II (1962–1965), buscando uma mudança de paradigmas, ou como ele mesmo denominou, um “aggiornamento”, ou seja, uma atualização da realidade eclesial, de uma Igreja soberana para uma Igreja Povo de Deus, consistindo em voltar às fontes das primeiras comunidades cristãs. Porém, nem todos os seus sucessores buscaram esse avanço eclesial para uma vivência comunitária, de modo que alguns buscaram um retorno/retrocesso ao período doutrinário e de supremacia eclesial.   Nesse sentido,

 

para a Igreja adoentada e aprisionada no paradigma medieval, antirreformatório e antimoderno, e por isso mesmo em choque com a maciça oposição curial, João XXIII apontou o caminho para a renovação (aggiornamento): tendo em vista uma anunciação do evangelho retraduzida à luz dos novos tempos, um entendimento com outras Igrejas cristãs e uma abertura de ânimos para com o judaísmo e outras religiões do mundo. (KÜNG, 2012, p. 172)

 

Nessa perspectiva, diante das perplexidades apresentadas na história, “é necessário que a Igreja conserve a sua estrutura fundamental, tal como lhe foi comunicada pela ação salvífica de Deus em Cristo, se quiser continuar a ser verdadeira Igreja”. (KÜNG, 1967, p. 9)

 

3. OS REGRESSOS DA IGREJA EM RELAÇÃO AOS ENSINAMENTOS DE CRISTO E O ADVENTO DO CONCÍLIO VATICANO II

 

Diante da Igreja, nos deparamos com regressos e progressos, do qual não se pode ignorar o que é positivo dando uma ênfase somente no que se deixou a desejar, mas observar as situações como um todo e a partir disso esclarecer fatos lamentáveis da qual se deturpou a imagem de uma Igreja como comunidade cristã. Fatos esses, como afirma Hans Küng (2012), tornaram-se presentes na Igreja, pois ela deixou no passado sua característica de comunidade de fé e aderiu ao sistema de comando da Igreja romana, deixando para trás sua catolicidade e enfatizou sua romanidade.  A partir dessa conjuntura, se pode compreender o clericalismo que se instaurou, a centralização do poderio eclesial em um monarquista absoluto, o Papa, o controle da sexualidade e o papel das mulheres e leigos dentro do âmbito eclesial, enfim, todas as atitudes tomadas em prol de privilégios de uma casta e não da comunidade cristã como um todo. Nesse viés,

 

A Igreja é Povo de Deus e vimos que é precisamente por isso que a Igreja não é nem pode ser apenas uma classe ou uma casta determinada, no seio da comunidade dos crentes. Ao contrário, todos os fiéis, numa igualdade fundamental, são a Igreja, são membros do Povo de Deus. Todos eles são eleitos, santos, discípulos, irmãos, precisamente por isso é que todos são o sacerdócio real. (KÜNG, 1967, p. 165)

 

 

Nos tempos hodiernos, muitas visões pairam e continuam a se fazer presente na Igreja, mas é necessário estar atentos para não ser tradicionalistas, no sentido de fazer juramento somente ao antigo, como destaca Hans Küng (2012), pois dessa forma presume-se que Deus só se fez presente em meio à humanidade por um período no passado, mas na realidade, Deus continua a se fazer presente nos tempos de hoje, acompanhando todos os progressos em todos os aspectos. Destaca-se também, a preservação do celibato entre os sacerdotes, mesmo havendo inúmeros pedidos para sua erradicação, pois hoje pouco se mantém com o objetivo de entrega total ao serviço à comunidade de fé, tornando-se como uma forma de distinção entre os privilegiados, hierarquizando ainda mais a fé cristã. De acordo com KÜNG (2012, p. 112),

 

(...) o clero celibatário, sobretudo em razão do próprio celibato, mantém-se totalmente apartado do povo cristão: o que há é uma posição social de dominação, que, com base em uma “perfeição” moral superior, encontra-se assentado, em função mesmo de uma fundamentação que assim dispõe, acima do estrato leigo, estando só mesmo ao papa completamente subordinado.

