COOPERATIVAS DE RECICLAGEM: ORGANIZAÇÃO, DESAFIOS E CONTRIBUIÇÃO SOCIOAMBIENTAL E EDUCACIONAL.
Ivan Carlos Zampin;
Elza Maria Simões;
Resumo
As cooperativas de reciclagem constituem um arranjo socioeconômico que articula geração de renda, inclusão social e preservação ambiental. Compostas majoritariamente por catadores de materiais recicláveis, essas organizações assumem papel estratégico na gestão integrada de resíduos sólidos urbanos e na promoção da economia circular. O presente trabalho analisa a constituição, funcionamento e impactos das cooperativas de reciclagem no Brasil, discutindo os principais desafios estruturais enfrentados por esses empreendimentos, tais como a instabilidade financeira, a precariedade da infraestrutura e a necessidade de capacitação contínua. Metodologicamente, o estudo apoia-se em revisão bibliográfica, legislação vigente e relatórios técnicos. Os resultados indicam que, apesar dos avanços obtidos com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010), as cooperativas ainda se encontram em posição fragilizada na cadeia produtiva da reciclagem e que o fortalecimento institucional e o apoio estatal contínuo são condições indispensáveis para consolidar essas iniciativas como agentes essenciais da sustentabilidade urbana.
Palavras-chave: cooperativismo; reciclagem; economia solidária; catadores; sustentabilidade urbana.
Introdução
Nas últimas décadas, o aumento exponencial da produção de resíduos sólidos urbanos tem se consolidado como uma das problemáticas ambientais e sanitárias mais urgentes da sociedade contemporânea. O crescimento demográfico, aliado a um processo de urbanização acelerado e não planejado, e a consolidação de um padrão de consumo linear baseado em produtos descartáveis, intensificaram drasticamente o volume de lixo gerado cotidianamente. Segundo o mais recente relatório da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais - ABRELPE (2023), o Brasil produz anualmente mais de 82 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos. Contudo, em um cenário de profundas contradições, apenas 4% desse montante é efetivamente reciclado, embora a própria entidade estime que aproximadamente 40% de todo o resíduo gerado seja constituído por materiais potencialmente recicláveis. Este dado evidencia uma lacuna significativa entre o potencial de reaproveitamento e a realidade operacional da gestão de resíduos no país.
Diante desse panorama crítico, as cooperativas de catadores de materiais recicláveis emergem como uma alternativa socioeconômica vital, capaz de articular de forma sinérgica o desenvolvimento social inclusivo com a preservação ambiental. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela Lei nº 12.305/2010, representa um marco legal ao reconhecer explicitamente o papel dos catadores como agentes fundamentais na cadeia de valor da reciclagem. A lei destaca sua contribuição indispensável para o fechamento do ciclo dos materiais, promovendo o reaproveitamento de recursos naturais e a substancial redução do volume destinado a aterros sanitários e lixões. Como salienta Dias (2011, p. 78), “a inclusão dos catadores na gestão dos resíduos é uma questão não apenas ambiental, mas de justiça social”, ressaltando a dimensão de reparação histórica e inclusão cidadã inerente a esse processo.
Nesse sentido, as cooperativas se constituem muito além de meros entrepostos de triagem; elas são, sobretudo, espaços pedagógicos de trabalho coletivo, autogestão e participação democrática, alinhadas intrinsecamente aos princípios da economia solidária. Este modelo de organização produtiva contrapõe-se à lógica capitalista tradicional, propondo, conforme Singer (2018, p. 34), “novas formas de organização do trabalho, onde a produção é orientada pelas necessidades humanas e não pelo lucro do capital”. A atuação desses empreendimentos gera, portanto, um duplo impacto: ambiental, ao desviar resíduos do aterro e reintroduzi-los no ciclo produtivo como matéria-prima secundária, conforme preconiza a PNRS; e social, ao gerar trabalho e renda em um contexto de economia inclusiva, combatendo a vulnerabilidade social e fomentando a cidadania ativa (FRANÇA FILHO; RIGO, 2015). Dessa forma, analisar o papel multidimensional das cooperativas de reciclagem torna-se imperioso para compreender os caminhos possíveis rumo a uma sociedade mais sustentável e socialmente justa.
Referencial Teórico
Origem e Evolução das Cooperativas de Reciclagem
A atividade de catação de materiais recicláveis como meio de subsistência é um fenômeno histórico anterior à própria formalização do modelo cooperativista na área. Conforme relata Gohn (2019, p. 112), os catadores emergiram como um grupo social visível e organizado no Brasil "a partir da intensificação da pobreza urbana e da crise do modelo de desenvolvimento no final do século XX, constituindo-se como um movimento social que luta por direitos e reconhecimento". Inicialmente atuando de forma individual e marginalizada, a transição para a organização em cooperativas foi decisiva. Este movimento de formalização foi impulsionado e teoricamente embasado pelo movimento de economia solidária, que busca construir alternativas coletivas e democraticamente geridas de geração de trabalho e renda, opondo-se à precarização do trabalho.
