04/07/2017

Do Universo dos Quadrinhos a Sala de Aula: Mafalda À Aula de História

Mafalda

 

Vitória Duarte Wingert[1]

Jander Fernandes Martins[2]

RESUMO

 

Este artigo tem por objetivo apresentar algumas considerações decorrentes de uma pesquisa sobre a possibilidade do uso das histórias em quadrinhos da personagem Mafalda, na aula de História, analisando a presença do conhecimento histórico nas histórias em quadrinhos, um meio comunicacional ainda pouco pesquisado pelo campo da História. Com base em reflexões que entendem o conhecimento histórico como um atributo de todo indivíduo em sua vida cotidiana (RÜSEN).

 

PALAVRAS-CHAVE: Histórias em quadrinho. Ensino de História. Mafalda. Fonte histórica.

 

 

ABSTRACT

 

This article aims to present some considerations arising from a research on the possibility of using the comic strips of the character Mafalda, in History class, analyzing the presence of historical knowledge in comic books, a communication medium still little researched by the field of History. Based on reflections that understand historical knowledge as an attribute of every individual in his daily life (RÜSEN).

 

KEY WORDS: Comics. History Teaching. Mafalda. Historical Source.

 

Introdução

 

As histórias em quadrinho fazem parte do universo infantil há alguns anos, normalmente as crianças são introduzidas a esse tipo de leitura, através dos gibis da Turma da Mônica de Maurício de Souza e até mesmo os mangás japoneses, e outros quadrinhos com temáticas infantis e juvenis, também permeando o cotidiano do aluno, pois são presentes nos livros didáticos de português, nas tiras publicadas em jornais, entre outros meios de divulgação em massa. Conforme os anos escolares vão passando a metodologia de ensino e os conteúdos vão mudando e o mundo das HQs, vai ficando relacionado apenas como passatempo ou divertimento, sendo desassociado do conhecimento escolar, principalmente nas disciplinas mais específicas, como no caso da História, pois dão lugar ao conteúdo mais teórico e específico das matérias.

Sendo assim, nessa pesquisa iremos propor o uso das tiras da personagem Mafalda, criada por Quino, como forma de estimular a reflexão dentro da aula de história, uma vez que o ensino com as histórias em quadrinhos justifica-se pelo fato deste material estar presente no cotidiano dos alunos. As HQs visam despertar a criatividade, provocar a sensibilidade, a sociabilidade, o senso crítico e a imaginação criadora, pois possui uma linguagem simples, curta é apresentada em quadros coloridos. (OLIVEIRA, 2007). Além do mais, as HQs constituem em valioso meio de comunicação em massa no qual reflete questões relacionadas desde um simples cotidiano a valores morais, sociais, culturais e éticos, não restringindo-se apenas ao âmbito da comicidade, mas também configurando discursos do social, do político e do econômico.

A escolha pela personagem de Quino, Mafalda, se dá em primeiro lugar pela popularidade da mesma, todos conhecem ou já leram uma vez, as contestações dessa garotinha de seis anos, que detesta sopa e ama Beatles, e está sempre se questionando sobre a realidade em que vive. Em segundo lugar, a época de criação da personagem, nos anos 60 e todas as temáticas que Quino aborda na HQ, como Guerra do Vietnã, capitalismo, comunismo, direitos humanos, paz mundial, entre outros que retratam a época em que foram produzidos e que podem ser grandes aliados no ensino de História.

Em face ao exposto, elegeu-se como problema deste trabalho: como as histórias em quadrinhos de Mafalda podem auxiliar no ensino da disciplina de História?

Uma vez que, entendemos que o conhecimento histórico não está restrito ao espaço acadêmico ou científico, e sim inserido nas mais diversas práticas sociais cotidianas, como na escola, nas vivências familiares, nas práticas religiosas, no conteúdo dos meios de comunicação, cinema e na literatura.

O tema central para a realização dessa análise são as histórias em quadrinhos da Mafalda e o ensino de História.

