31/07/2025

ENTRE O SILÊNCIO E O RUÍDO: A CRIANÇA NEURODIVERGENTE QUE PREFERE FICAR SOZINHA E O DESEJO ADULTO PELA SOCIALIZAÇÃO

ENTRE O SILÊNCIO E O RUÍDO: A CRIANÇA NEURODIVERGENTE QUE PREFERE FICAR SOZINHA E O DESEJO ADULTO PELA SOCIALIZAÇÃO

Andrea Dias

 

 

Resumo
Este artigo discute a necessidade da criança que prefere realizar atividades sozinha — no estudo, lazer e cotidiano — sob a perspectiva da neurodivergência, contrastando com a expectativa social e familiar pela socialização. A análise propõe uma reflexão sobre os limites da normatividade imposta à infância e o respeito às formas diversas de ser e estar no mundo. A socialização é abordada não como obrigação, mas como possibilidade que deve respeitar o tempo e a natureza individual da criança neurodivergente.

Palavras-chave: Neurodivergência. Infância. Socialização. Educação Inclusiva. Compreensão.

 

ABSTRACT

This article discusses the needs of children who prefer to engage in solitary activities — in study, leisure, and daily life — from the perspective of neurodivergence, contrasting with the social and familial expectations for socialization. The analysis proposes a reflection on the limits of normativity imposed on childhood and the importance of respecting the diverse ways of being in the world. Socialization is approached not as an obligation, but as a possibility that must respect the individual time and nature of the neurodivergent child.

Keywords: Neurodivergence. Childhood. Socialization. Inclusive Education. Understanding.

 


1 INTRODUÇÃO

O desenvolvimento infantil é comumente associado à interação social, à brincadeira coletiva e ao aprendizado partilhado. No entanto, muitas crianças demonstram preferência por atividades solitárias, o que tende a gerar inquietação por parte dos adultos, sobretudo quando a criança apresenta características neurodivergentes. Essa preocupação frequentemente leva à tentativa de inserção forçada em contextos de socialização, sob o argumento de promover habilidades sociais ou prevenir o isolamento.

Diante desse cenário, surge uma questão relevante: qual é a real necessidade da criança que prefere ficar sozinha, e o que motiva os adultos a desejarem sua constante socialização? A presente discussão se debruça sobre essa interseção entre o respeito às singularidades da neurodivergência e os valores normativos presentes no imaginário social.


2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Neurodivergência e modos diversos de se relacionar

A neurodivergência refere-se às variações no funcionamento neurológico que se afastam do modelo típico de desenvolvimento, incluindo, entre outras condições, o Transtorno do Espectro Autista (TEA), o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), a dislexia, a discalculia, a dispraxia e o transtorno do processamento sensorial. Esse conceito, nascido do movimento de direitos civis das pessoas autistas, propõe que essas variações não sejam encaradas como doenças ou falhas, mas como expressões legítimas da diversidade humana (SINGER, 1999; KAPP, 2020).

Crianças neurodivergentes frequentemente manifestam formas singulares de interagir com o mundo. Em muitos casos, preferem o contato consigo mesmas, estabelecendo relações mais profundas com objetos, ideias, rotinas e temas de interesse específico. Essa preferência por estar só pode ser um espaço psíquico de segurança, regulação sensorial e reorganização emocional. Como aponta Temple Grandin (2014), o ambiente social pode ser exaustivo para indivíduos autistas, não por falta de interesse pelo outro, mas por uma sobrecarga sensorial e comunicacional que compromete o equilíbrio interno.

Do ponto de vista da neurociência, essa autorregulação tem base fisiológica: estudos indicam que indivíduos com TEA e TDAH apresentam hiper-reatividade sensorial e maior ativação de áreas ligadas à vigilância ambiental, o que faz com que ambientes ruidosos ou imprevisíveis causem mais estresse do que para sujeitos neurotípicos. Assim, o desejo de estar só não deve ser visto como isolamento patológico, mas como uma necessidade adaptativa e de proteção emocional (SILVA, 2020).

Na perspectiva psicanalítica, podemos entender o gesto de se recolher como uma forma de preservação do eu, uma defesa frente à angústia e à invasão do espaço psíquico. Winnicott (1975) aponta que o brincar solitário, quando espontâneo, é parte essencial do amadurecimento emocional. Em contextos terapêuticos e educativos, é fundamental reconhecer quando esse estar-só é saudável — um estar consigo mesmo, e não uma fuga. A diferença entre solidão e solitude precisa ser respeitada no discurso pedagógico e familiar.

No campo da educação neuroafetiva, compreende-se que o desenvolvimento pleno só ocorre quando a criança é acolhida em sua individualidade emocional e neurológica. Pressionar uma criança a socializar, quando ela ainda não dispõe de recursos internos para isso, pode gerar sentimentos de inadequação, ansiedade e fracasso. Mais do que promover interações sociais por obrigação, é preciso oferecer vínculos significativos, rotinas estruturadas e ambientes respeitosos, para que a socialização aconteça como processo natural, não como exigência externa (MONTEIRO, 2022).

