23/03/2006

Currículo integrado por Competências Profissionais

Currículo integrado por Competências Profissionais: reflexão sobre o trabalho desenvolvido na Faculdade de Medicina de Marília (Famema)
Este trabalho tem como objetivo elaborar um conceito de competência profissional no curso de Medicina da Famema, considerando que competência é um termo polissêmico e que existe uma confusão no entendimento das terminologias: capacidade, habilidade, desempenho, tarefa e objetivo. Vários autores foram consultados para auxiliar no esclarecimento da terminologia empregada bem como no desenvolvimento do organograma curricular orientado por competência, para as seis séries do curso Médico. A abordagem dos mecanismos de avaliação foram escritos em consonância com a implementação adequada do modelo curricular com o emprego de métodos ativos de ensino/aprendizagem contribuindo para a formação de profissionais de saúde, de acordo com as diretrizes curriculares dos Ministérios da Saúde, Educação e Cultura. A literatura nacional não apresentou relatos de currículos de cursos médicos orientado por competências profissionais o que justifica este como fruto de experiência da Famema nos últimos dois anos.

INTRODUÇÃO
Em 1997, a Faculdade de Medicina de Marília (Famema) iniciou o desenvolvimento de um novo modelo curricular no curso de graduação, tendo como um de seus eixos centrais a metodologia da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP). Este currículo, centrado no estudante e orientado à comunidade; fundamentava-se nos princípios de educação de adultos e buscava uma abordagem integrada dos problemas de saúde, nas suas dimensões biológica, psicológica e social.

A partir desta mudança o currículo passou a ter uma constante avaliação, o que permitiu a sua transformação contínua através de um processo de construção coletiva e democrática, afinada às necessidades e requerimentos da sociedade e atualizada em função da evolução da ciência e tecnologia.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos da área da saúde1 lançadas no ano de 2001 indicaram uma concepção mais ampla de saúde e estabeleceram como horizonte desejável para a organização dos cursos os currículos integrados, que possibilitassem a superação da organização disciplinar e a articulação de várias disciplinas em torno de temáticas relevantes e estimulantes. Apontaram também como uma necessidade, um papel ativo dos estudantes no processo de ensino/aprendizagem propondo uma mudança da ênfase nos conteúdos para o processo de aprendizagem ativa e independente e a superação da dicotomia entre teoria e prática valorizando o trabalho articulado com os serviços de saúde e populações. Isto corroborou o currículo já desenvolvido na Famema lançando-nos um novo desafio: o de trabalhar um currículo integrado orientado por competências profissionais e baseado em necessidades de saúde da população buscando a integralidade da atenção.

Se considerarmos que a concepção de saúde tem como referência doutrinária a Reforma Sanitária e como estratégia de reordenação setorial e institucional o SUS, torna-se necessário pensar uma formação de trabalhadores em saúde "inspirada no paradigma da promoção da saúde que aponta para a multisetorialidade, de um lado, e a interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade, de outro" (Brasil.MEC.MS)2. Para tanto, os trabalhadores devem ser capazes de desenvolver um processo que possibilite identificar, promover e gerir os saberes através da mobilização de recursos que levem às competências profissionais3.

A noção de competência começou a ser utilizada na Europa a partir de 1980. Originada das Ciências da Organização desenvolveu-se com uma noção polissêmica envolvendo várias acepções e abordagens. Entretanto, segundo Perrenoud4 não existe uma conceituação clara e partilhada das competências profissionais, e isto dificulta muito o entendimento do que é um currículo orientado por competências, sobretudo devido às confusões de terminologia quanto a competência e habilidade, desempenho e objetivo, capacidade e recurso ou atributo, competência e desempenho.

Além disto, existem duas linhas principais de concepção de competências: a Escola Francesa, que enfatiza a vinculação entre trabalho e educação, considerando as competências como resultado da educação sistemática, valorizando o modo como as escolas enriquecem o repertório de habilidades dos estudantes. E a Escola Britânica, que define competências a partir do mercado de trabalho e enfatiza fatores ou aspectos ligados a descritores de desempenhos requeridos pelas organizações produtivas, privilegiando os comportamentos observáveis. Apesar destas diferenças, ambas consideram competência como capacidade pessoal de articular saberes como fazeres característicos de situações concretas de trabalho.

