Gestão Democrática para a Diversidade e Educação Escolar Quilombola.
Ivan Carlos Zampin
Resumo
Este artigo analisa a gestão democrática da educação na perspectiva da diversidade étnico-racial, com ênfase na Educação Escolar Quilombola, compreendendo-a como estratégia fundamental para o enfrentamento das desigualdades históricas e do racismo estrutural presentes no sistema educacional brasileiro. A partir de referenciais teóricos críticos e de documentos normativos nacionais, discute-se a importância da formação inicial e continuada dos profissionais da educação, do Projeto Político-Pedagógico e da participação comunitária como pilares de uma gestão democrática comprometida com os direitos dos povos quilombolas. O estudo fundamenta-se em autores que discutem epistemologias negras, educação antirracista e políticas públicas educacionais, articulando análise teórica e discussão crítica sobre os desafios e possibilidades de implementação dessas diretrizes no cotidiano escolar. A efetivação da gestão democrática para a diversidade exige o reconhecimento das especificidades socioculturais quilombolas, a valorização dos saberes ancestrais e a construção coletiva de práticas pedagógicas emancipadoras.
Palavras-chave: Gestão democrática. Diversidade étnico-racial. Educação Escolar Quilombola. Políticas públicas. Projeto Político-Pedagógico.
1. Introdução
A gestão democrática da educação constitui um dos princípios fundamentais da educação pública brasileira, prevista na Constituição Federal de 1988 e reafirmada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Contudo, sua efetivação permanece como um desafio histórico e estrutural, especialmente quando se considera a complexa diversidade étnico-racial e cultural que caracteriza a sociedade brasileira. Muitas vezes, os mecanismos formais de participação, como conselhos escolares e assembleias, não são suficientes para superar relações de poder assimétricas e garantir uma representação autêntica e decisiva dos grupos historicamente marginalizados. Nesse contexto, a Educação Escolar Quilombola emerge como um campo paradigmático e específico que demanda políticas, práticas pedagógicas e, sobretudo, modelos de gestão radicalmente sensíveis às trajetórias históricas de luta, resistência e afirmação identitária do povo quilombola. Esta modalidade de ensino coloca em xeque as próprias bases da gestão escolar tradicional, questionando suas lógicas burocráticas, seu currículo monocultural e sua concepção de comunidade.
A necessidade de um investimento intencional e contínuo na formação inicial e continuada dos profissionais da educação mostra-se, portanto, central para a construção de uma escola verdadeiramente comprometida com a educação antirracista e com a promoção da equidade. Conforme orienta a Resolução CNE/CP nº 01/2004, o trabalho com a temática étnico-racial não se limita à mera inclusão de novos conteúdos curriculares de forma acrítica e isolada. Implica, de modo mais profundo, repensar as relações sociais e pedagógicas, os procedimentos de ensino, as condições de aprendizagem e, em última análise, os próprios objetivos da educação escolar. Este repensar exige dos gestores, coordenadores e docentes muito mais do que boa vontade, demanda um repertório teórico e prático fundamentado em referenciais como as epistemologias negras e as pedagogias decoloniais, capazes de iluminar os mecanismos de reprodução do racismo estrutural no cotidiano da escola e de apontar caminhos para sua superação.
Diante desse cenário, este artigo tem como objetivo analisar a gestão democrática para a diversidade, com foco específico na Educação Escolar Quilombola, articulando de forma crítica e propositiva quatro pilares interligados, sejam eles: a formação docente antirracista, as epistemologias negras como fundamento teórico, o Projeto Político-Pedagógico como expressão coletiva e a participação comunitária como princípio indissociável. Busca-se compreender como esses elementos, em sinergia, podem contribuir para a construção de uma escola que não apenas reconheça e valorize os saberes, as práticas culturais e os modos de vida das comunidades quilombolas, mas que se constitua como um espaço de contra conduta pedagógica e de afirmação de um projeto de sociedade plural e democrático. A tese central que orienta esta discussão é a de que a gestão democrática, no contexto quilombola, só se realizará plenamente quando se transformar em uma ferramenta de governança comunitária do conhecimento, onde a comunidade detenha o poder de definir os fins e os meios da educação de seus filhos e filhas, rompendo com um histórico de imposição curricular e de negação epistêmica.
