22/07/2019

CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS SOBRE RECURSOS HÍDRICOS NO BAIXO SALITRE, JUAZEIRO, BAHIA

Cinara Cristina da Costa Braga1

Geraldo Jorge Barbosa de Moura2

Ana Paula Penha Guedes3

 

¹Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ecologia Humana (UNEB). E-mail: braga.cinara@gmail.com

²Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e do Programa de Pós-Graduação em Ecologia Humana (UNEB).

³Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e do Programa de Pós-Graduação em Ecologia Humana (UNEB).

 

Introdução

O maior problema da água é o ser humano. E o maior problema do ser humano é a água. Só nos damos conta disso quando atingimos o fundo do poço, a água acaba e os seres humanos padecem. O drama provocado nos impele a erguer as mãos bem altas e levantar o véu para enxergar a crise histórica que a água, em sua transparência e generosidade, não nos conta. O Brasil tem 12% da reserva de água doce do mundo, mas convive com situações de extrema escassez (DETONI; DONDONI, 2008; FERREIRA, 2015).

Ao tratarmos da escassez de água, Cirilo (2015) destaca dois tipos: a escassez econômica, que ocorre devido à falta de investimentos, caracterizada por pouca infraestrutura e distribuição desigual de água e a escassez física, que ocorre quando os recursos hídricos não conseguem atender à demanda da população. Já a Comissão Pastoral da Terra (CPT) classifica os conflitos por água em três categorias: apropriação particular, quando um proprietário faz barramento de uma fonte, impedindo o seu acesso; barragens e açudes, afetando o reassentamento de famílias; e uso e preservação, ligados a usos inadequados que afetam diretamente o meio ambiente e podem levar ao esgotamento de recursos (MALVEZZI, 2014).

A disponibilidade hídrica foi um fator decisivo para o surgimento das primeiras civilizações, entretanto a água doce, utilizada como potável, é distribuída pela superfície da Terra sem uma sintonia direta com as concentrações populacionais, o que ao longo dos anos conduziu muitos países a conflitos históricos pelo controle desse recurso. Ainda hoje, tem-se o registro de cerca de 80 países com problemas críticos de escassez de água, o que tem causado muitos conflitos bélicos amplamente conhecidos como a disputa pelo rio Bravo entre os Estados Unidos e o México, a ocupação das Colinas de Golan que acirram os conflitos entre israelenses e palestinos e os confrontos armados na Espanha, motivados pela apropriação das águas provenientes das transposições fluviais vindas de Portugal e França (DI MAURO, 2014).

No Brasil, há 172 registros de conflitos estabelecidos relacionadas a questão da água, sob diferentes contextos. Entretanto, especificamente para o Nordeste, a maioria desses conflitos ocorre por apropriação particular desse recurso, que têm como intuito atender alguns poucos setores. Para Di Mauro (2014, p. 83), “essas limitações impõem que a humanidade deve conviver com abundância de águas em algumas partes do planeta e escassez em outras”. Para Cirilo (2015, p. 57), “muitas regiões do mundo efetivamente vivem hoje em regime de crise hídrica, que tende a se agravar com o crescimento populacional e das atividades produtivas”.

 

A Bacia Hidrográfica do Salitre

A bacia hidrográfica do rio Salitre (BHS) possui uma área de 14.136 km², está inserida na região do submédio do da bacia hidrográfica rio São Francisco (BHSF) e localizada no centro-norte do Estado da Bahia (INEMA, 2019). É composta por nove municípios: Morro do Chapéu, Várzea Nova, Miguel Calmon, Ourolândia, Umburanas, Jacobina, Mirangaba, Campo Formoso e Juazeiro, sendo a região do Baixo Salitre composta somente por estes dois últimos municípios e seus distritos (CBHS, 2017).

Toda a região da Bacia situa-se em área de clima tropical semiárido, em uma das áreas de menor índice de chuvas do Estado da Bahia que podem variar entre 200 a 700 mm por ano (TUCCI et al., 2001; CBHS, 2017). A nascente está localizada em um local conhecido como “Boca da Madeira” na Chapada Norte (Diamantina), no município de Morro do Chapéu e sua foz está localizada em um local chamado de “Boca da Barra”, no povoado de Sabiá, município de Juazeiro, a jusante da Barragem de Sobradinho (SILVA, 2019).

 

Os Conflitos na Bacia do Rio Salitre

No nordeste brasileiro como um todo, a situação de escassez de água torna-se mais pungente, devido especificidade do regime hidrológico da região, com oito estados inseridos na região semiárida, conhecida tradicionalmente pelo regime irregular de chuvas e períodos prolongados de seca, afetando fortemente a disponibilidade dos recursos naturais. Para Pereira e Cuellar (2015, p. 115), “o problema da escassez de chuva é uma perturbação que se repete e coloca a necessidade de adaptação da população às condições ambientais”. Além disso, a região abriga a parte mais pobre da população brasileira, envolta em graves problemas sociais e econômicos (TUCCI et. al., 2001).