Por isso, para entender as mais diversas definições de competência que podem ser encontradas é importante esclarecer as terminologias mais utilizadas em cada uma delas. No Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa5-12 encontram-se as definições de competência e dos outros termos que a ela estão relacionados:

. Competência. [Do lat. Competentia] S.f. "Qualidade de quem é capaz de apreciar e resolver certo assunto, fazer determinada coisa; capacidade, habilidade, aptidão"5;
. Capacidade [Do lat. Capacitate] S.f. "Qualidade que uma pessoa ou coisa tem de possuir para um determinado fim; habilidade, aptidão"6;
. Hábil [Do lat. Habile] Adj. "Que tem aptidão para alguma coisa; competente, apto, capaz"7;
. Aptidão [Do lat. Aptitudine] S.f. "Disposição inata; habilidade ou capacidade resultante de conhecimentos adquiridos"8;
. Atributo [Do lat. Attributo] S.m. "Aquilo que é próprio de um ser; qualidade atribuída ao sujeito"9;
. Recurso [Do lat. Recursu] S.m. "Auxílio, ajuda, socorro, proteção; meio para resolver um problema"10;
. Desempenho [Dev. De desempenhar] S.m. "Execução de um trabalho, atividade, empreendimento, etc. que exige competência e/ou eficiência"11;
. Tarefa [ do ár. Ocidental Taiahâ] S.f. "Trabalho que se deve concluir em determinado prazo"12.

Pode-se então analisar algumas das definições de competência que vem sendo empregadas:

Segundo Perrenoud4, competência em educação é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos - como saberes, habilidades e informações - para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações.
Para DeLuis3 ,saberes ou conhecimentos formais, que podem ser traduzidos em fatos e regras, o saber fazer, que pertence à esfera dos procedimentos empíricos, como as receitas, os truques de ofício, e que se desenvolvem na prática cotidiana de uma profissão e ocupação; finalmente o saber-se, compreendido como saber social ou do senso comum, que mobiliza estratégias e raciocínios complexos, interpretações e visões de mundo.

Conforme Ramos13 , um saber interiorizado de aprendizagens orientadas para uma classe de situações escolares ou profissionais que permite ao indivíduo enfrentar situações e acontecimentos com iniciativa e responsabilidade.

De acordo com Moretto14, competência é a capacidade do sujeito de mobilizar recursos (cognitivos) visando abordar uma situação complexa.

Observamos que todas as definições convergem na capacidade de mobilizar recursos sejam eles educacionais ou profissionais. Para tanto, torna-se necessária a transformação curricular. Segundo Ramos15, a única maneira de gerar um marco curricular é produzir um forte processo de análise sobre os atributos subjacentes à competência.

Aqui encontramos um dos pontos de divergência mais freqüentes entre as definições. O uso de "recursos" e "atributos" como sinônimos. Se considerarmos que o atributo por definição é aquilo que é próprio de um ser; qualidade atribuída ao sujeito, seria mais lógico utilizar o termo recurso já que este se refere a auxílio, ajuda, socorro, proteção, meio para resolver um problema. Entretanto, seja qual for o termo utilizado o importante é que ele não se refira apenas as questões técnicas que dão significado a Medicina e Enfermagem, mas que possam ir além no reconhecimento das questões psico/socio/culturais inerentes ao processo saúde/doença. Os (recursos) ou atributos segundo Gonzci e Athanasou16 envolvem saberes teóricos e práticos, englobando conhecimento de toda ordem, as habilidades e os valores. Portanto, a competência se torna perceptível quando esses recursos são colocados a serviço de algo ou alguém (das situações concretas da vida e/ou escolares e/ou trabalho)15.