O objetivo geral deste trabalho se caracteriza em propiciar a reflexão sobre as possibilidades de uso das HQs da Mafalda como recurso didático nas aulas de História. Da mesma forma, definiu-se como objetivos específicos, os seguintes:

  • Investigar o potencial pedagógico das HQs quanto recurso didático nas aulas de História.
  • Refletir sobre a utilização das HQs como fonte histórica.
  • Compreender o contexto histórico no qual Quino criou Mafalda.

Para esta proposta de pesquisa, foi utilizado como marco teórico-metodológico, a Análise de Conteúdo em Bardin (2004). Elegendo o levantamento bibliográfico como um dos instrumentos colaboradores para a realização da pesquisa por acreditar-se ser adequada neste processo investigativo, pois Gil (2008, p. 50) também corrobora com as afirmações dos autores anteriormente citados, visto a importância deste tipo de pesquisa independente de sua natureza, isto é, a:

[...] pesquisa bibliográfica é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. Embora em quase todos os estudos seja exigido algum tipo de trabalho desta natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas [...] (GIL, p. 50, 2008).

Do mesmo modo, recorrer-se-á a “pesquisa descritiva”, levando em consideração os autores supracitados. Para Gil (2009, p. 28) este tipo de pesquisa “[...] têm como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento da relação entre variáveis”. A base metodológica utilizada para a realização deste trabalho está voltada inicialmente para uma revisão bibliográfica sobre o tema em pauta, histórias em quadrinho da Mafalda e o ensino de História, pesquisando sobre os fundamentos, métodos e propostas pedagógicas.

Será desenvolvida uma reflexão sobre o ensino de História, abordando possibilidades de utilização do cinema em sala de aula, visando uma aprendizagem significativa. Para tanto recorreremos a pesquisa bibliográfica sobre o ensino de História, uma vez que, a compreensão dos componentes da ação didática e metodologia de ensino é essencial para o trabalho do docente, para a mediação do conteúdo aos alunos. E importante o professor compreender que ensinar e aprender caminham juntas está ação são importantes para a prática pedagógica do professor, pois exercem um papel importante que podem nortear seu trabalho em sala de aula. O professor pode seguir os mais variados métodos de ensino e oferecer a seus alunos uma diversidade experiências de aprendizagem, por isso ensinar e aprender e um processo que enfatiza a relação de professor e aluno (HAYDT, 2008). Sendo assim utilizaremos alguns historiadores que trabalham com a área da educação e ensino de História, como Circe Bittencourt (2006), Marcos Napolitano (2011) e Gerson Severo (2004),entre outros, que serão citados no decorrer desse artigo. Também recorreremos a teóricos da educação como Tardif, Libâneo e Haydt.

Esperamos que a presente pesquisa possa contribuir para a compreensão de da importância da consolidação dos quadrinhos como material didático nas aulas de História, bem como seu uso de forma significativa em sala de aula. Proporcionado momentos de análises e reflexões de como as práticas educativas podem colaborar pra uma aprendizagem significativa, objetivando com que o aluno compreenda melhor a realidade que o cerca e reconheça-se como sujeito histórico. Possibilitando a compreensão e ampliação de recursos que podem ser utilizados em sala de aula.

OS QUADRNHOS EM SALA DE AULA

Trabalhar histórias em quadrinhos no campo escolar é uma forma significativa e dinâmica para os incentivar a leitura, a escrita, criação, pesquisa,  e  dramatização  da vida (INÁCIO, 2003). A importância das histórias em quadrinhos nas escolas é tratada por Araújo, Costa e Costa (2008, p. 29) quando estes abordam que: [...]

 

Os quadrinhos podem ser utilizados na educação como instrumento para a prática educativa, porque neles podemos encontrar elementos composicionais que poderiam ser bastante úteis como meio de alfabetização e leitura saudável, sem falar na presença de técnicas artísticas como enquadramento, relação entre figura e fundo entre outras, que são importantes nas Artes Visuais e que poderiam se relacionar perfeitamente com a educação, induzindo os alunos que não sabem ler e escrever a aprenderem a ler e escrever a partir de imagens, ou seja, estariam se alfabetizando visualmente.