 

 

Outro aspecto relevante é o modo romano de construir a carreira no Vaticano, de modo que muitos sacerdotes e até mesmo religiosos não buscam trabalhar no Vaticano de forma apostólica e cristã, mas de forma a fazer carreira, a conquistar um cargo altíssimo com segurança e estabilidade. Neste mesmo espaço, não se pode deixar de destacar as atrocidades cometidas em relação às relações sexuais por parte dos sacerdotes, que tanto se omite em dialogar sobre esse assunto. De acordo com KÜNG (2012, p. 31) “o que não se deve deixar de mencionar é que o sistema de acobertamento dos desvios sexuais por clérigos, que vigora em todo o mundo, foi ato devidamente coordenado pela Congregação da Fé romana”.  Diante de diversos destaques nem sempre tão encantador, é necessário permanecer na fé em Cristo, uma vez que ser verdadeiramente cristão, é necessário estar disposto a viver em comunidade e fraternidade. De acordo com KÜNG (2012, p. 55) “as pessoas não têm deixado propriamente a fé católica, e sim a Igreja Católica Romana como instituição de direito público”.

No decorrer dessa história, meados da década de 1950/60, em um período conturbado da realidade Mundial, surge como sucessor do Papa Pio XII que foi altamente conservador, o Papa João XXIII, que assumia o papado como período de transição. De acordo com Hans Küng (2012), o papa João XXII mostrou-se ser um papa diferente do que se esperava, pois buscava grandes mudanças de paradigmas. Com este alvoroço, no ano de 1962 deu-se início o Concílio Vaticano II (1962–1965).  Deste modo, “este viria corrigir Pio XII em quase todos os aspectos decisivos: na reforma litúrgica, no ecumenismo, no anticomunismo, liberdade religiosa, “mundo moderno” e sobre tudo na posição ante o judaísmo” (KÜNG, 2012, p. 173). Na busca por uma inovação eclesial e para manter a essência cristã, Hans Küng (2012) aponta duas mudanças de paradigmas que o Concílio Vaticano II pretendeu empreender: A inovação do paradigma reformatório, que propôs através da Bíblia, a recuperação do sentido de Igreja em meio à comunidade cristã, pois deveria estar em consonância com as necessidades dos fiéis; e a Integração do paradigma moderno, que propôs a possibilidade da salvação universal, que também se encontra fora do cristianismo, inclusive à ateus e agnósticos que agem conforme sua índole. João XXIII não concluiu o Concílio, pois veio a falecer, mas seu sucessor Paulo VI isso realizou, porém, não com tanto vigor e entusiasmo que João XXIII, pois Paulo VI preferiu realizar uma restauração ao invés de uma autêntica renovação.   

Apesar de tantas suscitações de mudanças, inclusive do aggiornamento, a Igreja permaneceu fechada necessitando cada vez mais por uma reforma. Essa situação só se agravou na sucessão de João Paulo II e Bento XVI, na qual a verdadeira forma de ser Igreja deveria ser de baixo para cima, tendeu a permanecer ao contrário, de modo que tudo parte de Roma às comunidades, de forma hierarquizada. Deste modo, através do Concílio Vaticano II,

 

(...) fica clara a opção dos padres conciliares de situar o governo hierárquico, compreendida como colegialidade episcopal, dentro e no conjunto da vida da Igreja. Fortalecendo a ideia de que o governo hierárquico, exercido colegialmente, está em função do bem e do progresso de todos os fiéis e de todas as Igrejas particulares, em ressonância com o bem de todos os seres humanos espalhados pelo mundo. (JORDÃO, 2011, p.66)

 

Portanto, percebe-se que a essência cristã de viver comunitariamente independente das diferenças; de reconhecer o Cristo no próximo, especialmente nos mais necessitados; de sentir-se instigado a cada vez mais em ser apóstolo de Cristo em uma cultura pluralista, perseverou a hierarquização romana da fé. Entretanto, é preciso manter-se fiel ao legado de Cristo e não deixar com que a previsão de Hans Küng realmente ocorra, em que "(...) 'a cúpula', os de Roma, ainda vão corromper a Igreja inteira!". (KÜNG, 2012, p. 23). 