Outras definições poderiam ser escritas, mas para isso segundo Zarafian17 é necessário que se faça uma clara distinção entre o que é competência no singular e o que são as competências no plural, um outro ponto de divergência. Segundo ele, competência exprime uma mudança essencial nas organizações e nas relações sociais, e as competências tratam das modificações nos conteúdos profissionais.

A nosso ver, ambas definições podem coexistir uma vez que as profissões, sobretudo na área da saúde, sofrem processos contínuos de transformação na sua organização e no modo como se relacionam com a sociedade. Além disto, os conteúdos profissionais sejam eles cognitivos ou psicomotores são transformados tão rapidamente que o médico deve se valer de estratégias específicas de abordagem como a Medicina Baseada em Evidências no sentido de acompanhar o crescimento vertiginoso da área da saúde.

É necessário também comentar a relação e/ou distinção entre objetivos e competência. Enquanto alguns autores como Malgraive18 consideram que a problemática está ultrapassada uma vez que a competência toma o lugar da noção de comportamento antes associada aos objetivos, outros como Perrenoud4 consideram que falar de competência não acrescenta muita coisa à idéia de objetivos, uma vez que pode-se ensinar através de objetivos sem se preocupar com a sua mobilização diante de situações complexas, e que portanto a associação de uma competência a um simples objetivo de aprendizagem sugere erradamente, que cada aquisição escolar verificável é uma competência.

A diferença entre objetivos comportamentais e competências sob a ótica psicopedagógica é que a competência preocupa-se fundamentalmente com o domínio cognitivo que sustenta o desempenho ou o comportamento com a inteligência prática, ou a estrutura e o funcionamento da competência ou capacidade; enquanto os objetivos comportamentais confundem o comportamento com o próprio domínio cognitivo15.

Assim sendo, como as práticas por si só não ditam objetivos de formação, fica mais claro se conseguirmos vincular a idéia de competência ao desempenho necessário para realizá-la. Ou seja, o desempenho passa a ser um indicativo, ainda que indiretamente medido, da competência esperada, identificando o uso que o sujeito faz daquilo que sabe (a articulação e a mobilização das capacidades ou dos saberes em uso).

DEFININDO COMPETÊNCIAS PROFISSIONAIS NA FAMEMA
Para propiciarmos o avanço no desenvolvimento curricular da Famema optamos pela seguinte definição de competência: a competência profissional em saúde é a capacidade circunstancial de mobilizar, articuladamente, os recursos cognitivos, psicomotores e afetivos, visando a abordagem ou resolução de uma situação complexa de vigilância de saúde individual ou coletiva, e gestão do trabalho" (Fig. 1). Este conceito relaciona três aspectos importantes : o primeiro refere-se a capacidade de entender a competência como uma capacidade do sujeito - ser capaz de; o segundo é ligado ao verbo mobilizar, que significa movimentar força interior, o que é diferente de deslocar que seria transferir de um lado para o outro; e finalmente o terceiro que está ligado a palavra recursos, que aqui refere-se aos cognitivos, psicomotores e afetivos. Além disto, o conceito está também vinculado à sua finalidade, ou seja, a abordagem e resolução de situações complexas14.

Esta definição nos dá uma abertura de modificação do paradigma de formação profissional em saúde. Isto entretanto não significa dizer que médicos deixem de ser médicos mas que o sejam de uma outra forma. É acreditar que o sujeito da formação e futuro profissional passa a ser um ponto de convergência de saberes e não apenas técnicas, e que estes saberes serão mobilizados e utilizados articuladamente a serviço da sociedade. Ser competente em algo, implica aludir a esta convergência, e não à soma de cada um dos elementos envolvidos, ou à execução parcial de cada um deles. É esta convergência que dá sentido, limite e alcances à competência15.

As competências escolhidas referem-se às áreas de vigilância individual ou coletiva de saúde e gestão do trabalho e expressam o desejo de formação de um profissional de saúde capaz de desempenhar com sucesso seu trabalho na sociedade. Sendo que este desempenho nada mais é do que a expressão concreta dos recursos que o indivíduo articula e mobiliza na vivência do mundo do trabalho.

