24/12/2014

Confessionalismo versus Laicidade no Ensino Público: uma síntese

 Gabriel dos Santos Kehler[1]

 

Resumo

Em abordagem histórica, esta síntese debruça-se na/sobre a discussão suscitada pelo autor Luís Antônio Cunha, sobre a relação entre Confessionalismo versus laicidade no ensino público, que constitui um  capítulo do livro - “Estado e políticas educacionais na educação Brasileira” - organizado pelo renomado educador  Dermeval Saviani (2011).

Palavras- Chave: Confessionalismo. Laicidade. Ensino Público.

 

Discussão em disputa(s)

        Historicamente a religião católica desempenhou papel central na formação da sociedade brasileira e, ainda hoje, ocupa nela um lugar de destaque. Apesar da crescente secularização em setores cada vez mais amplos da sociedade, a religião está presente na linguagem cotidiana, nas instituições públicas e privadas, no poder político, no ensino público.

       A primeira Constituição do País, outorgada pelo imperador Pedro I, em 1824, em nome da Santíssima Trindade, determinava que a religião católica apostólica romana era a religião do império. Todas as outras religiões seriam permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo, termos estes transcritos do tratado de 1810. Assim, O Código criminal de 1830 continha restrições explícitas às religiões não católicas e à defesa da ortodoxia da religião do Estado. A restrição mais conspícua, para os propósitos deste texto, era o crime de divulgar doutrinas contrárias às verdades fundamentais da existência de Deus e da imortalidade da alma.

     A educação religiosa fazia parte do currículo escolar público. A lei de 13 de outubro de 1827, que mandava criar escolas de primeiras letras em todos os centros urbanos do império, listava o conteúdo do ensino na forma de matérias, entre elas os princípios da moral cristã e da doutrina da religião católica e apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos. Os professores de todos os níveis de ensino eram obrigados a prestar juramento de fidelidade à religião oficial, podendo ser punidos por perjúrio. Nas escolas públicas de todo o País, a doutrina católica deveria ser ensinada a todos os alunos, pelo menos até 1875, quando os não católicos puderam postular a dispensa dessas aulas. Os poucos evangélicos existentes no País estavam impedidos de atuar no magistério público. A difusão de suas crenças era limitada pela frequente apreensão, pelas autoridades policiais, das “bíblias falsificadas”, isto é, as não aprovadas pela Santa Sé.

      No entanto, nas três últimas décadas do século XIX, a simbiose Igreja-Estado começou a incomodar aos dois lados da parceria. A Santa Sé empenhou-se no aumento do controle sobre o clero brasileiro, para o que era preciso livrar-se das limitações inerentes a sua inserção no aparato estatal. De outro lado, estavam as forças políticas emergentes, orientadas pela ideologias liberal, maçônica e positivista. Logo, o decreto no. 119-A, promulgado em 7 de janeiro de 1890, declarou plena e total liberdade de culto, suprimindo as restrições até então vigentes aos não católicos, ao mesmo tempo em que proibia a todos os níveis do poder público de estabelecer alguma religião, bem como criar diferenças entre os habitantes do País por motivos de crenças ou opiniões filosóficas ou religiosas.

       A promulgação da Constituição de 1891 declarou a Igreja católica separada do Estado - ela passou, então, da esfera pública para a esfera privada. A União, os Estados e os Municípios foram proibidos de financiar qualquer tipo de atividade religiosa. O regime político republicano liberou forças produtivas que se encontravam contidas pelo escravismo e pela centralização monárquica. Desenvolvimento econômico, urbanização, trabalho assalariado na agricultura, ampliação das classes médias e emergência do operariado foram seus efeitos mais marcantes. Por outro lado, a ordem social foi sacudida por movimentos sociais no campo, nos quais predominavam ideologias religiosas de caráter messiânico. Por estarem circunscritos no espaço geográfico e social, eles foram objeto de repressão policial militar, e não chegaram a comprometer a ordem social.

       Na década de 1920, a mistura de repressão, concessões legais e incentivo à migração de trabalhadores rurais provocou o arrefecimento do movimento operário urbano. A ordem social foi, todavia, sacudida por uma onda de insurreições militares. Oficiais de baixa patente levantaram-se em armas contra o governo federal, que pretendiam derrubar, e pela regeneração moral do Estado e da Nação. Esse foi o sentido geral dos levantes de 1922 a 1927.