 

3.1 LUMEN GENTIUM E O RESGATE DO POVO DE DEUS

 

            Jordão (2011) em sua dissertação intitulada “Estudo do conceito ‘Povo de Deus’ na Lumen Gentium” faz uma breve contextualização histórica do conceito Povo de Deus, destacando que

 

Até os anos 70, a Igreja se vê como o Povo de Deus da nova aliança. Até o século IV, o termo “povo” é empregado pelos Padres Apostólicos; a partir de Agostinho o conceito jurídico-romano de populus substitui o conceito histórico-salvífico de Povo de Deus: a Igreja é a Igreja de todos os povos compreendidos pelo Império Romano, portanto, já no século IV, o conceito Povo de Deus começa a representar cada vez mais os leigos, isso se deve ao desenvolvimento da hierarquia eclesial. No século V, desaparece quase por completo, o genuíno conceito histórico-salvífico de Povo de Deus, não havendo mais a preocupação de relacionar a comunidade cristã com o povo eleito do Antigo Testamento; progressivamente, prevalece o conceito agostiniano de congregatio fidelium, entendida na Idade Média, tanto a partir da representação familiar quanto a concepção política de nação. A partir de 1096, com as cruzadas e o juízo negativo contra os judeus, foi impedida a mentalidade histórico-salvífica, não considerando mais uma continuidade o Povo de Deus do Antigo e do Novo Testamento. A teologia escolástica da Idade Média também não utiliza a expressão Povo de Deus, por achar muito vaga e não sublinhar a distinção entre Israel e a Igreja. Só no século XIX, com a ideia de Corpo Místico de Cristo foi desenvolvida pelas escolas teológicas de Tubinga e, especialmente, a Romana, começa aos poucos reaparecer o pensamento da Igreja como Povo de Deus. No período posterior à primeira guerra, muitos viam a Igreja como uma rocha de salvação em meio ao caos da época. Finalmente, só após ser desenvolvida a concepção do sacerdócio universal dos batizados leva-se a superação de uma Igreja clerical. J. H. Newman, no mesmo século XIX, traz à luz o conceito Povo de Deus, e os católicos voltam a colocar em relevo a conexão histórica entre o Povo de Deus do Antigo e do Novo Testamento, com R. Grosehe, H de Lubac e Y. Congar. Em 1940, M. D. Koster, rejeitando a definição da Igreja como Corpo Místico de Cristo, desenvolveu em seu lugar a concepção de Igreja como Povo de Deus. (JORDÃO, 2011, p.43)

 

E foi a partir de então, e de modo mais expressivo no Concílio Vaticano II, que os estudos exegéticos direcionaram para novo entendimento da grandeza histórico-salvífica do Povo de Deus, com grande expressividade na Lumen Gentium. Com esta perspectiva, o desejo ardente de João XXIII através do Concílio era de uma Igreja que fosse de todos, de forma especial dos pobres, que na realidade, só foi compreendido por uma minoria e colocado em prática, com maior amplitude, na América Latina. Com esse desejo, a Lumen Gentium[1] é uma das Constituições conciliares de grande relevância que marcaram a eclesiologia, uma vez que significa uma nova compreensão enquanto Igreja. Entre as inúmeras contribuições da constituição, ressalta-se o resgate da consciência da Igreja de ser comunhão com Cristo, aproximando os fiéis na unidade através da Trindade pela ação do Espírito.

Nessa perspectiva, a Constituição Dogmática Lumen Gentium precisa ser analisada levando em consideração toda a história da eclesiologia tendo enquanto horizonte de sentidos a grande evolução enquanto compreensão da Igreja. A constituição realiza uma síntese de seu entendimento enquanto Igreja, que é resultante de vários movimentos nas áreas bíblica, litúrgica, pastoral, ecumênica e dogmática. O Concílio, então toma contato de si, reavaliando as posições doutrinais, do viver eclesiástico, da liturgia e da moral das pessoas e da sociedade, reestruturando o passado eclesial. Nesta nova construção da Igreja, a Lumen Gentium, torna-se o documento central do Concílio Vaticano II, evidente que ela não pode ser neutra em relação aos demais documentos do Concílio, mas os demais se estruturam a partir da sua construção, tornando-se uma totalidade. A expressão aggiornamento, bastante expressiva em João XXIII, tornou-se

                                           

