10/08/2020

Eu vejo o futuro repetir o passado. Às vésperas do Bicentenário da Independência Política do Brasil em 2022.

Eu vejo o futuro repetir o passado

Eu vejo um museu de grandes novidades

O tempo não para

(Cazuza e Arnaldo Brandão)

Trinta anos após sua morte, as letras das músicas de Cazuza que retratam a situação política do país e os conflitos da sociedade na década de 1980, permanecem atuais desde então.

Estamos prestes a comemorar o Bicentenário da Independência Política do Brasil em 2022 e, noventa e oito anos após as comemorações do Centenário, a história, sob muitos aspectos, parece estar se repetindo.

Há cerca de cem anos, a cidade do Rio de Janeiro e o país viviam um quadro semelhante ao que vivemos hoje na política, na economia, na sociedade brasileira e também nas cidades.

O Rio de Janeiro era a capital do país e enfrentou uma crise econômica e política após a Segunda Guerra Mundial (1914-1918). Não bastasse os seus efeitos, entre 1918 e 1920, a pandemia da gripe espanhola infectou 50% da população mundial, matando ente 20 e 40 milhões de pessoas, ou mais[1]. Antes de chegar ao Brasil, por volta de setembro de 1918, a doença foi tratada com despreocupação pelas autoridades de saúde.

A disseminação ocorreu principalmente na Europa e acreditava-se que, devido à distância entre os continentes, ela não chegaria aqui. No início era descrita como uma doença intensa, porém sem gravidade. Entre setembro e novembro a epidemia assolou o país. Principalmente o Rio de Janeiro, com 20 mil pacientes em apenas um mês.

A primeira página da Gazeta de Notícias de 15 de outubro de 1918 resumiu a situação da capital após um mês da chegada da “Hespanhola”. A corrida da população às farmácias, o aumento de preço dos medicamentos e alimentos, as promessas não cumpridas do governo de cuidar da população carente que perecia sem recursos e assistência, o colapso nos atendimentos de saúde, a substituição de pessoas em cargos públicos importantes, falta de serviço de transporte, o fechamento de escolas, teatros, fábricas, a paralisação da cidade...

Poucos meses depois, no ano seguinte, a população se entregou ao carnaval como se nada tivesse acontecido... Mas no início de 1920 ainda vemos reflexos do temor da volta da pandemia. A Gazeta de Notícias publicava a coluna “Defendamo-nos da “hespanhola””, principalmente com notícias sobre as condições sanitárias dos navios estrangeiros que chegavam aos principais portos do país.

Os periódicos da época retratam ainda outros problemas recorrentes no dia a dia da cidade. O da habitação foi um dos principais, acompanhado do preço alto dos aluguéis e a condição precária das moradias. Muitas vezes a população pobre era empurrada para subúrbios distantes do centro, dos meios de transporte e sem infraestrutura mínima. Enchentes. Abandono da cidade. Desemprego. A violência é outro aspecto bastante citado, especialmente os roubos e furtos.

Esse momento é marcado por um sentimento nacionalista que toma corpo com a aproximação do Centenário da Independência. Anos antes, os jornais cariocas iniciaram uma campanha pressionando o governo para realizar uma grande comemoração. Apesar das dificuldades econômicas, em 1920 o presidente Epitácio Pessoa decidiu pela celebração, tendo como evento principal a primeira Exposição Internacional realizada na América Latina. Para isso, a cidade teria que ser saneada e embelezada.

Foi gerada uma polêmica em relação aos gastos. Levantaram-se opositores aos planos do governo. Estabeleceram-se tensões políticas, por causa das dívidas que o Estado contrairia para a realização da Exposição Internacional do Centenário[2].

O prefeito Sá Freire foi demitido pelo presidente Epitácio Pessoa, por se posicionar contra gastos desnecessários do dinheiro público em tempos de crise. Para ocupar o cargo e atender aos planos do presidente, foi escolhido o engenheiro Carlos Sampaio, que nunca tinha ocupado cargo político, mas há décadas vinha participando de intervenções importantes na capital federal como engenheiro e agente na intermediação de contatos entre empresários estrangeiros e setores da administração pública para obtenção de concessões nos serviços públicos e em indústrias, acreditando que a defesa dos interesses estrangeiros em nosso país se constituía em um meio de atrair capitais.

O processo de modernização da capital federal refletia a necessidade de projetar o país no cenário internacional e a participação do Brasil nas Exposições Universais se constituiu em um dos meios de medir sua internacionalização econômica e cultural, já que elas propiciavam contatos e intercâmbio entre diferentes regiões do mundo.

Durante o processo de modernização se desenvolveram paralelamente duas cidades. Uma convertida no lugar de representação da modernidade, do progresso e do espetáculo, refletindo os ideais da população mais abastada. E outra, na qual esse mesmo ideal excluiu a maioria da população, fazendo crescer uma cidade caracterizada por condições insalubres de vida e pela precariedade de serviços essenciais.

As classes sociais mais altas foram as principais beneficiadas, já que as reformas privilegiaram as áreas mais nobres da cidade ou com potencial de valorização, visando especialmente interesses políticos e econômicos. A parcela mais pobre da população foi excluída, através de políticas de remoção ou da elevação do custo de vida, da valorização do solo ou pela implantação de habitações populares em áreas distantes do centro, sendo constantemente obrigada a se afastar para os subúrbios ou ocupar os morros.

Fazendo um paralelo da Exposição com nosso passado recente, tomando a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, constatamos que continuam se reproduzindo valores e ações semelhantes às do passado, sendo privilegiados os mesmos grupos sociais, políticos e econômicos. Embora as promessas sejam de que os megaeventos tragam benefícios para todos, atraindo investimentos e alavancando a economia. O que aconteceu foi que a maior parte da população continuou e continua tendo suas necessidades básicas de infraestrutura, transporte e moradia negligenciadas e sendo excluída de diversas formas, inclusive pela reprodução das políticas de remoção em nome dos megaeventos, promovida pelo governo em nome da modernização e progresso da cidade, assim como aconteceu à época da Exposição do Centenário. Ou seja, a nossa “piscina tá cheia de ratos” e as promessas políticas para o bem de “todos” “não correspondem aos fatos”.

Os problemas políticos, econômicos, sociais e urbanos continuam semelhantes aos de cem anos atrás: crise política e econômica, corrupção, contração de dívidas públicas, falência do Estado; desemprego; violência; problemas na área de habitação; enchentes; precariedade dos serviços básicos de iluminação, saneamento e transporte para a maior parte da população; abandono das cidades.

Às vésperas do Bicentenário da Independência Política do Brasil em 2022, vamos continuar vendo “o futuro repetir o passado”?

Para essa pergunta os versos de Cazuza também apontam para uma possível resposta: “Mas se você achar que eu tô derrotado. Saiba que ainda estão rolando os dados. O tempo não para.” Por mais que o quadro atual se apresente difícil e problemático, o futuro está ainda em aberto, podemos escolher não nos dar por vencidos e acreditar que muita coisa ainda pode mudar.

 

[1] WANDERLEY, Andrea C.T. E o ex e futuro presidente do Brasil morreu de gripe… a Gripe Espanhola de 1918. Brasiliana Fotográfica, 23 de março de 2020. Disponível em: http://brasilianafotografica.bn.br/?p=18866

[2] RIBEIRO, Fernanda de Azevedo. A gestão de Carlos Sampaio e o legado da Exposição Internacional do Centenário da Independência de 1922 para a cidade do Rio de Janeiro. Anais do III Seminário Urbanismo e Urbanistas no Brasil. Recife, 2017.

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