Na Bahia, os registros mais recentes de conflitos pela água estão relacionados com a prolongada estiagem, que teve início em 2012, quando 220 dos 417 municípios do estado decretaram situação de emergência, sendo registradas perdas totais de lavouras e animais, e consequentemente o aumento da migração (BAHIA, 2014 apud ROSSI; SANTOS, 2018). Entre 2010 a 2015, os conflitos pela água no Brasil dobraram, com o ápice em 2013 na região nordeste (PEREIRA; CUELLAR, 2015). Em 2015, a Bahia foi o segundo estado com maior número de ocorrências com conflitos relacionados ao uso das águas (MALVEZZI, 2014), sendo grande parte desses conflitos associados a construção de barragens e a distribuição desigual de água.

Sobre o perfil das comunidades envolvidas nos conflitos no Estado, Rossi e Santos (2018, p. 159) descrevem que “na Bahia, os conflitos pelas águas envolvem principalmente comunidades remanescentes de quilombos, indígenas, comunidades de fundo e fecho de pasto, ribeirinhos, pescadores, posseiros, pequenos proprietários de terra e assentados de reforma agrária, como os movimentos de luta pela terra”. Na região que abriga o Rio Salitre, a existência da água possibilitou o surgimento de comunidades e o desenvolvimento da agricultura, com os roçados demarcados por vaqueiros tornando-se propriedades de policultura voltadas para o cultivo de milho, feijão e mandioca (THOMAZI, 2010). Posteriormente, Silva (2013, p. 22) complementa que:

“a criação de gado intensificada na região, a população cresceu. Foram surgindo novas comunidades e atividades ligadas ao cultivo da cana, à pecuária, a extração da cera de carnaúba e a produção da farinha de mandioca que movimentavam a economia local, mas o cotidiano do salitre sempre esteve vinculado ao rio, definindo a rotina de muitas famílias” (SILVA, 2013, p. 22).

Apesar de a agricultura irrigada gerar a maior parte dos empregos e renda a partir das instalações de fazendas, muitos moradores ainda vivem da pecuária e da agricultura de subsistência em seus pequenos lotes. Alegando como objetivo principal contribuir para o desenvolvimento da região semiárida através da agricultura irrigada com a premissa da sustentabilidade ambiental, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF) implantou em 2011 o projeto Salitre, incorporando 31.305 hectares ao processo produtivo, elevando a produtividade das safras agrícolas, gerando renda, aumento da oferta de alimentos e propiciando a abertura de novos empregos diretos e indiretos (CODEVASF, 2014). Silva (2013, p. 36) cita que esses projetos de irrigação “tem como base o cultivo de monoculturas, que geram sérios impactos, como a exploração da mão-de-obra dos trabalhadores e as agressões ao meio ambiente, o que contribui, de forma direta, para a reprodução das desigualdades sociais”. Rossi e Santos (2018, p. 159) mencionam que “o uso intensivo das águas do Salitre para irrigação, exemplo raro de rio perene no semiárido, provocou sua completa exaustão, comprometendo as condições de permanência na terra das comunidades que tradicionalmente viviam em seu entorno”.

A crise do Vale do Salitre tem uma origem comum a outras mazelas estruturais bem conhecidas dos brasileiros, a inoperância do poder público na gestão da água e os princípios da governança hídrica que parecem ter evaporado com os níveis dos rios. O drama provocado pela falta de água no Vale do Salitre é marcado por históricos de excessos, descaso e falta de interesse do poder público em elucidar muitos dos conflitos. Para Selborne (2001, p. 60), “o poder de usar a água para o desenvolvimento econômico, ou como instrumento para redistribuir a renda é um recurso político e social importante.” Gomes e colaboradores (2015, p. 228) dão ênfase a essa questão, trazendo a seguinte consideração para a região do semiárido:

“[...], no caso do Semiárido brasileiro, as secas carregam, historicamente, uma marca política negativa. Seu enfretamento sempre se pautou por políticas paliativas, assistencialistas e eleitoreiras, que longe de resolverem o problema da escassez hídrica, asseguraram a manutenção histórica de grupos oligárquicos no poder. [...] historicamente, as soluções técnicas apresentadas de combate às secas, como a construção de barragens e açudes, ou de poços artesianos, concentravam mais do que distribuíam a água [...]” (GOMES, et. al., 2015, p. 228).

A vida em sociedade pressupõe a existência de uma ação comum entre os seres humanos e o meio ambiente em que vivem, elemento necessário à prática social, política, econômica e cultural, o que confirma sua importância no cotidiano das pessoas. É importante buscar formas de analisar como o cenário de escassez de água frente ao surgimento de conflitos de uso na Bacia do Rio Salitre vêm se agravando diante da crise hídrica vivenciada nos últimos anos na Bacia. Nesse sentido, Rossi e Santos (2018, p. 165) fazem a seguinte reflexão:

“As divergências em torno dos princípios que consideram a água como um bem público e como um bem, dotado de valor econômico acirram-se de tal modo, que o enfrentamento da tensão entre o público e o privado, no campo da regulação das águas, somente poderá ser equacionado no âmbito da luta política, e não pela via da deliberação meramente jurídica” (ROSSI; SANTOS, 2018, p. 165).