(...) a expressão que melhor caracterizou a sua intenção ao convocar o Concílio Vaticano II. Esse aggiornamento, ou atualização, fez com que a Igreja repensasse a sua eclesiologia. A Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja, parte da dimensão do mistério da Igreja, sua fonte trinitária e se apresenta logo a seguir como Povo de Deus, destacando a igualdade de todos os seus membros por meio do Batismo. Só depois que é tratada sua hierarquia como servidora de todos os batizados. Portanto, ao invés de destacar o clero e a hierarquia, a Igreja auto definiu-se primeiro como Povo de Deus, rico em carismas dados pelo Espírito Santo. Carismas que constituem a base dos seus ministérios, inclusive aos da hierarquia, inserido dentro e não acima do Povo de Deus. (JORDÃO, 2011, p.56)

 

A constituição transcorre por três artifícios principais (essas três questões foram transcorridas nos três primeiros capítulos) para atingir a eclesiologia de comunhão, que consiste através do mistério da Igreja; pela comunhão do Povo de Deus e pela comunhão hierárquica. A categoria Povo de Deus é colocado na Lumen Gentium como o símbolo de toda a mudança que o Concílio Vaticano II queria imprimir sobre a Igreja. A escolha do tema Povo de Deus expressa a forma de conceber a Igreja como uma volta às suas origens, voltando às fontes da Igreja, às fontes bíblicas. Assim,

 

a coesão e continuidade organizada dos fiéis se pode melhor exprimir pela categoria Povo de Deus. Todo povo tem sua história e sua gesta, uma consciência de seus valores e idiossincrasias, um projeto histórico ao redor do qual todos se congregam em um poder de organização. A Igreja, como Povo de Deus, possui tudo isto, mas uma perspectiva religiosa, sobrenatural e transcendente. Todos pertencem ao povo, anteriormente a qualquer distinção interna; assim num primeiro momento, todos no Povo de Deus são iguais, cidadãos do Reino. A missão não é confiada a alguns, mas a todos; portadores do poder sagrado são incialmente todos e só secundariamente os ministros sacros. Todos são enviados a anunciar a boa-nova. (BOFF, 1981, p.235)

 

A constituição deu passo além da perspectiva predominantemente jurídico. Passou, então, a deter-se principalmente no desígnio de Deus para a realidade da Igreja, numa perspectiva de reconhecer a todos como Povo de Deus, tal como era na época de Jesus. Com o Concílio Vaticano II, portanto, dá-se a transição de uma Igreja vista como desigual baseada em uma eclesiologia jurídica e hierárquica, para uma Igreja Povo de Deus, baseada na dignidade e na missão de todos os seus membros. Deste modo,

 

ao escolher o título do capítulo O Povo de Deus e em especial os Leigos, os padres conciliares demonstraram desta maneira que todos os batizados, sejam eles clérigos e leigos, são neste povo, chamados por Deus. Reaparece, ao mesmo tempo, uma dimensão nova da eclesiologia, talvez a mais antiga no ponto de vista bíblico; este capítulo ao ficar como o II do esquema, não é uma adaptação, mas sim um verdadeiro recurso teológico. Supera-se, então, a visão de que a hierarquia aparece como “causa formal” e o povo fiel como causa “material”, descobre-se uma perspectiva bíblica, que se apresenta essencial, que não se pode separá-la do primeiro capítulo sobre o mistério da Igreja. Este povo está no plano de salvação de Deus, na ordem de finalidade, enquanto a hierarquia é um meio em vista desta finalidade, portanto se faz necessário ver o povo em sua totalidade cooperando na difusão e santificação da Igreja inteira. (JORDÃO, 2011, p.11)

 

O conceito Povo de Deus aplicado à Igreja tem sua fundamentação bíblica, desenvolvido na Patrística e retomado no Concílio Vaticano II como a continuidade do povo de Israel. Um princípio otimista do Concílio foi de haver superado um entendimento identificado como Igreja hierárquica, exemplo disso, os leigos eram vistos apenas como submissos e simplesmente expectadores da vida da Igreja. A nova consciência eclesial dá destaque no papel de todo leigo batizado, que consiste em seguir e anunciar a Boa nova de Jesus à todos os povos.  A Igreja, como Povo de Deus, abriu-se num movimento que se estendia no chamado de cada fiel nas suas comunidades.