É fundamental, portanto, abandonar a visão reducionista de que o contato com o outro é sempre benéfico e necessário, e reconhecer que para algumas crianças a conexão consigo mesmas é tão vital quanto — ou mais — do que as interações com o mundo exterior. O respeito ao tempo subjetivo e às formas particulares de ser no mundo é um dos pilares de uma educação verdadeiramente inclusiva.

A imposição de socialização, nesses casos, pode ser percebida como invasiva ou angustiante, especialmente se não houver compreensão das particularidades envolvidas. Promover encontros, sim — mas com mediação, intencionalidade, respeito e escuta ativa. É no acolhimento das diferenças que se constrói um ambiente verdadeiramente educativo, ético e humano.

2.2 O olhar adulto e a expectativa social

O olhar adulto sobre a infância é inevitavelmente mediado por projeções socioculturais, históricas e afetivas que valorizam características como extroversão, produtividade e socialização precoce como indicadores de sucesso e saúde emocional (ARAGÃO, 2021). Essa visão é sustentada por um paradigma normativo de desenvolvimento que considera “ideal” o comportamento comunicativo, expansivo e relacional, marginalizando expressões mais introspectivas, silenciosas ou singulares.

Comportamentos como o desejo de brincar sozinho, o foco em interesses específicos, a sensibilidade a ambientes sociais ou a preferência por rotinas previsíveis são frequentemente vistos como problemas a serem corrigidos — e não como manifestações legítimas de uma subjetividade em construção. Essa leitura patologizante, ainda que muitas vezes inconsciente, pode levar os adultos a projetar na criança uma expectativa de normalidade que não respeita sua natureza neurodivergente nem seu ritmo interno de desenvolvimento.

Pais, professores e cuidadores, movidos por boas intenções ou por inseguranças sociais, acabam buscando “adaptar” a criança ao que consideram mais aceito ou “normal”, ignorando os sinais do que ela de fato necessita. A urgência pela socialização, nesse contexto, deixa de ser uma construção afetiva gradual e torna-se uma imposição de conduta. Isso pode gerar sofrimento psíquico, desregulação emocional e sentimento de inadequação na criança.

Do ponto de vista psicanalítico, essa imposição pode ser lida como um desrespeito ao princípio da alteridade. Lacan (1959-1960) já apontava que o sujeito se constitui na linguagem, mas também se protege do excesso de significação do Outro. Quando o adulto invade esse espaço com exigências, ainda que travestidas de boas práticas educativas, pode interromper processos subjetivos importantes de autonomia e elaboração interna.

Na perspectiva da educação neuroafetiva, compreende-se que a escuta ativa e a observação sensível são mais valiosas do que a tentativa de enquadramento. Como aponta Monteiro (2022), é preciso abandonar o ideal de um “desenvolvimento linear” e acolher as infâncias em sua pluralidade. Isso significa entender que a construção de habilidades sociais em crianças neurodivergentes não ocorre pela força da repetição, mas pela segurança emocional, pelo vínculo e pela liberdade de ser.

Além disso, a expectativa social adulta muitas vezes é reflexo de medos internalizados: medo do julgamento externo (“o que os outros vão pensar se meu filho não interagir?”), medo da exclusão futura (“será que ele vai se dar bem no mundo?”), ou mesmo medo de não corresponder ao modelo de parentalidade ou docência idealizada. Assim, ao tentar moldar a criança para que se encaixe, o adulto, na verdade, está tentando se proteger — e não necessariamente atender às necessidades da infância.

Dessa forma, é preciso inverter a lógica: não se trata de ensinar a criança a performar socialmente, mas de preparar a sociedade para acolher formas diversas de existência e expressão. Isso envolve criar espaços escolares e familiares em que o silêncio não seja visto como problema, a introspecção não seja sinônimo de isolamento, e o brincar solitário seja reconhecido como tão valioso quanto o brincar coletivo.

Portanto, a socialização não deve ser tratada como um fim em si mesma, mas como um processo relacional, que ocorre no tempo da criança e dentro dos seus limites de conforto. No caso de crianças neurodivergentes, é essencial que esse processo se dê de forma intencional, mediada e respeitosa, com espaço para pausas, recusas e formas alternativas de estar com o outro. Ao respeitar esses processos, o adulto se torna facilitador de vínculos genuínos — e não de performances sociais que produzem apenas desgaste e desconexão.

2.3 A mediação consciente e o papel dos adultos

O papel dos adultos diante dessas situações deve ser o de mediação empática. É necessário perguntar-se: a socialização atende à necessidade da criança ou à ansiedade do adulto? Forçar a convivência social sem preparar o ambiente e sem respeitar o ritmo da criança pode produzir efeitos contrários aos desejados, como retraimento, sobrecarga emocional ou resistência.

A criança precisa se sentir segura e acolhida para que o contato com o outro se torne uma experiência positiva e não uma exigência. Os vínculos construídos a partir da confiança favorecem a abertura para novas interações, sempre respeitando o direito à escolha e à autorregulação. Como defende Singer (1999), a neurodiversidade deve ser vista como uma expressão natural da variabilidade humana, e não como um erro a ser reparado.