 

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) reafirmam a importância da escola na formação de indivíduos competentes para a sociedade: [...] é necessário que a escola garanta um conjunto de práticas planejadas com o propósito de contribuir para que os alunos se apropriem dos conteúdos de maneira crítica e construtiva‖ (BRASIL, 1997, p. 33). Mocellin (2009) destaca também no âmbito brasileiro os intelectuais ligados a Escola Nova, ou História Progressiva, estes buscavam a ruptura com o modo tradicional de ensino centrado no professor como único detentor de conhecimento, encontraram no cinema e nos meios de comunicação ferramentas para aproximar o conteúdo de sala de aula com a sociedade em que o aluno está inserido, porém estas medidas nunca foram implantadas na escola regular.

Para Bittencourt, “Apenas recentemente a escola tem iniciado uma aproximação mais realistas com estes meios de comunicação” (2011, p.372), e de acordo com os PCNs, as HQs estão inseridas nos conteúdos de temas transversais que tratam de questões sociais (saúde, orientação sexual, cultura, meio ambiente e ética). Nesse sentido, Rama e Vergueiro (2004, p.18) comentam a utilização dos quadrinhos em função de objetivos considerados educativos:

[...] a percepção dos benefícios pedagógicos dos quadrinhos não ficou restrita apenas a autores e editores. Nos anos 50, na China comunista, o governo de Mao Tse-Tung utilizou fartamente a linguagem das histórias em quadrinhos em campanhas “educativas”, utilizando-se do mesmo modelo de retratar “vidas exemplares” explorado pelas revistas religiosas, mas enfocando representantes da nova sociedade que se pretendia estabelecer no país. As histórias podiam enfocar, por exemplo, a vida de um soldado que, a caminho de seu quartel, ao encontrar uma pobre velhinha sem forças para caminhar, desviava-se de seu caminho e a levava às costas até sua casa, passando a imagem de “solidariedade” que o governo chinês pretendia vender à população.

Vergueiro (2010), em suas pesquisas afirma que as HQs são válidos recursos metodológicos, que podem enriquecer a prática pedagógica, pois as auxiliam os alunos a ampliar a compreensão de conceitos e enriquecer vocabulário, obrigando-os a pensar na informação e contextualizá-la, tem caráter globalizador e também podem ser utilizada em qualquer nível escolar. O próprio autor explicita:

 [...] há varias décadas, as histórias em quadrinhos fazem parte do cotidiano das crianças e jovens sua leitura e muito popular entre eles. A inclusão das HQs na sala de aula não e objeto de qualquer tipo de rejeição por parte dos estudantes, que, em geral, as recebem de forma entusiasmada, sentindo-se, com sua utilização, propensos a uma participação mais ativa nas atividades em aula. As histórias em quadrinhos aumentam a motivação dos estudantes para o conteúdo das aula, aguçando sua curiosidade e desafiando seu senso crítico  (VERGUEIRO, 2010, p. 21).

 

Ainda segundo Vergueiro (2010), o professor ao selecionar o material a ser utilizado em sala de aula, deve levar em conta os objetivos, a temática, a linguagem e o desenvolvimento intelectual do aluno. De uma maneira geral o importante desta seleção é considerar as características dos diversos ciclos escolares. É imprescindível, também, que o professor se familiarize com a linguagem deste meio, conhecendo seu devido valor, para conseguir aproveita-lo em sua totalidade, pois:

[...] na utilização de quadrinhos no ensino, é muito importante que o professor tenha suficiente familiaridade com o meio, conhecendo os principais elementos da sua linguagem e os recursos que ela dispõe para representação do imaginário; domine razoavelmente o processo de evolução histórica dos quadrinhos, seus principais representantes e características como meio de comunicação de massa; esteja a par das especificidades do processo de produção e distribuição de quadrinhos; e, enfim, conheça os diversos produtos em que eles estão disponíveis (VERGUEIRO, 2010, p. 29)

É importante destacar que sem o direcionamento correto das HQs em sala de aula, não haverá nenhum benefício pedagógico, na utilização destas, pois os alunos somente terão um olhar de entretenimento sobre o material. Neste sentido destaca-se o papel do docente como mediador entre o conteúdo didático e as HQs, pois um bom professor precisa utilizar-se de ideias inovadoras para construir o saber histórico, sendo “promotor da união entre a competência acadêmica (domínio dos saberes) e a competência pedagógica (domínio da transmissão do saber)” (SCHIMIDT, 2006, p 56), fazendo conexões do conteúdo com o cotidiano dos alunos e ter a “capacidade de estabelecer uma espécie de comunicação individual com seu aluno, levando-o a ter intimidade com o passado” (IDEM)