 

A coesão e continuidade organizada dos fiéis se pode melhor exprimir pela categoria Povo de Deus. Todo povo tem sua história e sua gesta, uma consciência de seus valores e idiossincrasias, um projeto histórico ao redor do qual todos se congregam em um poder de organização. A Igreja, como Povo de Deus, possui tudo isto, mas uma perspectiva religiosa, sobrenatural e transcendente. Todos pertencem ao povo, anteriormente a qualquer distinção interna; assim num primeiro momento, todos no Povo de Deus são iguais, cidadãos do Reino. A missão não é confiada a alguns, mas a todos; portadores do poder sagrado são incialmente todos e só secundariamente os ministros sacros. Todos são enviados a anunciar a boa-nova (BOFF, 1981, p.235)

 

A superação do esquema juridicista e hierárquico da Igreja deve-se ao desejo explícito de João XXIII, que almejava trazer a comunidade cristã para dentro dos problemas do mundo moderno, a fim de que a mensagem cristã ocasionasse uma mudança significativa na vida da Igreja. Neste sentido, o resultado final trouxe grandes novidades para toda a reflexão eclesial. A Igreja, porém, continua a ser um povo hierarquizado, e o ministério ordenado masculino tem aí um espaço específico e desenvolve uma determinada atividade. Assim, “este é o sacerdócio ministerial ou hierárquico que é desempenhado pelos ministros ordenados, portanto não é de todos, mas de alguns” (JORDÃO, 2011, p.18). Todavia, precisa compreender que “o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, apesar de diferentes entre si, ordenam-se um para o outro mutuamente e ambos participam cada qual a seu modo, do sacerdócio único de Cristo (JORDÃO, 2011, p.18).

A eclesiologia, dentro de um contexto jurídico passou e ainda passa por diferentes etapas de tentativas de reformulação, isso inclusive após o Concílio, em que se procurou recuperar a dimensão de Povo de Deus na comunidade cristã. Portanto, a Lumen Gentium tem sua origem em duas forças eclesiológicas distintas: jurídica e de comunhão. A igreja manifesta uma verdadeira comunhão hierárquica, isso consiste em uma nova visão eclesiológica, pois isso demonstra que a essência da Igreja não se esgota em ações hierárquicas, mas em comunhão como Povo de Deus. Nesse sentido, a categoria Povo de Deus recorda à Igreja toda sua história e o seu compromisso missionário como uma nova perspectiva.

 

4. A IGREJA: PODER E POVO DE DEUS APÓS O CONCÍLIO

Conforme o Concílio Vaticano II, a Igreja constitui-se por ser Povo de Deus em seguimento à Cristo. Essa afirmação faz refletir se a vivência de Povo de Deus ocorre de maneira cristã na Igreja institucionalizada e organizada a partir dos preceitos romanos, formada e constituída pela unidade dos fiéis que buscam seus fundamentos em Cristo. Porém, durante o pontificado de Bento XVI, há um fechamento em seus próprios interesses, não ouvindo e nem atendendo os clamores do Povo de Deus.  Nesse viés, Hans Küng, afirma que quando tudo se encontra pendente da hierarquia, toda a oposição sofre repressão, e assim não há mais espaço para o diálogo com o diferente, ou seja, para uma construção de uma nova igreja com base no diálogo com o Povo de Deus.

A Igreja até o ano de 312 d.C. , segundo Leonardo Boff (1981), era mais um movimento de fé do que uma instituição. Entretanto, posterior a esse período, suas estruturas foram alteradas em que se tornou a herdeira do Império Romano, e aderindo a sua característica de Igreja Cristã como “romanidade”, fez com que acarretasse na sua organização burocrática, na distribuição de cargos, deixando de ser formada pela comunidade e passando a tornar-se numa instituição.  Assim, “a lógica do poder é querer mais poder, conservar-se, preservar-se, entrar em compromissos e, caso corra risco, fazer concessões para sobreviver. Tudo isso podemos averiguar da história da Igreja-instituição”. (BOFF, 1981, p. 91).

