03/11/2014

Demanda social: esse é um bom indicador para autorizar cursos superiores de Direito e Medicina?

Neste último ano uma indagação sobre os atos regulatórios da educação superior ganhou notoriedade: os cursos superiores devem ser autorizados apenas para locais nos quais há demanda comprovada? Este assunto é relevante não apenas por expor a discussão sobre os limites da intervenção do Estado na atividade de ensino mas, principalmente, por ser a base dos novos marcos regulatórios para cursos de Direito e de Medicina.

A demanda social é um artifício criado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) para tentar promover uma restrição à criação de novos cursos. Por este critério, deve ser analisado, antes de ser instalado um curso superior de Direito ou Medicina, o número de vagas totais oferecidas no local da oferta e, caso exista um número determinado de vagas por habitantes na região, os cursos novos poderão deixar de ser autorizados ou sofrerem restrições que não se aplicam aos demais cursos, já existentes. Por força de reiterados trabalhos conjuntos entre a OAB, CNS e MEC, este tema já consta de portarias do Ministério da Educação desde 2007, mas até este momento vinha sendo tratado como mais um requisito para a autorização de cursos.

A novidade, apresentada na legislação de 2013, foi o uso desse parâmetro como requisito prévio e obrigatório para abertura de cursos superiores de Medicina. E agora, para 2014, cogita-se uma ampliação do uso do critério da demanda social para guiar também a proposta de marco regulatório para os cursos de Direito.

Com relação aos cursos de instituições públicas esta parece ser uma opção razoável, pois seria sempre melhor que novos cursos promovidos pelo Estado atendessem regiões ainda carentes de oportunidades de educação superior. Mas para cursos de instituições privadas essa metodologia parece ser não apenas incoerente como também ilegal.

A incoerência, ou como preferem alguns juristas, a falta de razoabilidade, decorre do fato de que o direcionamento de novos cursos para locais mais carentes de educação superior pode reduzir excessivamente a concorrência nos locais em que já existem cursos instalados. E sem concorrência efetiva a qualidade e até mesmo a inovação podem ser desestimuladas, além, é óbvio, de possíveis aumentos injustificados de preços.

A ilegalidade decorre de problemas evidentes. O primeiro deles é o já mencionado confronto com o princípio da livre concorrência (Art. 170, IV, da Constituição de 1988) e o segundo, mais complexo, diz respeito a questão do planejamento da atividade pela instituição de ensino privada. Nos termos da Constituição de 1988 a atividade privada não deve ser alvo de planejamento determinante pelo Poder Público (Art. 174), por isso seria impossível que o Estado impusesse às instituições de ensino um local de funcionamento. Nesse sentido, rejeitando restrições municipais ao local de funcionamento de estabelecimentos de saúde privados (farmácias), que chegou a classificar como “reserva de mercado” e “concentração capitalista”, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou nos processos RE 199517, RE 213482, RE 198107, RE 193749 e RE 438485, bem como por meio da súmula 646 de 2003.

O terceiro entrave legal, apesar de não estar diretamente no texto constitucional, decorre da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que não menciona restrições para oferta de cursos no município-sede das instituições de ensino. Esta omissão por si só é relevante, mas a contradição torna-se ainda mais clara no caso de universidades, pois a LDB, regulamentando a autonomia constitucional da universidades, prevê que essas instituições podem “criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior”. Ou seja, a LDB é expressa ao permitir a criação de cursos superiores pelas universidades em sua sede, independentemente de demanda social.

Em contraponto, o mais consistente fundamento legal para a utilização da demanda social é a Lei do Programa Mais Médicos, que prevê: “A autorização para o funcionamento de curso de graduação em Medicina, por instituição de educação superior privada, será precedida de chamamento público” (Art. 3º, da Lei 12.871/2013). Esta regra parece indicar que o Poder Público considera o ensino privado uma espécie de serviço público de titularidade da União, uma atividade que teria de ser licitada. Mas a liberdade de inciativa, expressamente consagrada na Constituição (Art. 209), é o princípio que deve guiar as atividades de ensino. Por isso, a norma que deveria dar legalidade ao uso da demanda social é, na verdade, um quarto problema jurídico, que resulta de uma grave falha de interpretação a respeito do que pode, ou não, ser objeto de certame licitatório.

Na prática, esta metodologia implementará procedimentos de concorrência pública - “chamamento público” - para instalar novos cursos de Direito e Medicina, que criarão para os vencedores desses certames pequenos monopólios. Além disso, os cursos já existentes passarão a atuar em regimes de competitividade ainda mais restrita, que podem gerar os efeitos negativos já mencionados.

Enfim, estamos no limiar da implantação de um regime aparentemente ilegal e com efeitos - de longo prazo, principalmente - nocivos para a qualidade e os preços do ensino superior nas áreas de Direito e Medicina. De fato, o próprio Conselho Nacional de Educação (CNE) já se mostrou avesso a este tipo de critério de avaliação. Segundo o Conselho o argumento da demanda social - que hoje é usado pela OAB - seria: "...extremamente perigoso, pois, a pretexto de se preservar a qualidade, o agente pode reservar mercado para as instituições já estabelecidas, bem como servir aos interesses das corporações profissionais (Parecer CNE/CES 146/2010). E, dito isso, o CNE concluiu: "...tudo que se espera do MEC é a instigação da concorrência pela qualidade, pela disputa entre os cursos pelo primeiro lugar em qualidade, o que não é possível com o falso argumento da saturação, que serve apenas de pretexto para impedir que cursos bem avaliados e com potencial de excelência possam se estabelecer e superar os índices daqueles que já são oferecidos" (Parecer CNE/CES 146/2010).

Tais palavras, agora, estão esquecidas; o CNE nada fez ao saber das novas medidas para cursos de Medicina, até porque parece que nos últimos anos aceita bem o fato de sequer ser consultado em questões dessa natureza. Noutro extremo, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que se mostrou extremamente atuante em face de restrições concorrenciais que decorrentes de fusões de instituições de ensino, parece não ter sido informado dessa mudança regulatória. E as ilegalidades e incoerências tendem a ser esquecidas.

Ao vermos detalhada toda essa situação deveríamos pensar em abandonar o critério de demanda social? Talvez não. Identificar essas carências regionais pode ser parte de um projeto virtuoso, desde que as imposições de oferta sejam substituídas por medidas indicativas, incentivos claros para quem desejar aderir. Podem ser oferecidas facilidades, como convênios e instalações hospitalares já estruturadas para parcerias ou podem ser simplesmente reduzidos os prazos de credenciamento da IES no local e autorização do curso. E a partir daí, na disputa por esses incentivos, podem ser criados verdadeiros certames licitatórios, independentemente da instalação de cursos em outras localidades. Pequenos empurrões na direção correta, que não retirem das Instituições de Ensino a possibilidade de competir e fazer suas próprias escolhas, podem ser bem mais produtivos do que uma intervenção estatal pesada.

Edgar Gaston Jacobs - edgar@jacobsadv.com.br

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