Consideramos ainda que os recursos mesmo tendo um conteúdo subjetivo e individual são adquiridos ao longo da trajetória da vida profissional, através da partilha de experiências e práticas coletivas, possibilitando quando mobilizados articuladamente, a verificação dos desempenhos e a inferência da competência profissional.. Para tanto, as tarefas envolvidas e necessárias a este processo foram distribuídas nas áreas de vigilância à saúde e organização e gestão do trabalho da seguinte maneira:


A - Vigilância à Saúde 1º - Cuidado ás necessidades individuais de saúde, em todas as fases do ciclo de vida em diferentes contextos e cenários de forma a identificar necessidades de saúde, formular o problema do paciente, elaborar e executar o plano de cuidado;
2º - Cuidado às necessidades coletivas de saúde, em diferentes contextos e cenários, de forma a identificar necessidades coletivas de saúde, formular o problema de grupo de pessoas, elaborar e executar o plano de intervenção.

B - Organização e Gestão do trabalho 1º - Organizar o trabalho em saúde
2º - Avaliar o trabalho em saúde
Portanto, ao optarmos por este novo paradigma a pergunta que devemos fazer é qual será o impacto destas modificações na formação e realização do trabalho profissional, sobretudo porque formar orientado por competências profissionais não significa formar através de um conjunto de tarefas e/ou atividades previamente descritas. Segundo Deluis3 ao se determinar as competências profissionais alguns aspectos devem ser considerados: 1º - como as competências se estruturam; 2º - como são adquiridas e 3º - que sujeitos sociais determinam quais as competências necessárias ao trabalho e os seus respectivos conteúdos.

Por isso, antes de se pensar em competência profissional é necessária uma reflexão acerca da competência humana que torna-se pano de fundo de onde se desdobram todas as demais competências. É necessário compreende-la como um conceito político/educacional abrangente, como um processo de articulação e mobilização gradual e contínua de conhecimentos gerais e específicos, de habilidades teóricas e práticas, de hábitos e atitudes e de valores éticos, que possibilite o exercício eficiente de seu trabalho, a participação ativa, consciente e crítica no mundo do trabalho na esfera social, além de sua efetiva auto-realização3 .

Para que isto possa acontecer, as modificações devem iniciar-se com uma revisão do papel do estudante e das práticas pedagógicas. Segundo Perrenoud4 a formação orientada por competências deve se resumir sob a denominação geral de pedagogia diferenciada, tendo como fundamentos: processo centrado mais na aprendizagem do que no ensino, valorização do aluno como sujeito da aprendizagem e construção significativa do conhecimento. Isso pressupõe compreender o currículo de formação do sujeito trabalhador como "seqüência de experiências de vida que contribuíram para forjar sua personalidade, seu capital de conhecimentos, suas competências, sua relação com o saber e sua identidade."

Além disto, os espaços formativos devem constituir-se como "organizações qualificadoras", propiciando aos educandos condições de participação, de diálogo, de negociação e de intervenção, o que implica na modificação não apenas das estratégias metodológicas mas numa redefinição do papel dos docentes3.

Acreditando portanto que para formarmos um profissional com competência devemos educá-lo na competência, uma série de modificações curriculares e do papel de estudantes e docentes tornam-se necessárias. Na Famema além de um método pedagógico ativo e centrado no estudante o mesmo é fundamentado na prática profissional baseado nas necessidades de saúde da população o que propicia a aprendizagem significativa através da vivência de situações reais.

O objetivo principal é a produção e mobilização do conhecimento referenciado no modelo de vigilância a saúde, a partir da reflexão sobre ela, buscando a transformação da prática profissional e da formação de profissionais de saúde, dos processos de trabalho e da qualidade de vida e de saúde das pessoas e da população.