 A Igreja, ao longo da história, caiu na tentação do poder, e, a cada oportunidade, centralizou o poder em busca de uma estabilidade e segurança de sua soberania. Nessa centralidade e fechamento em suas ideias, milhares de pessoas foram condenadas por pensarem de outra forma, recebendo a acusação de “difamarem” a “Esposa de Cristo”, que é a Igreja, além de se oporem ao Papa que era visto como representante de Cristo, pois ele já não era tão somente sucessor de Pedro, mas um sucessor de Jesus Cristo (BOFF, 1981).  Diante de uma Igreja que não era vista como uma unidade em Cristo para o bem do Povo de Deus e sim para justificar suas atrocidades em prol de uma soberania suprema, entende-se a afirmação de Nietzsche, “Igreja? – respondi – É uma espécie de estado, e a espécie mais enganosa” (NIETZSCHE, 1916, p. 109). Essa afirmação acaba possuindo sua relevância e veracidade, de modo que ela deixou de ser a unidade do Povo, para ser um Estado hierárquico ao modo romano. Boff (1981, p. 88), salienta que, “a Igreja se autocompreenderá fundamentalmente como aquela comunidade que vem investida de poder (Hierarquia) em face á outra comunidade destituída de poder (Povo de Deus dos leigos), mas sobre o qual se exerce o poder”.

Com a procura de mudanças de paradigmas, o Concílio Vaticano II entendeu a necessidade de reviver a essência cristã, constituindo-se como Igreja “Povo de Deus”. Todavia, após o Concílio, surge novamente a tentação da busca pelo poder, em que não se podendo mais matar, queimar, torturar fisicamente e etc., optou-se pela excomunhão voltando-se a antiga forma de exclusão dos que se manifestavam arbitrários. Nesse viés, Hans Küng afirma que “(...) a Igreja católica romana dá atualmente a impressão de ser uma ditadura espiritual. Nela não se tolera ninguém que tenha opinião diferente.” (KÜNG, 2005 p. 43). Essa exclusão ocorre de forma inquisitorial, pois o “réu” não tem a oportunidade de promover sua defesa, somente de aceitar aquilo que está sendo colocado, então “o que resta ao acusado, geralmente, não é outra coisa senão assinar a sua própria condenação, numa expressão de Hans Küng” (BOFF, 1981, p. 67).     

Embora nos tempos hodiernos se procure realizar várias atitudes pastorais, essa mentalidade de poder ainda paira sobre muitos que constituem a hierarquia eclesial. Mesmo na tentativa por parte de alguns, de dar maior relevância à palavra de quem constitui a Igreja Povo de Deus, acaba-se não colocando muita relevância à opinião dos seus fiéis, uma vez que hierarquicamente em uma igreja de Poder, eles possuem o cargo inferior.  Nas palavras de Boff (1981, p. 61), “os postos de direção na igreja desde o Papado até o presbiterado não são precedido de consulta ás bases do Povo de Deus, e quando, por acaso, se realiza alguma consulta, não é levada em conta. (...). A centralização das decisões gera inevitavelmente marginalização”.

            Leonardo Boff faz referência à marginalização que rejeita a opinião dos padres que são inferiores aos bispos, que “exclui” a mulher em uma sociedade em que também se busca direitos iguais, que não permite o uso de anticoncepcionais, pois “julga inapropriado”, que não valoriza a ciência e as inovações tecnológicas, preferindo viver sob a luz das sobras do período medieval, causada por uma Igreja que foge do mundo e não transforma o mundo em seu espaço de atuação.

                              

4.1 POVO DE DEUS, UMA MANEIRA NÃO UTÓPICA

 

Para almejar uma mudança dos paradigmas eclesiais, é preciso iniciar por uma reflexão sobre a hierarquização da Igreja e a partir de então colocá-la a serviço de todos, de modo que ela deixe de ser servida e passe a servir, tornando-se sinal vital de Cristo na contemporaneidade. Para isso, não se deve iniciar desestimulados, mas com o ânimo de vencedores, como iniciou o Concílio Vaticano II. A própria Evangelii Gaudium faz ressalva sobre isso: “Ninguém pode empreender uma luta, se de antemão não está plenamente confiado no triunfo. Quem começa sem confiança, perdeu de antemão metade da batalha e enterra os seus talentos” (EG, nº 85).  