OS QUADRINHOS COMO FONTE HISTÓRICA

A partir da reestruturação da historiografia, com o advento da Escola dos Annales, a noção do que pode ser usada como fonte histórica ampliou-se, sendo assim  pensamos que a historia em quadrinhos, possa ser enquadrada como uma fonte de pesquisa histórica, pois segundo Eisner; a história em quadrinhos é precursora da criação cinematográfica. Contudo, o mesmo autor critica a secundarização que, mesmo com a expressiva influência que os Comics estenderam para diversos tipos de público, ainda se revela com o número limitado de trabalhos sérios envolvendo-os (EISNER,1999). É um dado preocupante, pois acaba relegando alguns estudos ao campo amador, intenção esta que não seria muito rica para o mundo da arte sequencial. Além disto Gaiarsa aborda que : “Os acadêmicos dizem que os desenhos famosos das cavernas pré-históricas [...] que foram a primeira história em quadrinhos que já se fez, eram um ensaio de controlar magicamente o mundo‟. Ora . . . estes desenhos controlavam . . . a realidade e eram mágicos – sem mais.” (GAIARSA, 1970, p. 115).

A história em quadrinhos retrata a época em que foi produzia, bem como os pensamentos e paradigmas de uma determinada sociedade, assim como outros gêneros literários e o próprio cinema, segundo Barros (2010), não é possível a um autor se isolar de sua época e de outras épocas; à sua própria época ele é preso por um contexto que lhe impõe um tom; a todas as épocas ele está preso por uma rede de leituras pela qual se deixa capturar. Mesmo que resista a todas as influências autorais e se contraponha a todas elas – se tal fosse possível – neste caso ele também estará se deixando construir pelo contraste. Com esta complexidade poderemos perceber como, em relação à História Cultural, devemos estar preparados para nos municiar de múltiplas fontes, de modo a constituir uma serie de conexões entre história e ficção, além da apropriação de conceitos da linguagem das HQ’s, para conseguirmos extrair mais informações e dialogar com este tipo de fonte.

COM MAFALDA EM SALA DE AULA

Para falarmos sobre a personagem   Mafalda, precisamos também  conhecer seu criador, o cartunista  Joaquín Salvador Lavado, nascido no dia 17 de julho de 1932  na cidade de Mendoza, Argentina. Popularmente conhecido como Quino, recebeu o apelido desde pequeno para diferenciá-lo de seu tio Joaquín Tejón. Seus dois pais eram espanhóis de Andaluzia, mas ambos faleceram quando Quino ainda era criança.

Mafalda foi criada por Quino no ano de 1963, para uma campanha de publicidade de uma marca local de eletrodomésticos, e seu nome faz alusão a marca para atender um pedido publicitário de uma empresa de eletrodomésticos chamada Mansfield, com a especificação de que todos os personagens deveriam ter o nome começado com a letra “M”. Quino lembra-se de um filme chamado Dar la cara, baseado no romance de David Viñas, onde aparece um bebê chamado Mafalda, e acha esse nome simpático e expressivo, adotado-o para sua personagem principal. O cliente da marca, porém, recusa a ideia e Mafalda é arquivada, retornando apenas em  setembro 1964, no semanário argentino Primeira Plana , a partir daí  continuou fazendo um enorme sucesso e até hoje continua sendo a história em quadrinhos latino-americana mais vendida do mundo. Em 1965, Mafalda começou a ser publicada no jornal El Mundo e posteriormente na revista Siete Días Ilustrados. Por decisão de Quino, a última tirinha da Mafalda foi impressa em 25 de junho de 1973. (QUINO, 2010).

São várias as publicações de Mafalda em português do Brasil: os gibis “Mafalda” volumes 1 ao 10, o livro “Mafalda inédita”, o compilado de todas as tirinhas “Toda Mafalda”, entre outros. Em Portugal, o compilado foi lançado como “Toda a Mafalda” em comemoração aos seus 50 anos. Atualmente, as histórias da Mafalda também estão disponíveis em formato digital (em espanhol). (QUINO, 2010).