2.Referencial Teórico
2.1. Gestão Democrática e Diversidade Étnico-Racial
A gestão democrática pressupõe a participação efetiva e qualificada dos diferentes sujeitos da comunidade escolar, ou seja, estudantes, famílias, profissionais da educação e demais atores locais, nos processos decisórios, promovendo transparência, diálogo permanente e corresponsabilidade na construção do projeto educativo. Quando articulada à perspectiva da diversidade étnico-racial, essa concepção amplia-se e aprofunda-se, incorporando de forma intencional o reconhecimento das desigualdades históricas e a necessidade de políticas afirmativas no interior da escola. Essa articulação transforma a gestão democrática de um fim em si mesma em um meio crucial para a construção da equidade, exigindo que os mecanismos participativos sejam desenhados para garantir voz e poder aos grupos historicamente silenciados.
Araújo e Braga (2019) defendem a construção de uma escola de todas as cores, que demande não apenas novas formas de gerir, mas sobretudo novos paradigmas para produzir conhecimento e se relacionar com a comunidade. Para os autores, pensar a educação numa perspectiva antirracista implica questionar profundamente as concepções tradicionais, eurocêntricas e monocromáticas de currículo e gestão, que naturalizam hierarquias e epistemicídios. Em seu lugar, é fundamental incorporar valores civilizatórios de matriz africana e indígena, tais como a oralidade, a circularidade, a ancestralidade e o comunitarismo, como fundamentos éticos e práticos do processo formativo. Isto significa, por exemplo, substituir modelos de assembleias puramente deliberativas por rodas de conversa e conselhos circulares, e reorganizar os espaços e tempos escolares para acolher rituais, celebrações e saberes ligados à ancestralidade.
Esta transição não é meramente operacional, mas paradigmática, exigindo uma reeducação das relações no ambiente escolar. A gestão passa a ter o papel central de mediar esse conflito de paradigmas, criando condições para que o confronto entre a lógica individualista e a comunitária, e entre o conhecimento academicista e os saberes tradicionais, seja produtivo e gere sínteses inovadoras. A gestão democrática para a diversidade torna-se, assim, o principal instrumento de descolonização da escola pública. Ela não se limita a gerir recursos e conflitos, mas assume a responsabilidade política de fomentar um ethos escolar antirracista, onde a diversidade não seja apenas tolerada, mas reconhecida como fonte de riqueza epistemológica e força social. Neste modelo, o gestor escolar atua como um intelectual orgânico da transformação, cuja liderança se mede pela capacidade de facilitar este diálogo interepistêmico e garantir que as decisões coletivas sejam efetivamente implementadas, pavimentando o caminho para uma educação verdadeiramente libertadora.
2.2. Epistemologias Negras e Formação de Profissionais da Educação
A formação inicial e continuada dos profissionais da educação é apontada como elemento central e estratégico no enfrentamento do racismo epistêmico que estrutura os currículos, as práticas pedagógicas e a própria organização escolar. Nunes, Franco e Santana (2021) destacam que a incorporação das epistemologias negras na formação docente não se resume à adição de conteúdos sobre história da África, mas consiste em um movimento mais profundo, ou seja, possibilitar tensionar criticamente o currículo hegemônico e ampliar radicalmente as formas de produção, transmissão e validação do conhecimento dentro da escola. Este referencial teórico-metodológico, ancorado no pensamento de autoras como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro e Conceição Evaristo, contribui para a construção de práticas pedagógicas mais inclusivas, contextualizadas e comprometidas com a descolonização do saber, colocando no centro do processo educativo a experiência, a memória coletiva e as formas de conhecer próprias das populações negras e quilombolas.