A estrutura curricular da Famema é anual (seriada) e está organizada em duas unidades educacionais longitudinais complementares: a Unidade Educacional Sistematizada (UES) e a Unidade de Prática Profissional (UPP). Na UES pretende-se que o estímulo para aprendizagem seja a representação da realidade vivida na UPP. Esta possibilidade de abordagem dos casos reais sistematizados pelos estudantes torna-se o elo de integração do conhecimento estruturado e da UPP sem perder a relação com as experiências previamente vividas. Nas duas primeiras séries os estudantes são expostos às situações reais com um enfoque de atenção primária quando são encaminhados para o serviço do Programa de Saúde da Família (PSF). Nas séries subseqüentes freqüentam os serviços de saúde de atenção secundária e terciária, sempre sob a supervisão de um docente facilitador. Concomitantemente, os problemas baseados nas necessidades de saúde da população são discutidos em sessões de tutoria (8 estudantes por grupo) na presença de um professor tutor.

A integração destas unidades educacionais aprimoram, a partir das experiências vividas, os recursos cognitivos, afetivos e psicomotores. A medida que os estudantes avançam nas séries do curso, esses recursos tornam-se cada vez mais vastos, abrangentes, integrados e disponíveis para serem mobilizados nos momentos de necessidade de forma crescente. Cabe ressaltar que a possibilidade de mobilização desses recursos não depende somente dos acúmulos de conhecimentos e saberes mas depende fundamentalmente da capacidade do estudante em lidar com suas emoções originadas no contato com o paciente. As emoções originadas nessas circunstâncias podem atrapalhar a mobilização articulada de recursos necessários, prejudicando o desempenho.


AVALIANDO AS COMPETÊNCIAS PROFISSIONAIS
Com esta mudança do paradigma de ensino/aprendizagem nos defrontamos com os processos de avaliação. Numa cultura onde avaliamos e somos avaliados diariamente dentro e fora da escola e onde, muitas vezes, o que mais importa é ser o melhor cognitivamente, conceber uma avaliação que considere não apenas este aspecto, mas também os afetivos e psicomotores de maneira articulada é o grande desafio. Portanto, o que define a natureza e o processo do sistema de avaliação é o propósito.

Na avaliação de um estudante com um currículo orientado por competências profissionais deve pretender-se a verificação das competências adquiridas durante o processo de aprendizagem, isto é, a capacidade do indivíduo de mobilizar e articular, com autonomia, postura crítica e ética, seus recursos subjetivos, bem como os recursos constituídos ao longo do processo de ensino/aprendizagem - conhecimentos, habilidades, qualidades pessoais e valores - a que se recorre no enfrentamento de determinadas situações concretas15.

Entretanto, culturalmente atribuímos ou recebemos como resultado dos processos de avaliação, as notas, que na maioria das vezes são expressas em números ou letras e nos fazem sentir, mais ou menos capacitados, quando comparados. Assim, temos a pretensão de considerar que 9,25 é melhor que 9,0 e de que A é melhor que B. Guilford19 diz que medir significa atribuir um número a um evento, fenômeno ou objeto, de acordo com uma regra logicamente aceitável, transformando a medida numa operação de descrição quantitativa da realidade. Muitos professores ainda se utilizam deste processo e consideram que ao atribuir um número como medida estarão certificando o aprendizado.

O problema é como avaliar e julgar uma coisa que não pode ser mensurável por escalas métricas, como é o caso das competências.

É importante lembrar que quando se fala em medida, não se deve referir apenas aos registros numéricos, mas nas medidas de qualidade. Como a competência não trata de um conhecimento exato e sim de uma questão humana, ela não pode ser medida pelos sistemas tradicionais de pontuação, e sim por métodos qualitativos de julgamento, que implicam também em aspectos subjetivos. Esta medida deve ser representada pelos desempenhos demonstrados pelo estudante e pelos conhecimentos que ele possui20.

Além disto, cabe ressaltar que ao falarmos de avaliação devemos considerar o avaliado e o avaliador. Isto porque mudar o paradigma de ensino/aprendizagem exigem por parte de ambos uma nova postura que seja capaz de minimizar a competição entre estudantes e docentes e das diversas áreas de conhecimento.