As historinhas da turma da Mafalda ganharam versão animada em duas oportunidades: em 1981/82 com um filme de 75 minutos produzido por Daniel Mallo (“Mafalda, la película” na Argentina ou “El mundo de Mafalda” na Espanha); e em 1993, com a produção de mais de cem episódios mudos de cerca de um minuto de duração, dirigidos pelo cubano Juan Padrón. (QUINO, 2010).

Mafalda é uma personagem, que retrata muito do contexto de sua criação, através dela percebemos  uma versão bem  irônica dos acontecimentos não somente da Argentina, país de origem do autor, mas também da própria América latina, no conhecido contexto histórico no qual as mãos de ferro dos governos ditatoriais dominavam o continente.

A expressão, como a fala da personagem é bem significativa. Observemos sua amiga inseparável, a liberdade. Esteticamente ela é representada como uma personagem bem pequena, analogia óbvia nos tempos, de ditadura, em que Mafalda era elaborada. Esta sutileza, e algumas vezes profunda ironia escancarada, traz-nos ricas análises através das tiras de Quino. Podemos observar o olhar do autor diante aos fatos históricos ocorridos em seu país e na própria América Latina e no mundo. Um exemplo disso transparece na tira a seguir:

Figura I : Fonte: QUINO, 2010.

 

Note-se aqui o recurso usado por Quino, a ausência de fala (no 3° quadrinho), sugerindo sentido ao silêncio da garota que, no caso, remete o leitor ao grau de estupefação diante a apresentação da Liberdade. Nesse caso, o silêncio não é vazio (ORLANDI, 2007), mas carregado de sentidos. Para o quadrinheiro, a ausência do traço característico da expressão oral, circunstancia o não dito como o silêncio que significa, deixando ao leitor o deleite de adivinhá-lo, no conjunto dos demais traços expressivos do rosto de Mafalda. Somente um gênero como as HQ, pode valer-se de um discurso com tal eloquência e singularidade.

São os quadrinhos fazendo com que a História continue exercendo o que FERRO (1983, p.12) chamaria de “uma dupla função, terapêutica e militante.” Nessas funções encontramos uma postura missionária, que exalta a magnificência de um passado glorioso e também a militância que denuncia e defende, apaixonadamente, um ponto de vista. Para Umberto Eco (1969 apud QUINO, 2010), para compreendermos a personagem  Mafalda, devemos traçar um paralelo entre ela e o norte-americano Charlie Brown, pois ambos são crianças, que vivem na mesma época histórica, porém apresentam realidades completamente diferentes:

 

Charlie Brown pertence a um país próspero, a uma sociedade opulenta na qual procura desesperadamente integrar-se mendigando solidariedade e felicidade; a Mafalda pertence a um país cheio de contrastes sociais que, no entanto, mais não pede que integrá-la e torná-la feliz, coisa que a Mafalda recusa, afastando todas as tentativas. O Charlie Brown vive no seu universo infantil de onde, em rigor, os adultos estão excluídos (apesar de as crianças aspirarem a comportar-se como adultos); a Mafalda vive em contínua dialética com o mundo adulto, que não estima nem respeita, antes pelo contrário, ridiculariza e rejeita, reivindicando o seu direito a permanecer uma menina que não quer assumir o universo adulterado dos pais.

 

Mafalda critica, ironiza e ridiculariza esse papel que ela não quer assumir. A ironia é um instrumento que o autor utiliza para compor o humor que ultrapassa a comicidade, leva a refletir sobre esse discurso aberto, no qual há uma mensagem de contestação, revolta e que clama por mudanças. Nas tirinhas apresentadas temos exemplos deste descontentamento da personagem.

 

Figura II Fonte: Quino, 2010.