No mesmo sentido, Coelho e Silva (2017) evidenciam que o descompasso entre uma formação técnica-genérica e o desconhecimento das relações contextuais de desigualdade racial e socioterritorial comprometem estruturalmente a atuação de coordenadores pedagógicos e gestores escolares. A formação continuada, portanto, deve ser concebida como um processo permanente, coletivo e situado, intencionalmente articulado às realidades locais e às demandas políticas e culturais específicas das comunidades atendidas. Isso exige superar o modelo de "cursos pontuais" em favor de espaços de estudo e reflexão-ação, como grupos de trabalho e comunidades de prática, que envolvam também as lideranças comunitárias no papel de formadoras.
Essa formação deve preparar o profissional não apenas para "trabalhar com" a diversidade, mas para compreender-se como um agente político em um campo de disputas, capaz de identificar e combater o racismo institucional nas normas, nos rituais escolares e nas expectativas de aprendizagem. Implica, sobretudo, habilitá-lo a estabelecer uma ecologia de saberes (Boaventura de Sousa Santos) na escola, onde o conhecimento acadêmico dialogue em pé de igualdade com os saberes tradicionais sobre agricultura, medicina, história oral e organização social quilombola. Sem essa transformação na formação, os profissionais, ainda que bem-intencionados, tenderão a reproduzir, mesmo que de forma não intencional, a lógica assimilacionista que nega a potência intelectual das comunidades. Desta forma, a formação pautada pelas epistemologias negras não é um apêndice, mas o eixo estruturador de uma nova profissionalidade docente, orientada para a justiça cognitiva e para a construção de uma escola que seja, de fato, um território de afirmação e produção de conhecimentos plurais.
3.Desenvolvimento
3.1 Gestão Democrática e Educação Escolar Quilombola
A Educação Escolar Quilombola constitui uma modalidade específica da educação básica, regulamentada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais instituídas pela Resolução CNE/CEB nº 08/2012. Essas diretrizes estabelecem que a gestão escolar quilombola deve atender aos princípios constitucionais da gestão democrática, sendo realizada em diálogo, parceria e consulta às comunidades quilombolas. Essa premissa desloca o eixo da gestão de uma administração centralizada para uma governança compartilhada, reconhecendo a comunidade como detentora de direitos e de saberes legítimos sobre o processo educativo de seus membros.
De acordo com o Art. 39 da referida resolução, é imprescindível o diálogo entre a gestão escolar, a coordenação pedagógica e as organizações do movimento quilombola, considerando os aspectos históricos, sociais, culturais, políticos e econômicos do universo sociocultural no qual a escola está inserida. Além disso, recomenda-se que a gestão das escolas quilombolas seja exercida, preferencialmente, por sujeitos quilombolas, fortalecendo o protagonismo comunitário e assegurando que a condução da escola esteja em harmonia com os projetos de vida coletivos. Este dispositivo é revolucionário, pois confronta a lógica histórica de negação de lugares de poder a grupos racialmente subalternizados, propondo uma reterritorialização política do espaço escolar.
A efetivação deste modelo, contudo, enfrenta desafios estruturais. A formação específica para a gestão escolar quilombola ainda é incipiente nos cursos de Pedagogia e na formação continuada, o que pode gerar uma lacuna entre o preceito legal e a capacidade técnica para sua implementação. Ademais, a nomeação ou eleição de gestores quilombolas frequentemente esbarra em barreiras político-administrativas dos sistemas de ensino, que nem sempre dispõem de mecanismos para viabilizar essa preferência. Assim, a gestão democrática quilombola exige mais do que boa vontade, demanda a criação de marcos normativos locais, programas de mentoria e o estabelecimento de conselhos escolares com representação e poder deliberativo real da comunidade, transformando a consulta em corresponsabilidade efetiva. Esta é a base para que a escola deixe de ser uma instituição alheia ao território e se torne um equipamento comunitário a serviço da autonomia e da continuidade cultural quilombola.