Considerando portanto que certificação significa atestar a certeza, afirmar, alguns questionamentos foram levantados por Depresbiteris20.

1 - como medir competências?
2 - Que grau de subjetividade vem carregado na mensuração de atitudes de trabalho?
3 - como ser justo na medida do saber fazer, respeitando as várias estratégias de resolução de um problema que difere de pessoa para pessoa?
4 - que indicadores escolher para observar?
5 - que critérios determinar?
As respostas para estes questionamentos passam antes de tudo pelo planejamento do processo de formação. Neste sentido, segundo Hernandez21 devemos considerar 3 dimensões fundamentais ao avaliar:

1. diagnóstico inicial - que permite detectar os (recursos) atributos que os estudantes já possuem, contribuindo para a estruturação do processo de ensino/aprendizagem a partir do conhecimento de base;

2. caráter formativo - que permite identificar o nível de evolução dos estudantes no processo de ensino/aprendizagem. Isto pode ser feito não sob a ótica de análise dos trabalhos bem ou mal realizados, mas levando-se em conta a exigência cognitiva das tarefas propostas, a detenção dos erros conceituais observados e as relações não previstas, levando subsídios para o professor e para o estudante, que ajudem este último a progredir no processo de apreensão dos conhecimentos, desenvolvimento e aprimoramento das destrezas, construção de valores e qualidades pessoais;

3. caráter recapitulativo - que apresenta-se como um processo de síntese de um tema, um curso ou um nível educativo.

Os estudantes e docentes da Famema avaliam e são avaliados em diversos momentos e nos diversos cenários de ensino/aprendizagem. Estas avaliações são referenciadas em critérios de satisfatório (S) e insatisfatório (I) e enfocam o desenvolvimento dos recursos cognitivo, psicomotor (habilidades) e afetivo (atitudes).

A avaliação critério-referenciada permite que o estudante conheça o desempenho considerado satisfatório, orientando sua aprendizagem. Além disto, favorece que diferentes coortes (turmas) alcancem padrões semelhantes de desempenho, contribuindo para o estabelecimento de excelência. Permite, ainda, um acompanhamento da progressão das aprendizagens, reduz a competição entre os estudantes e estabelece um diálogo mais adequado entre professores e estudantes.

O processo está dividido em avaliações de caráter formativo e somativo. O formativo (psicomotor e afetivo) é composto por instrumentos com campos abertos e fechados que possibilitam a abordagem de fortalezas e fragilidades durante o desenvolvimento das atividades. O somativo (cognitivo) é organizado pela equipe construtora da unidade e avalia a progressão do estudante ao longo da mesma.

Ao contrário de outras escolas médicas com metodologias ativas de ensino/aprendizagem, a Famema optou por não atribuir nota e peso específico a cada etapa da avaliação. Ou seja, a progressão do estudante depende da aprovação (S) em todos os instrumentos que devem ser complementares nos aspectos formativo/somativo. Assim, no que se refere a avaliação formativa, o caráter somativo é a sua realização. Já a avaliação somativa tem nas oportunidades de recuperação o seu caráter formativo. Cabe ressaltar que todas a etapas da avaliação propiciam oportunidades reais de recuperação com prescrições individualizadas.

Ao optarmos por este tipo de avaliação submetemos estudantes e docentes a uma nova realidade geradora de dúvidas e angustias, mas ao mesmo tempo, capaz de proporcionar um novo olhar sobre como avaliar ou ser avaliado, como dar ou receber críticas.


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existem uma série de preocupações a respeito da implementação de currículos orientados por competências profissionais, sobretudo devido ao desconhecimento e resistência por parte dos docentes e organizadores, sobre o impacto destes nos processos de trabalho. As exigências crescentes da população acerca do atendimento na área da saúde propiciam condição ímpar para uma reflexão mais aprofundada do Sistema Único de Saúde e da sua implementação de fato. Implementação esta que verdadeiramente institua os princípios de equidade, universalidade e integralidade.