De acordo com Hall (1999), o que marca a década de 1960 é a preocupação com os grupos minoritários, transformando de alguma forma as culturas de classe, gênero, etnia, raça e nacionalidade, as quais eram consideradas como estruturas sólidas no passado. Essas transformações mudaram também as identidades dos indivíduos abalando as estruturas. Em vários momentos temos também um panorama sobre a pequena burguesia que está se formando em toda a América-latina e os apelos de consumo desta sociedade: casa própria, automóvel, televisão, o que nesta época era bastante comum nos países subdesenvolvidos, demonstrando claramente a preocupação da classe média de poder ter alguma coisa que lhe atribua distinção social e econômica, como podemos ver nas seguintes tirinhas:

 

Figura IV. Fonte: Quuino, 2010

 

Além deste advento do poder de consumo e as questões das ditaduras na América-latina, Mafalda apresenta questões como as dificuldades para pagar as contas que as famílias tinham, aborda o imaginário quanto a Guerra Fria, o desemprego, as dificuldades para manter um status social ligado a posse de determinados bens de consumo. Sua família apresenta um caráter ambíguo ao se identificar com o capitalista que explora,  e sente receio em ser identificado com o proletariado, assim como toda a pequena burguesia da época, e embora deseje, nunca conseguira o status de alta burguesia. Desta forma reforçamos o potencial de fonte da HQ, pois a mesma nos apresenta o panorama historiográfico da época que o produziu, como podemos ver nestas tirinhas que abordam o imaginário relacionado com a Guerra Fria:

Figura V. Fonte: Quino, 2010.

Quanto ao imaginário, é interessante ressaltar que Cada sociedade possui seu imaginário específico e variável, podendo este ser, individual ou coletivo. Desta forma o que é realidade e o que é imaginário misturam-se e variam dependendo de diversos fatores. (PATLAGEAN, 1998). Para Assunção (2004), o imaginário é tão verdadeiro e real que ele utiliza o termo “vida concreta”[3]. O interessante das contestações de Mafalda é que elas não são apenas relativas a Argentina, mas também sobre todo o contexto em que a América-latina está envolvida, que é reflexo do cenário global, como podemos ver:

 

O universo da Mafalda não é apenas o de uma América Latina metropolitana e evoluída; é também de um modo geral e em muitos aspectos, um universo latino, e isso faz que ela surja mais compreensível do que muitas das personagens da banda desenhada norte-americana; enfim, a Mafalda é, em qualquer caso, um “herói do nosso tempo” e isto não parece uma qualificação exagerada para a pequena personagem de papel e tinta que Quino nos propõe. Já ninguém nega que a banda desenhada seja (quando atinge um alto nível de qualidade) uma observadora de costumes: e na Mafalda refletem-se as tendências de uma juventude inquieta, que assumem aqui o aspecto paradoxal de uma dissidência infantil, de um eczema psicológico de reação à comunicação de massas, de uma urticária moral provocada pela lógica dos blocos, de uma asma intelectual causada pelo cogumelo atómico. Já que os nossos filhos se vão tornar – por escolha nossa – outras tantas Mafaldas, não será imprudente tratarmos a Mafalda com o respeito que merece uma personagem real. (ECO, 1969 apud QUINO, 2010).

 

Mafalda posiciona-se em relação ao micro e ao macro universo por meio do questionamento acerca das atitudes das demais personagens com quem ela se relaciona: pais, professores, amigos (Susanita, Manolito, Felipe, Liberdade, Miguelito), seu irmão caçula (Guile), entre outros. Na opinião de Mafalda o mundo está doente, na condição de uma criança, coloca-se de forma reflexiva diante não só dos acontecimentos mundiais como também da postura dos outros em relação a estes, como podemos observar nas tiras, a seguir:

Figura VI. Fonte: Quino, 2010

Umberto Eco analisa está metáfora de o mundo está doente, trazida por Quino:

O mundo, o dos grandes, está doente. Sofre de distúrbios da circulação monetária e de uma infecção galopante que é consequência direta do moralismo sexo-fóbico: a superpopulação. Não vem nada a calhar. E não se percebe porquê. Isto é, a Mafalda não percebe. Nem poderia. As crianças valem-se da lógica, as normas econômicas e as repressivas nada têm de lógico. Dentro de alguns meses, quando tiver aprendido a ler, a Mafalda poderá consultar as publicações do Clube de Roma, os relatórios do MIT e os escritos de Reich Brown, Marcuse, Fromm. Então compreenderá. Compreenderá que não há nada a compreender para além da obtusidade dos homens, que é mesmo inexplicável e de proporções inconcebíveis, e compreenderá que as suas perguntas, pelo menos por agora, estão destinadas a continuar sem resposta. No entanto é das perguntas sem resposta que nascem as revoluções. . (ECO, 1969 apud QUINO, 2010)

Outro ponto que devemos ressaltar trata-se, do vestido da personagem, Mafalda sempre se apresenta trajada com um vestido vermelho.