3.2. Quilombo como Categoria Histórica, Política e Pedagógica
A compreensão do conceito de quilombo é fundamental para a construção de uma pedagogia comprometida com os territórios quilombolas e antirracista. Superando a visão historiográfica tradicional que o reduzia a um mero refúgio temporário de pessoas escravizadas, estudiosas como Beatriz Nascimento (2018) propõem uma leitura densa e estratégica, definindo o quilombo como espaço de resistência, sabedoria e continuidade da vida, representando uma possibilidade de existência coletiva pautada na solidariedade, na autodeterminação e na luta por dignidade. Essa concepção amplia o entendimento do quilombo para além de um território físico demarcado, reconhecendo-o como referência simbólica, política e epistemológica fundamental para a organização da escola e de sua gestão.
A música “Quilombo, o Eldorado Negro”, de Gilberto Gil e Waly Salomão, reforça essa dimensão histórica e utópica do quilombo como projeto coletivo de liberdade e justiça social, um "Eldorado" não de ouro, mas de possibilidades civilizatórias alternativas. Trata-se, portanto, de uma categoria analítica poderosa que desestabiliza a narrativa única da nação e inscreve no presente a potência de projetos de futuro gestados na diáspora. Ao ser transposta para o campo pedagógico, a categoria "quilombo" desafia a escola a se reimaginar. Ela deixa de ser um aparelho de transmissão de um currículo neutro e universal para se tornar um território educativo onde se processa a reterritorialização do saber.
Isso significa que a gestão escolar, inspirada por essa categoria, deve ser um exercício contínuo de negociação de mundos. Ela precisa mediar o diálogo entre os conhecimentos sistematizados pela academia e os saberes tradicionais, as tecnologias sociais, as narrativas orais, as práticas agrícolas e a cosmovisão quilombola. A gestão democrática, nesse sentido, é a ferramenta para operacionalizar o que o intelectual haitiano Jean Casimir cunhou como "contra-plantação", a construção de instituições que refletem e servem aos projetos de vida daqueles que foram subalternizados pela colonialidade. Assim, o quilombo pedagógico não se contenta em "incluir" conteúdos sobre história africana, ele busca reestruturar as relações de poder dentro da escola, os métodos de ensino, a avaliação e a própria concepção de tempo e espaço escolares, alinhando-os a uma lógica comunitária e não individualista. Nessa escola-quilombo, a comunidade não é "convidada" a participar, ela é a gestora, e o currículo é a materialização do seu patrimônio cultural imaterial em projeto educativo, garantindo que a educação seja, de fato, um instrumento de fortalecimento identitário e de luta política contemporânea.
3.3. Projeto Político-Pedagógico e Participação Comunitária
O Projeto Político-Pedagógico (PPP) assume um papel estratégico e estruturante na consolidação da gestão democrática nas escolas quilombolas, transcendendo sua função meramente burocrática para se tornar a expressão máxima do pacto educativo comunitário. Conforme destaca Santos (2022), o PPP deve ser construído em diálogo efetivo com os diferentes sujeitos históricos de direitos, respeitando e incorporando a diversidade, as relações territoriais, as práticas culturais, a religiosidade, o meio ambiente e os modos de bem viver das comunidades quilombolas. Esse processo de construção coletiva transforma o PPP em um documento vivo, um mapa orientador que reflete os anseios, as memórias e os projetos de futuro do território.