A Igreja realiza seus primeiros percursos através dos ensinamentos de Jesus Cristo sobre a boa nova do Reino de Deus como outrora prometido nas Escrituras e que começa a serem transmitidas através das suas palavras, atitudes e na presença constante, fazendo que, aqueles e aquelas que as ouvem com fé são como sementes que germinam. Deste o pentecostes, os Apóstolos juntamente com discípulos de Jesus e através da força do Espírito Santo, apropriam-se da missão enquanto Igreja para continuar o anúncio e constituir em todas as nações o Reino de Deus, pois todos é povo de Deus. A Lumen Gentium ao referir-se ao povo de Deus está estreitamente ligada com os primeiros caminhos da Igreja que possui nos seus primórdios a vontade de Deus. Nos evangelhos, o tema povo de Deus é uma das centralidades da pregação de Jesus, que possui como bojo a Boa-Nova que é marcada pela pessoa de Jesus através de suas obras e palavras. Trata-se deste modo não de uma organização ou uma instituição, não se identificando enquanto Igreja, pois o povo de Deus é o ambiente da ação divina que não depende de fatores terrenos e humanos, por outro lado, a Igreja é o instrumento enquanto potencialidade e capacidade, promovendo o Reino de Deus com todo o povo de Deus. 

Todavia, como Hans Küng afirma, a Igreja deveria ser “(...) uma democracia: um domínio exercido por todo o povo religioso.” (KÜNG, 2012, p. 213), e então, ela se constituiria Povo de Deus, da qual o Concílio muito trabalhou. Contudo, não se pode ficar somente na reflexão como Povo de Deus, mas ir àqueles que necessitam, assim como Jesus que não se restringiu aos seus apóstolos e discípulos, mas sim àqueles que mais necessitavam, os injustiçados e doentes, sem discriminar e nem julgar ninguém.

 

(...) para escândalo dos piedosos, ele se solidariza com todos os pobres, desgraçados e ‘infelizes’: com os hereges e cismáticos (samaritanos), com as pessoas sem moral (prostitutas e adúlteras), com os politicamente comprometidos (cobradores de impostos e os que colaboravam com o inimigo), com os banidos e desprezados da sociedade (leprosos, doentes, miseráveis), com os mais fracos (mulheres e crianças), sobretudo se solidariza com o povo simples (que não percebe muito bem a realidade) (KÜNG, 1976 p. 35)

 

 

            Para a mudança que se almeja acontecer, não se deve só esperar uma mudança de cima para baixo, ou seja, de Roma às comunidades, mas partir de todas as comunidades, sabendo viver de forma mútua e cristã. Embora seja necessário alterar a forma institucional da nossa organização eclesial, para que ela deixe de ser “romana” e passe a ser mais “católica”, abrangendo a vida de todos e voltando a ser como nas primeiras comunidades cristãs, rezando e celebrando a entrega de cristo por todos, de modo que constituir uma só Igreja. 

 

Só existirá uma única Igreja, quando pudermos rezar juntos, ouvir juntos a palavra de Deus, juntos confessar a fé e sentarmo-nos juntos a mesa eucarística. Porque só então nos confessamos, não a muitos senhores, mas a um só Senhor, não a muitos espíritos, mas a um só Espírito, não a muitos deuses, mas a um só Deus! (BOFF, 1981, p. 39/39).

 

Uma Igreja que busca ser comunidade, que não se fecha, mas abre-se ao ecumenismo, ao diálogo inter-religioso, de modo que não preza pela uniformidade, mas sim pela unidade. Deixa de ser egocêntrica e passa a ser universal, católica. Entretanto, essa Igreja constituída pela comunhão não acontecerá se cada realidade não buscar essa edificação. Caso contrário, o sonho do Concilio não passará de uma utopia. Nesse sentido, é necessário uma mobilização do Povo de Deus para buscar por uma Igreja que realmente seja fiel ao legado de Cristo, da qual valoriza a vida e não despreza, que reconhece o clero como pastores a serviço e não monarcas, enfim, uma Igreja que dissemine o amor que Cristo pregou.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A configuração das primeiras comunidades cristãs, principalmente ao que tange o aspecto hierárquico, não era similar a estruturação da Igreja nos dias de hoje. Porém, diante do processo histórico, a configuração da Igreja passou a se tornar hierárquica ocasionando certo engessamento. Diante disso, afim de uma renovação eclesial, o Concílio Vaticano II (1962-1965) convocou a todos os fiéis para realizar uma volta às fontes, às primeiras comunidades cristãs, das quais a fé se configurava em torno da comunidade, reconhecendo-se como Povo de Deus. Através do conceito Povo de Deus, os conciliares demonstraram que todos os batizados são chamados por Deus, ressurgindo uma das questões importantes da eclesiologia, superando uma visão hierárquica. Assim, a hierarquia passa a ser um meio para a evangelização.