Nesse contexto, cabe ao adulto abandonar a postura normativa e adotar um lugar de escuta ativa, sensível às linguagens múltiplas da criança neurodivergente. A mediação consciente parte do reconhecimento de que o desenvolvimento não é linear nem universal e que cada sujeito apresenta uma trajetória única, pautada por sua história, modos de perceber e reagir ao mundo, e necessidades específicas.

A prática de mediação implica também repensar o que se entende por “inclusão”: ao invés de inserir a criança em ambientes padronizados, trata-se de transformar esses ambientes para que se tornem responsivos às diferentes formas de existência. Isso exige um trabalho formativo contínuo com famílias, educadores e profissionais da saúde, promovendo um olhar que valorize a criança em sua totalidade, e não apenas em suas lacunas (BAPTISTA; VOLTOLINI, 2019).

Além disso, é fundamental compreender que socializar não é sinônimo de falar muito, estar em grupos grandes ou se envolver em atividades coletivas o tempo todo. Para muitas crianças, o vínculo com um único colega, com um adulto de referência ou mesmo com um animal de estimação já representa uma experiência social significativa. A qualidade das interações deve ser priorizada em relação à quantidade.

A mediação consciente também se expressa na organização dos espaços e tempos, na oferta de alternativas de participação que respeitem os limites sensoriais da criança, e na valorização de suas potências. A escuta empática, a observação atenta e a disponibilidade para aprender com a diferença são pilares de uma convivência mais justa e humanizada.


3 CONCLUSÃO

A infância neurodivergente nos convida a revisar valores, crenças e práticas que, historicamente, reforçam um modelo único de desenvolvimento. Respeitar a criança que prefere estar sozinha não significa negligenciar sua socialização, mas sim reconhecer que ela pode se conectar com o mundo a partir de outros referenciais. O desafio está em acolher essa diferença com sensibilidade, sem impor um padrão que cause sofrimento ou exclusão.

A socialização não deve ser uma meta imposta, mas sim um caminho possível, construído com afeto, tempo e escuta. O reconhecimento da neurodivergência como uma manifestação legítima da condição humana exige, antes de tudo, a disposição dos adultos em escutar para além do que esperam ouvir. Como defendem autores como Grandin (2014) e Kapp (2020), a neurodiversidade não deve ser vista sob a ótica da correção, mas da valorização da diferença e da singularidade.

É fundamental que os espaços educativos se estruturem a partir de uma perspectiva inclusiva, que considere os aspectos sensoriais, emocionais e sociais das crianças neurodivergentes. Tal perspectiva exige dos educadores e familiares um processo contínuo de formação, escuta e desconstrução de padrões normativos, abrindo-se ao conceito de inclusão real, que não se resume à presença física da criança, mas à participação plena, respeitosa e significativa em seu contexto.

Nesse sentido, torna-se urgente reconhecer que o desejo adulto de ver a criança "enturmada" ou "adaptada" muitas vezes expressa uma ansiedade cultural mais do que uma necessidade real da criança. Como reforçam os estudos sobre educação neuroafetiva e práticas de cuidado centradas na criança, o caminho ético passa por priorizar o bem-estar subjetivo e a experiência emocional do sujeito em formação.

Portanto, promover o pertencimento da criança neurodivergente é mais do que incluí-la em interações sociais; é validar seus modos próprios de existir no mundo, garantindo que possa ser quem é, sem que isso seja lido como ausência, desvio ou falha. O desafio para pais, cuidadores, professores e profissionais da educação está justamente em desenvolver essa escuta ética, sensível e informada – uma escuta que acolha e legitime a pluralidade da infância.


Referências

ARAGÃO, Márcia Denser. Crianças neurodivergentes: perspectivas inclusivas. São Paulo: Cortez, 2021.

GRANDIN, Temple. O cérebro autista: pensando através do espectro. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2014.

KAPP, Steven (org.). Autism and the neurodiversity movement: stories from the frontline. London: Palgrave Macmillan, 2020.

MILTON, Damian. The Double Empathy Problem. [S.l.]: Autonomy, the Critical Journal of Interdisciplinary Autism Studies, v. 1, n. 2, 2012. Disponível em: https://kar.kent.ac.uk/62639/. Acesso em: 31 jul. 2025.

MONTEIRO, Renata. Educação neuroafetiva: acolher para incluir. Rio de Janeiro: Vozes, 2022.

PRIZANT, Barry M. Uniquely human: a different way of seeing autism. New York: Simon & Schuster, 2015.

SILVA, Débora Cristina. Neurodivergência e infância: desafios na educação e no cuidado. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

SINGER, Judy. Why can't you be normal for once in your life? In: CORKER, M.; FRENCH, S. (org.). Disability discourse. Buckingham: Open University Press, 1999. p. 59–67.

 

Sobre a autora: Andrea Dias é Psicanalista, Neuropsicologa, Especialista em Neurodesenvolvimento, Neuropsicopedagoga, Educadora NeuroParental, Educadora (gestão e história/humanas, Analista do Comportamento, Psicomotrista e Musicoterapeuta (também ABA, TEACCH e DENVER) e, autista suporte 1 AH/SD e TDAH

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