A elaboração participativa do PPP, com a contribuição ativa das lideranças tradicionais, dos mestres e mestras de saberes, das famílias e dos próprios estudantes quilombolas, é o mecanismo central para a construção de uma pedagogia de quilombos, capaz de articular de forma orgânica currículo, gestão e identidade cultural. Trata-se de um instrumento político e pedagógico que não apenas orienta as práticas escolares diárias, mas reafirma publicamente o compromisso da escola com uma educação antirracista, decolonial e emancipadora. Essa construção deve ocorrer em ciclos permanentes de escuta, utilizando metodologias que valorizem a oralidade, as assembleias comunitárias e a observação participante, garantindo que a linguagem e a estrutura do documento sejam acessíveis e significativas para todos os envolvidos.
Neste processo, o currículo deixa de ser um conjunto de conteúdos pré-definidos externamente para se tornar uma síntese cultural negociada. Ele deve acolher, por exemplo, os saberes agroecológicos tradicionais no ensino de ciências, a história oral e a memória da fundação do quilombo nas aulas de história e geografia, e as expressões artísticas e linguagens próprias nas áreas de arte e língua portuguesa. O PPP, assim, opera uma dupla função, ou seja: internamente, é um guia para a ação pedagógica; externamente, é uma declaração política de autonomia educacional, que exige dos sistemas de ensino o fornecimento de condições materiais e formativas adequadas para sua execução. A gestão democrática, nesse contexto, é o processo contínuo de garantir que o PPP não se torne letra morta, mas que seja constantemente avaliado, revisto e reivindicado pela comunidade, funcionando como um verdadeiro sistema de governança escolar comunitária. Desta forma, o PPP consolida a escola quilombola como um espaço de produção de conhecimento, de fortalecimento da territorialidade e de resistência ativa contra todas as formas de apagamento cultural, constituindo-se, finalmente, no principal instrumento para assegurar que a educação cumpra seu papel na reprodução e na inovação da vida quilombola.
4. Análise e Discussão
A análise dos referenciais teóricos e normativos evidencia que a gestão democrática para a diversidade, no contexto da Educação Escolar Quilombola, demanda mudanças estruturais profundas tanto nas políticas públicas educacionais quanto nas práticas cotidianas escolares. Apesar dos avanços legais, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, persistem desafios complexos relacionados à formação dos profissionais da educação, à efetiva participação comunitária e à valorização dos saberes tradicionais quilombolas no currículo.
Observa-se que a implementação dessas diretrizes depende fortemente do engajamento qualificado e intencional dos gestores escolares como mediadores fundamentais das políticas antirracistas. Esses profissionais devem atuar como articuladores e facilitadores de processos formativos contínuos, garantindo que a escola se constitua como espaço de formação permanente não apenas para estudantes, mas para toda a comunidade escolar. Esta formação deve superar a mera transmissão de informações e se dedicar à desconstrução do racismo institucional e epistêmico, questionando a visão hegemônica do conhecimento.
Além disso, a adoção de uma cosmopercepção ou cosmovisão afro-indígena-brasileira na gestão escolar pode fomentar práticas mais colaborativas, comunitárias e ecologicamente sustentáveis, rompendo definitivamente com modelos administrativos importados, de cunho competitivo, individualista e hierarquizante. Esta perspectiva valoriza o sentir, o coletivo, a oralidade, a ancestralidade e o respeito mútuo como fundamentos essenciais de uma educação integral, voltada para o bem-estar social e o pertencimento territorial. Tal mudança paradigmática implica redefinir os próprios indicadores de sucesso escolar, que precisam incorporar dimensões comunitárias, de preservação cultural e de fortalecimento identitário, para além dos índices puramente acadêmicos.
Um ponto crítico reside na contradição entre a lógica burocrática e temporal dos sistemas de ensino e o tempo comunitário das sociedades quilombolas. A gestão democrática quilombola exige flexibilidade e adaptação aos ritmos, calendários e prioridades da comunidade, o que frequentemente colide com as demandas rígidas de avaliação e prestação de contas das secretarias de educação. A superação deste impasse requer a institucionalização de mecanismos de diálogo intercultural que reconheçam a autoridade política das lideranças tradicionais na governança da escola. Portanto, a discussão ultrapassa a esfera pedagógica e adentra o campo da justiça cognitiva e da redistribuição do poder de decidir sobre os rumos da educação. A efetivação da gestão democrática quilombola não é, assim, um fim em si mesma, mas um processo contínuo de luta pelo direito à diferença e pela construção de uma escola que seja, de fato, um território de liberdade, memória e futuro para os povos quilombolas.