       A matéria de relegião foi objeto de um dos primeiro atos de Getúlio Vargas no longo período em que esteve à frente da presidência da república (1930/1945). Vargas baixou o decreto no. 19.941, de 30 de abril de 1931, facultando o oferecimento da instrução religiosa nos estabelecimentos públicos de ensino primário, secundário e normal. Para que essa disciplina fosse oferecida nos estabelecimento oficiais de ensino, seria necessário que pelo menos 20 alunos se propusessem a recebê-la. O ministro da educação justificou o retorno desse conteúdo ao currículo da escola pública como sendo uma conquista do catolicismo contra o dogma da liberdade de pensamento defendido por liberais, e, provisoriamente, pelos comunistas, supostamente interessados em destruir as instituições nacionais.

       Em novembro de 1937, o Senado e a Câmara dos deputados foram fechados e dissolvidos todos os partidos políticos. Uma nova Constituição foi outorgada, inaugurando o Estado Novo, denominação emprestada do regime autoritário português. A repressão política e ideológica foi a mais intensa desde o fim da primeira república.

      Mesmo não havendo nenhuma inflexão anti-religiosa, o núcleo do poder político do Estado novo confiava mais em obter o consentimento das massas, diretamente, do que pela mediação do clero, embora não descartasse a ajuda da religião. Na trilogia “Deus, Pátria e Família”, tão cara ao integralismo, versão brasileira do fascismo, a Pátria assumiu a primazia, mas esse rearranjo não chegou a desagradar à Igreja católica, até porque suas escolas multiplicaram-se no ensino secundário e normal, com incentivo governamental.

       O projeto político de construção de um regime capitalista autônomo, que empolgou o País nos primeiros anos da década de 1960, foi bruscamente freado. Em março-abril de 1964, um golpe de estado civil-militar depôs o presidente da república, subordinou os poderes legislativo e judiciário, bem como reprimiu as instituições políticas da sociedade civil, em especial as sindicais e partidárias. Iniciava-se um regime autoritário que durou duas décadas. Em 1971, os fatores psicossociais foram subdivididos em fatores éticos, religiosos e ideológicos. A ideia subjacente era a de que se impunha enfrentar o desafio maior do século, em que as nossas mais caras tradições democráticas e cristãs se veem ameaçadas pelo materialismo marxista.

O aparato legal incidente sobre o campo educacional foi amplamente reformado no regime autoritário. Em 1971 foi promulgada a Lei de diretrizes e bases do ensino de 1° e 2° graus, no. 5.692, de 11 de agosto. O ensino religioso apareceu nela como parágrafo único do artigo que determinava a obrigatoriedade da educação moral e cívica, ao lado de outras disciplinas, e foi revogado o artigo da LDB/1961 que vedava a remuneração dos professores de ensino religioso pelos poderes públicos. A legislação ficou, então, omissa sobre essa questão. Estava aberto o caminho para os dirigentes católicos assediarem governadores e prefeitos para obterem o deslocamento de professores do quadro para o ensino religioso, assim como o pagamento de seus próprios agentes nas escolas públicas de 1° e 2° graus. Essa disciplina seria ministrada em todos os níveis de ensino, inclusive na pós-graduação, sendo que no ensino superior ela se apresentaria na forma dos estudos de problemas brasileiros.

     A transição para a democracia foi longa e tortuosa, resultante tanto da luta de uma ampla frente que reuniu de liberais a comunistas, quanto das concessões dos governos militares, em razão do próprio esgotamento do regime autoritário. Depois de sete anos de tramitação no Congresso, foi aprovada a lei 8.663, de 14 de junho de 1993, que aboliu a obrigatoriedade da educação moral e cívica em todos os níveis de ensino. Todavia, a disciplina ensino religioso permaneceu no currículo das escolas públicas e das privadas confessionais, nos termos da Constituição de 1988 e das Constituições estaduais do ano seguinte.

 Referências

CUNHA, Luís Antônio. Confessionalismo versus laicidade no ensino público. In: SAVIANI, Dermeval et al. Estado e políticas educacionais na educação Brasileira. Org. Dermeval Saviani. Vitória, ES. Editora: EduFEs. 2011.

 


[1] Estudante do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Nível: Doutorado. E-mail: gabkehler@gmail.com

 

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