Singer (2018, p. 45), um dos principais teóricos da área, explica que a economia solidária se fundamenta em pilares como a "autogestão, a colaboração entre os pares e a distribuição justa dos resultados econômicos", distinguindo-se radicalmente do modelo capitalista tradicional, que prioriza a acumulação de lucro individual e a hierarquia empresarial. Dessa forma, as cooperativas de reciclagem não se estruturam apenas como unidades econômicas, mas como espaços sociopolíticos que visam proporcionar melhores condições de trabalho, fortalecimento da organização econômica coletiva e a conquista de reconhecimento social e cidadania plena para os catadores, conforme atestado por pesquisas de campo realizadas por Campos (2022) em cooperativas do Sudeste.
Reciclagem e Economia Circular
A reciclagem, enquanto processo industrial, constitui uma etapa operacional fundamental dentro do conceito mais amplo e estratégico de economia circular. Este paradigma, como definido pela Fundação Ellen MacArthur (2017, p. 15), "é regenerativo e restaurativo por princípio, e visa manter produtos, componentes e materiais em seu mais alto nível de utilidade e valor o tempo todo". Ele propõe um ciclo contínuo de reaproveitamento dos materiais, organizado em "laços" fechados, o que reduz de forma substancial a pressão sobre a extração de recursos naturais virgens e minimiza o descarte final em aterros.
A economia circular se opõe intrinsecamente ao modelo linear hegemônico de produção, pejorativamente descrito por Lima (2021, p. 89) como a lógica insustentável de "extrair-produzir-descartar". Neste novo modelo circular, os resíduos sólidos urbanos passam por uma ressignificação conceitual e econômica crucial: deixam de ser entendidos como "lixo", um rejeito sem valor, e passam a ser considerados "recursos" ou "matérias-primas secundárias". Essa transição semântica e prática é operacionalizada justamente pelo trabalho das cooperativas, que atuam como agentes centrais na interface entre o descarte urbano e o setor produtivo industrial. Como demonstram estudos do IPEA (2022), a atividade das cooperativas é um dos elos mais eficazes para a concretização dos princípios da economia circular no contexto brasileiro, fechando o ciclo de materiais e injetando bilhões de reais na economia nacional anualmente, através da comercialização dos recicláveis.
Desenvolvimento
As cooperativas de reciclagem se configuram como organizações baseadas na participação ativa de seus membros, que desempenham papel simultâneo de trabalhadores e gestores, o que caracteriza o princípio da autogestão. Essa característica é fundamental, pois implica que todas as decisões relacionadas ao funcionamento, à divisão de tarefas, à distribuição das rendas e à definição de estratégias de atuação são tomadas coletivamente, em assembleias internas. Singer (2018) destaca que essa lógica rompe com a hierarquia tradicional do mercado de trabalho, promovendo um ambiente no qual o trabalhador deixa de ser subordinado e passa a ser sujeito ativo da organização. As atividades desempenhadas pela cooperativa abrangem desde a coleta dos resíduos, seja por meio de parcerias com o poder público, pontos de entrega voluntária ou coleta direta em vias urbanas, até a triagem minuciosa dos materiais, sua prensagem e posterior comercialização com empresas recicladoras. Cada etapa demanda habilidades específicas, que vão desde o conhecimento sobre logística urbana até noções de contabilidade, negociação de preços e controle de produtividade.
Apesar da relevância social dessa prática, as condições de trabalho ainda apresentam fragilidades significativas, especialmente quanto à infraestrutura física e aos equipamentos disponíveis. De acordo com o IPEA (2017), grande parte das cooperativas brasileiras opera em galpões improvisados, frequentemente sem ventilação adequada, com maquinário precário ou inexistente, e sem equipamentos de proteção individual suficientes para todos os cooperados. Essa precariedade afeta diretamente a saúde dos trabalhadores e limita os ganhos econômicos resultantes da venda dos materiais reciclados. Tal situação é agravada pela variação constante no valor de mercado dos recicláveis, já que o preço pago por papel, plástico ou alumínio depende da demanda industrial e da concorrência com grandes empresas de reciclagem mecanizada.
Do ponto de vista social, as cooperativas assumem um papel fundamental na valorização do trabalhador, promovendo inclusão social e reconfigurando identidades historicamente marcadas pela marginalização. Bortoli (2022) observa que, ao ingressarem em cooperativas, muitos catadores passam a desenvolver um sentimento de pertencimento e reconhecimento social, deixando de ser vistos como "catadores informais" para serem legitimados como "agentes ambientais". Além disso, essas organizações constituem importantes espaços de convivência, aprendizagem coletiva e solidariedade, fortalecendo vínculos comunitários e a autoestima dos trabalhadores. Em muitos casos, a participação na cooperativa se torna uma oportunidade de reconstrução de trajetórias pessoais atravessadas por desemprego, pobreza e exclusão.