5.Conclusão
A gestão democrática para a diversidade representa um caminho indispensável para a construção de uma educação pública comprometida com a justiça social e com o reconhecimento pleno dos direitos dos povos quilombolas. A Educação Escolar Quilombola, ao articular gestão, currículo e identidade cultural, evidencia a necessidade de políticas educacionais sensíveis às especificidades socioculturais dos territórios, superando modelos universais que historicamente invisibilizaram e negaram estas comunidades.
A formação inicial e continuada dos profissionais da educação destaca-se como elemento central nesse processo, possibilitando a superação do racismo epistêmico e a construção de práticas pedagógicas contextualizadas e emancipadoras, fundamentadas no diálogo de saberes. Do mesmo modo, o fortalecimento do Projeto Político-Pedagógico, construído de forma coletiva com as comunidades, reafirma o papel destas como sujeitos ativos da gestão escolar, capazes de direcionar o fazer educativo conforme seus projetos de vida e de futuro.
A efetivação da gestão democrática para a diversidade exige, portanto, um compromisso político inabalável, investimento institucional permanente e a radical valorização dos saberes ancestrais, reconhecendo o quilombo como espaço de resistência, produção de conhecimento e afirmação de modos de vida que contribuem para a construção de uma sociedade mais plural, democrática e igualitária. Essa transformação não é meramente técnica, mas profundamente ética e política. Ela implica a descolonização dos saberes escolares, garantindo que os currículos dialoguem de forma crítica e criativa com as histórias, cosmovisões e tecnologias sociais desenvolvidas pelas comunidades quilombolas ao longo de séculos.
Para tanto, é fundamental que os sistemas de ensino estabeleçam canais permanentes e institucionalizados de diálogo com as lideranças e os movimentos sociais quilombolas, incorporando suas deliberações no planejamento, execução e avaliação das ações educativas. Além disso, a infraestrutura escolar, a alocação de recursos financeiros e a oferta de materiais didáticos devem refletir concretamente esse compromisso, assegurando condições materiais dignas e específicas para o desenvolvimento qualificado da Educação Escolar Quilombola, em conformidade com suas Diretrizes Curriculares Nacionais. A luta contra o racismo estrutural, dentro e fora dos muros da escola, constitui a base inegociável sobre a qual essa nova gestão se ergue.
Desse modo, a escola quilombola pode se transformar definitivamente de um antigo aparelho de assimilação em um território vivo de afirmação identitária, um espaço onde a memória coletiva, os conhecimentos tradicionais sobre o meio ambiente e a organização social se convertem em poderoso projeto de futuro. A verdadeira democracia educacional, que ancora a justiça cognitiva, só se concretizará quando todos os povos, com suas diferenças, histórias e epistemologias, forem não apenas incluídos, mas verdadeiros protagonistas na definição dos rumos da educação que desejam para suas novas gerações, pavimentando um caminho de reparação histórica e de construção de uma cidadania plena e antirracista.
6.Referências Bibliográficas
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BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP nº 01/2004.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE nº 08/2012. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola.
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NUNES, C.; FRANCO, N. H. R.; SANTANA, J. C. Epistemologias negras e educação: relações étnico-raciais na formação do(a) pedagogo(a). 2021.
SANTOS, A. P. Projeto Político-Pedagógico das Escolas Quilombolas: princípios formativos e orientações. 2022.
Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Pedagogo, Graduado em Educação Especial, Docente no Ensino Superior e na Educação Básica, Gestor Escolar, Especialista em Gestão Pública, Especialista em Psicopedagogia Institucional.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2342324641763252