 

Considerações

Questões relacionadas ao uso dos recursos hídricos e seu gerenciamento historicamente serão motivos de amplas discussões envolvendo diferentes setores da sociedade. Cabe a estes mesmos setores dialogarem numa conjuntura que envolva não apenas o favorecimento de alguns poucos apadrinhados, mas sim o benefício de todos e principalmente, o bem-estar do meio ambiente de forma que esses recursos não se tornem escassos.

O Vale do Salitre sempre serviu de terreno fértil para a promoção política de muitas pessoas, fragilizando o processo de mobilização tão necessária nas comunidades prejudicadas pelo não cumprimento das promessas feitas. Dessa forma, faz-se necessário discutir a política com a proposta de convivência com o semiárido, considerando a viabilidade de desenvolvimento centrado na sustentabilidade socioeconômica e ambiental, além da promoção de políticas voltadas para a educação ambiental da comunidade.

 

Referências Bibliográficas

CBHS, Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco. Plano de Recursos Hídricos e Proposta de Enquadramento dos Corpos de Água da Bacia Hidrográfica do Rio Salitre: Síntese Executiva. 2017.

CIRILO, J.A. Crise hídrica: desafios e superação. Revista USP, n. 106, p. 45-58, 2015.

CODEVASF, Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba. 2014. Reunião na Codevasf debate questões relacionadas ao perímetro Salitre. Disponível em: < http://www.geraldojose.com.br/ckfinder/userfiles/files/codevasf%20reuniao.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2018.

DETONI, T.L.; DONDONI, P.C.  A Escassez da água: um olhar global sobre a sustentabilidade e a consciência acadêmica. Revista Ciências Administrativas, v. 14, n. 2, p. 191-204, 2008.

DI MAURO, C.A. Conflitos pelo uso da água. Caderno Prudentino de Geografia, n. 36, p. 81-105, 2014.

FERREIRA, T. Brasil tem 12% da reserva de água doce do mundo e sofre com escassez. 19 ago. 2015. Jornal da Globo. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2015/08/com-12-da-reserva-de-agua-doce-do-mundo-brasil-sofre-com-escassez.html>. Acesso em: 18 jul. 2019.

GOMES, U.A.F.; MIRANDA, P.C.; PENA, J.L.; SOUSA, C.M.; CEBALLOS, B.S.O. Elementos para uma avaliação crítica do Programa Brasileiro de Formação e Mobilização Social para Convivência com o Semiárido – Um milhão de cisternas rurais (P1MC). In: CASTRO, J.E.; HELLER, L.; MORAIS, M.P. (eds.). O direito à água como política pública na América Latina: uma exploração teórica e empírica. Brasília: IPEA, 2015.

INEMA – Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos. CBH Salitre. Disponível em: <http://www.inema.ba.gov.br/gestao-2/comites-de-bacias/comites/cbh-salitre/> Acesso em: 30 jun. 2019.

MALVEZZI, R. Conflitos por água nos últimos 10 anos. In: CANUTO, A.; LUZ, C.R.S.; COSTA, E.R. (org.). Conflitos no Campo – Brasil, 2014. Goiânia: CPT Nacional, 2014. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/send/41-conflitos-no-campo-brasil-publicacao/2392-conflitos-no-campo-brasil-2014?Itemid=0%3E. Acesso em: 30 jul. 2018.

PEREIRA, G.R.; CUELLAR, M.D.Z. Conflitos pela água em tempos de seca no Baixo Jaguaribe, Estado do Ceará. Estudos Avançados, v. 29, n. 84, p. 115-137, 2015.

ROSSI, R.A.; SANTOS, E. Conflito e Regulação das Águas no Brasil – a experiência do Salitre. Caderno CRH, v. 31, n. 82, p. 151-167, 2018.

SELBORNE, L. A ética no uso da água doce: um levantamento. Brasília: UNESCO, 2001.

SILVA, E.D.C. Da passadeira ao canal de concreto: a agricultura e as mudanças no modo de vida da população do Vale do Salitre – Juazeiro – BA. 2013. Monografia. (Graduação em História), Universidade de Pernambuco, Petrolina – PE.

SILVA, E.D.C. Carrapicho: experiências de educomunicação com adolescentes e jovens no Vale do Salitre. 2019. Dissertação. (Mestrado Multidisciplinar em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos), Universidade do Estado da Bahia, Juazeiro – BA.

THOMAZI, C. Salitre - história, cultura, vida e conflitos: uma breve análise sobre o advento da irrigação e a expropriação camponesa. 2010. Monografia (Graduação em Geografia), Universidade de Pernambuco, Petrolina - PE.

TUCCI, C.E.M.; HESPANHOL, I.; CORDEIRO NETTO, O.M. Gestão de água no Brasil. Brasília: UNESCO, 2001.

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