Ser Igreja comunitária, não se reduz meramente a acolher e dar valor as ideias alheias em uma dimensão de alteridade, mas de encontrar a unidade frente às diferentes posições. Jamais se buscar uniformizar, mas a partir da subjetividade de cada membro, partilhado na comunidade e unindo-se à Cristo. Por isso, pondera-se a comunidade valorizando-a como um todo, e, jamais impondo uma única forma de ser cristão, pois mesmo que comunitário, o seguimento à Cristo é subjetivo. Todavia, ao longo da história, veio-se impondo o modo romano de ser cristão, o modelo europeu de manter a fé em Cristo. Mas, a fé é algo particular que deve ser vivida em comunidade, mantendo uma unidade entre todos, e não um padrão que normatiza. Por isso, a Constituição Lumen Gentium (LG) é um dos documentos mais importantes do Concílio Vaticano II, pois trouxe aos leigos e à própria Igreja enquanto Instituição hierárquica, que até então era conhecida no período pré-conciliar como uma que fora da qual não existe salvação, uma nova imagem da Igreja como Povo de Deus, formada por todos os batizados em Cristo. Essa perspectiva pode ter uma repercussão pastoral relevante, pois a essência do cristianismo não é aquela constituída hierarquicamente, mas sim no seguimento a Cristo. Através da Constituição Dogmática Lumen Gentium, o Concílio Vaticano II trouxe uma nova roupagem para a Igreja, demonstrando que a verdadeira Igreja de Cristo é aquela que liberta e não oprime, recuperando o conceito de Povo de Deus, como era nas primeiras comunidades cristãs.

É preciso fazer memória a figura do atual Papa Francisco, que não mede esforços por uma Igreja mais vivencial, conforme o Concílio Vaticano II tanto propôs.  Entretanto não será somente ele que tudo deve fazer para uma verdadeira mudança eclesial, e sim também cada sujeito, com as pequenas atitudes de comunidades nos ambientes em que se vivencia a fé cristã. Assim, se cada apóstolo de Cristo fizer a sua parte como o Papa, pode-se edificar uma Igreja constituída de comunhão, formada pelo Povo de Deus que batalha por justiça e direitos iguais, que não se cala ante as indiferenças, que não discrimina pelo sexo ou orientação sexual e saiba amar, apesar das diferenças, extinguindo o poder que gera morte. Assim, diante das suscitações de mudanças que são necessárias, espera-se que a nossa Igreja deixe o Poder de lado e forme-se pela Comunhão, para que o legado de Cristo continue e se perpetue por um espaço que irradie amor e não opressão.

REFERÊNCIAS

BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder. Vozes: Petrópolis, 1981.

 

CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. Petrópolis: 1968.

 

FRANCISCO Papa. Exortação Apostólica do Papa Francisco: Evangelii Gaudium – A Alegria do Evangelho. Edições CNBB. 2013.

 

GADAMER, H. G. Verdade e Método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2005.

 

JORDÃO, José Cláudio. Estudo do conceito “Povo de Deus” na Lumen Gentium. Dissertação apresentada ao mestrado em Teologia Sistemática da PUCSP, São Paulo, 2011. Disponível em <http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=13867. Acessado em: 15/08/2016.

 

KÜNG, Hans. A Igreja. Volume II. Lisboa: Moraes Editores, 1967.

 

_________. A Igreja tem salvação? / Hans Küng; [tradução Saulo Krieger]. – São Paulo: Paulus, 2012.

 

___________. O que deve Permanecer na igreja? Tradutor: Orlando dos Reis. Brasil: Vozes, 1976.

 

___________. Para que um ethos mundial? Tradução de Alfred J. Keller. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

 

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra. São Paulo: Formar, 1916.

 


[1] A LG está dividida em 8 capítulos: I - O Mistério da Igreja; II - O Povo de Deus; III - A Constituição Hierárquica da Igreja e em especial o Episcopado; IV - Os leigos; V - Vocação Universal à Santidade na Igreja; VI – Os Religiosos; VII - A Índole Escatológica da Igreja Peregrina e sua União com a Igreja Celeste; e VIII - A Bem-Aventurada Virgem Maria Mãe de Deus no Mistério de Cristo e da Igreja. 

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