Esta cor do vestido, sempre constante, remete-nos a uma ideologia atuante nesse contexto ditatorial tão repressor das ditaduras. Vermelho é a cor da bandeira comunista, a qual representa a revolução em busca da liberdade, vinda da Revolução Francesa e da Revolução Russa, o sangue derramado da oprimida classe operária. Todos estes pressupostos e dados históricos sobre as décadas de 60 e 70, apresentadas por Quino, através de Mafalda, constituem-se em uma ferramenta metodológica e uma fonte histórica extremamente rica para ser trabalhada em sala de aula, principalmente na disciplina de História.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Este artigo se propôs refletir sobre a importância das Histórias em Quadrinhos (HQs) como recurso didático nas aulas de História, bem como as possibilidades de utilização desse recurso, no que diz respeito a personagem Mafalda criada pelo cartunista Quino.

Como já visto, as tiras da Mafalda dialogam com seus vários contextos históricos, tanto com o de sua produção quanto com aquele em que o aluno está inserido. Se o olhar do estudante volve-se somente para o significante sem mobilizar significados, os vários discursos presentes nas tiras não se materializam nas leituras do aluno, para que estes possam compreender melhor a momento histórico em que estas tirinhas foram criadas e como estas representavam o imaginário e o contexto de sua época. A sala de aula configura-se, portanto um espaço de produção e diálogo de diferentes discursos e ideologias. Tanto os sujeitos alunos como o sujeito professor alternam-se nesse posicionar axiologicamente.

Através das análises realizadas nos PCN, compreendemos que o professor de História, tem o dever de fazer com que o aluno amplie a compreensão de sua realidade, confrontando-a e relacionando-a, para que se torne um cidadão crítico e atuante, percebendo-se como sujeito histórico. Para alcançar estes objetivos é papel do professor, segundo os PCN, trabalhar com os meios de informação que os alunos utilizam fora da escola como, cinema, fazendo-os refletir sobre a carga ideológica que estes trazem e o que eles representam.

Esperamos que essa pesquisa tenha contribuído para a compreensão da importância das Histórias em Quadrinhos como fonte histórica. Bem como tenha conseguido refletir os possíveis usos e aspectos que podem ser estudas dentro das mesmas. Possibilitando a compreensão da importância do planejamento prévio das atividades, reforçando que o professor é na verdade, um eterno pesquisador. Concluo a monografia com uma frase de Paulo Freire que se encaixa perfeitamente com estas considerações finais, “Sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino”.

 

 

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TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.

 

 

 

[1] Historiadora formada pela Universidade Feevale. Especializanda em Mídias na Educação (IFSUL), Ensino de Filosofia para Ensino Médio (UFSM) e Literatura Infantojuvenil (FISIG). Atualmente é professora no município de Campo Bom/RS. E-mail: vitoriawingert@hotmail.com

 

[2] Pedagogo formado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Especialista em TIC (FURG). Mestrando do PPG Processos e Manifestações Culturais. atualmente é professor no município de Campo Bom/ RS. E-mail: martinsjander@yahoo.com.br;

[3] Conforme Barros (2004, p.222) “De acordo com esta definição, existe uma interface possível do Imaginário não apenas com o campo das “representações”, mas também com o âmbito dos “símbolos”. Neste sentido,  deveremos lembrar que é possível se falar em “simbólico” apenas quando um objeto, uma imagem ou uma representação são remetidos a uma dada realidade, ideia ou sistema de valores que se quer tornar presente (a espada como símbolo da justiça). Uma imagem, portanto, pode se ver revestida de significado simbólico”.

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