O papel das escolas médicas é o de contribuir para que a formação não se restrinja apenas às condições técnicas e/ou instrumentais, mas que possibilite a formação de médicos mais humanos, comprometidos com pessoas e não somente doenças. Alguém que possa compreender seu papel ético/político e que tenha a capacidade de trabalhar os fatos da vida cotidiana considerando o outro nas suas necessidades de saúde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CES 1.133/2001, de 7 de agosto de 2001: diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em enfermagem, medicina e nutrição. [Internet]. Brasília; 2001. [citado 2005 maio 24]. Disponível em: http://www.mec.gov. br/Sesu/diretriz.shtm
2. Brasil. Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Organização Pan-Americana da Saúde. Diretrizes curriculares nacionais para o ensino técnico: área da saúde [monografia na Internet]. Brasília:; 1999. [citado 2005 maio 24]. Disponível em: http://www.bvseps.epsjv.fiocruz.br/html/pt/DiretrizesCurric.Nac.paraEnsinoT%E9cnico%C1readeSa%FAde1999.pdf

3. Deluiz N. A globalização econômica e os desafios à formação profissional. Boletim Técnico do SENAC [periódico na Internet]. 1996 maio/ago. [citado 2005 maio 24]; 22(2): [cerca de 8 p.]. Disponível em: http://www.senac.br/informativo/BTS/222/boltec222b.htm

4. Perrenoud P. Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: Artmed; 1999.

5. Ferreira ABH. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1986. Competência; p. 440.

6. Ferreira ABH. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1986. Capacidade; p. 340.

7. Ferreira ABH. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1986. Hábil; p. 880.

8. Ferreira ABH. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1986. Aptidão; p. 150.

9. Ferreira ABH. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1986. Atributo; p. 197.

10. Ferreira ABH. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1986. Recurso; p. 1466.

11. Ferreira ABH. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1986. Desempenho; p. 556.

12. Ferreira ABH. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1986. Tarefa; p. 1651.

13. Ramos MN. Qualificação, competências e certificação: visão educacional. In: Anais do Seminário Certificação de Competência para a Área da Saúde: os desafios do PROFAE; 2001 nov. 7-8; Brasília, Brasil. Brasília: Ministério da Saúde; 2001. p. 37-45.

14. Moretto VP. Prova: um momento privilegiado de estudo não um acerto de contas. 3a ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora; 2002.

15. Ramos MN. Da qualificação à competência: deslocamento conceitual na relação trabalho educação. [tese]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2001.

16.Gonzci A, Athanasou J. Instrumentación de la educación basada en competencias: perspectivas de la teoria y la práctica en Australia. En: Arguelles, A. compilador. Competencia laboral y educación basada en normas de competencia. México: Limusa; 1996.

17. Zarafian P. A gestão da e pela competência. In: Anais do Seminário Internacional Educação Profissional, Trabalho e Competências; 1996 nov. 28-29; Rio de Janeiro, Brasil. Rio de Janeiro: SENAI/DNCIET; 1998.


18. Malgraive G. Ensinar adultos. Porto: Porto Editora; 1995.

19. Guilford JP. Cognitive psychological's ambiguities some suggested remedies. Psychol Rev.
1982; 89(1):48-59.

20. Depresbiteris L. Avaliação educacional em três atos. São Paulo: Editora SENAC; 2000.

21.Hernández D. La certificación por competencias: un desafio. In: Anales del Reunión de Dirigentes de Instituciones de Educación Tecnologica; 1999 dic. 1-3; Aracaju, Brasil. Aracajú: CEFET; 1999.


***
Sobre os autores:
Prof. Dr. Hissachi Tsuji Mestre e Doutor em Clínica Médica
Diretor de Graduação
Faculdade de Medicina de Marília
Av. Monte Carmelo, 800 - Marília - Sp - 17519-030

Prof. Dr. Rinaldo Henrique Aguilar-da-Silva Mestre e Doutor em Genética
Assessor da Direção de Graduação
Coordenador da Comissão Própria de Avaliação
Faculdade de Medicina de Marília
Av. Monte Carmelo, 800 - Marília - Sp - 17519-030



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