Em termos ambientais, as cooperativas desempenham uma função estratégica para a sustentabilidade das cidades, pois contribuem diretamente para a redução da quantidade de resíduos destinados a aterros sanitários e lixões. A ABRELPE (2023) aponta que o Brasil produz anualmente milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos, mas recicla apenas cerca de 4% desse volume, embora o potencial técnico de reciclagem possa superar 40%. A atuação das cooperativas pode ampliar significativamente esse índice, uma vez que são responsáveis pela maior parte da coleta seletiva efetivamente realizada no país. Ao recuperar materiais que seriam descartados, as cooperativas evitam a extração de recursos naturais, reduzem o consumo de energia e diminuem a emissão de gases poluentes associados à produção de novos materiais, contribuindo, assim, para a mitigação das mudanças climáticas.
Entretanto, os desafios permanecem evidentes e complexos. Morais (2020) afirma que a inclusão plena das cooperativas na cadeia produtiva formal exige políticas públicas contínuas, investimentos estruturais, formação profissional adequada e reconhecimento institucional dos catadores como trabalhadores essenciais da gestão de resíduos. Sem esse suporte, as cooperativas tendem a permanecer em posição de vulnerabilidade frente aos atravessadores e às grandes indústrias recicladoras, que frequentemente concentram os maiores lucros da cadeia produtiva. Nesse sentido, o fortalecimento das cooperativas depende não apenas de ações internas de organização, mas também de uma articulação intersetorial entre Estado, sociedade civil e iniciativa privada. Apenas com a criação de políticas de apoio consistente, tais como: contratos públicos estáveis, programas de capacitação, acesso a crédito produtivo e garantia de preços mínimos, ou seja, será possível consolidar as cooperativas como protagonistas da economia circular no Brasil e garantir que sua contribuição social e ambiental seja plenamente reconhecida e valorizada.
Conclusão
As cooperativas de reciclagem constituem um modelo que integra desenvolvimento social, sustentabilidade ambiental e reorganização econômica baseada na cooperação. Elas têm capacidade de transformar vidas, reconstruir identidades e promover cidades mais saudáveis e justas, atuando como agentes fundamentais na operacionalização da política de resíduos e no fortalecimento da economia circular. Ao reconhecer e valorizar o trabalho dos catadores, essas organizações contribuem para reverter processos históricos de marginalização e exclusão, reafirmando o direito ao trabalho digno e à participação cidadã. Nesse sentido, as cooperativas não representam apenas uma alternativa econômica, mas também uma forma de resistência social frente às desigualdades estruturais que caracterizam o sistema produtivo contemporâneo.
Entretanto, para que possam alcançar seu potencial máximo, é imprescindível que recebam investimentos contínuos, apoio técnico e reconhecimento político-institucional. A simples existência de dispositivos legais, como a Política Nacional de Resíduos Sólidos, não é suficiente se não houver mecanismos eficazes de implementação, fiscalização, incentivo financeiro e acompanhamento permanente das ações. O fortalecimento das cooperativas exige políticas públicas integradas, participação ativa dos municípios, parcerias com empresas privadas, acesso a linhas de crédito adequadas, formação continuada em gestão e maior articulação em redes de comercialização que permitam ampliar o poder de negociação dos cooperados.
Além disso, torna-se necessário superar a visão assistencialista que muitas vezes recai sobre o trabalho dos catadores, substituindo-a por uma compreensão que reconheça seu papel estratégico na cadeia produtiva da reciclagem. Esse reconhecimento deve se refletir, sobretudo, na valorização econômica do material reciclado e no estabelecimento de contratos públicos estáveis que garantam segurança financeira às cooperativas, evitando que fiquem dependentes da oscilação de preços imposta pelo mercado. A integração desses trabalhadores à cadeia formal da reciclagem não deve ocorrer de forma desigual ou subordinada, mas sim como um processo de corresponsabilidade entre Estado, sociedade e setor produtivo.
Neste sentido é notório que o fortalecimento das cooperativas de reciclagem é um passo fundamental para a consolidação de uma sociedade orientada pelos princípios da sustentabilidade, da inclusão e da justiça socioambiental. Promover sua valorização é, ao mesmo tempo, promover a preservação ambiental, a dignidade humana e a construção de cidades mais resilientes e solidárias. Em um contexto de crise climática e crescente produção de resíduos, apoiar as cooperativas significa escolher um modelo de desenvolvimento que respeita os limites do planeta e reconhece a centralidade da vida humana em sua dimensão coletiva.
Referências
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Ivan Carlos Zampin: Bacharel em Sistemas de Informação, Professor Doutor, Pesquisador, Pedagogo, Docente no Ensino Superior, Ensino Fundamental, Médio, Especialista em Gestão Escolar e Gestão Pública.
Elza Maria Simões: Bacharel em Administração de Empresas, Professora de Matemática, Matemática Financeira, Pedagoga, Especialista em Educação Especial.