Clima Escolar e Convivência: o Impacto da Gestão Democrática na Aprendizagem e nas Relações Interpessoais.
Ivan Carlos Zampin; Elza Maria Simões;
Resumo
O presente artigo tem como objetivo discutir a relação entre o clima escolar, a convivência entre os sujeitos da comunidade educativa e a gestão democrática como elementos determinantes para a qualidade da aprendizagem. Fundamenta-se em autores clássicos da pedagogia crítica, que entendem a educação como prática dialógica e emancipatória, e em estudos contemporâneos que investigam as dinâmicas da convivência e da cultura escolar em suas múltiplas dimensões. A pesquisa, de caráter bibliográfico e analítico, considera a escola como espaço privilegiado de construção de significados sociais e afetivos, cuja organização e práticas de gestão impactam diretamente a aprendizagem e o desenvolvimento humano integral. Argumenta-se que a construção de um clima escolar positivo, baseado no diálogo genuíno, na cooperação efetiva e no respeito à diversidade, constitui um elemento essencial para promover uma educação de qualidade, inclusiva e democrática. Nessa perspectiva, as relações interpessoais que se estabelecem no ambiente escolar não representam meramente um pano de fundo para o processo educativo, mas configuram-se como dimensão estruturante da própria experiência de aprendizagem. O modo como estudantes, educadores e gestores vivenciam o cotidiano escolar, como resolvem seus conflitos e como participam das decisões institucionais cria condições favoráveis ou desfavoráveis para o desenvolvimento pleno de todos os envolvidos. Ao final, propõe-se a ampliação das práticas participativas e a formação continuada de professores como caminhos estratégicos para o fortalecimento das relações interpessoais e da aprendizagem significativa no contexto escolar brasileiro. Essas ações devem estar articuladas com políticas educacionais que valorizem a autonomia da escola e incentivem processos coletivos de reflexão sobre a prática pedagógica, visando à construção de ambientes educacionais mais acolhedores, democráticos e academicamente desafiadores.
Palavras-chave: Clima escolar. Convivência. Gestão democrática. Aprendizagem. Relações interpessoais.
Introdução
O ambiente escolar é um espaço complexo, dinâmico e socialmente construído, no qual interagem diferentes sujeitos, ou seja, professores, alunos, gestores, famílias e comunidade, cada qual com expectativas, valores e papéis específicos. O modo como essas interações se configuram define o clima escolar, um conceito amplamente estudado na psicologia educacional e na gestão escolar por refletir a qualidade das relações humanas e institucionais (COHEN et al., 2009).
No Brasil, os debates sobre clima e convivência escolar intensificaram-se com a ampliação das políticas de gestão democrática previstas na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9.394/1996). Tais políticas defendem a participação efetiva de todos os atores escolares nos processos decisórios, o que, segundo Paro (2015), constitui um requisito fundamental para o desenvolvimento de ambientes educativos saudáveis e cooperativos.
A relevância desse tema torna-se ainda mais evidente diante dos desafios contemporâneos, como os impactos da pandemia de Covid-19, que agravaram tensões emocionais e relacionais no espaço escolar (MORAIS, 2022). Nesse contexto, compreender os elementos que favorecem um clima escolar positivo é essencial para promover uma aprendizagem significativa, conforme proposto por Ausubel (1982), e para fortalecer os vínculos de pertencimento e confiança entre os sujeitos escolares.
Referencial Teórico
Clima escolar e cultura organizacional
O conceito de clima escolar está relacionado à percepção coletiva que alunos, professores e funcionários têm sobre a escola, suas normas, valores e práticas cotidianas. Segundo Cohen et al. (2009), o clima escolar envolve dimensões como segurança, relações interpessoais, ensino e aprendizagem, e o senso de pertencimento.
Lück (2021) argumenta que o clima escolar positivo resulta de uma gestão pedagógica participativa, em que o diálogo e a corresponsabilidade sustentam as decisões coletivas. Bronfenbrenner (1996), ao tratar do modelo ecológico do desenvolvimento humano, reforça que o ambiente educativo influencia diretamente o comportamento e o desempenho dos estudantes, sendo a escola um microssistema determinante para o desenvolvimento de competências cognitivas e socioemocionais.
De forma complementar, Fullan (2016) enfatiza que mudanças sustentáveis na educação dependem da cultura colaborativa, onde o trabalho em equipe e o apoio mútuo se sobrepõem à lógica hierárquica e burocrática tradicional das escolas. Portanto, um clima escolar saudável é produto da cooperação e não do controle.
Convivência e relações interpessoais no ambiente escolar
A convivência escolar é uma dimensão essencial do processo educativo e da formação cidadã. Segundo Tognetta e Vinha (2019), a convivência não se resume à ausência de conflitos, mas à capacidade de lidar com as diferenças de modo ético, empático e dialógico. Freire (1996) já afirmava que a educação é um ato de amor e coragem, e que ensinar exige escuta e respeito pelo outro.
Vasconcellos (2020) complementa que a convivência ética e solidária deve ser intencionalmente construída por meio de projetos pedagógicos que valorizem a empatia e a cooperação, substituindo práticas autoritárias e punitivas por ações mediadoras. Nesse sentido, a escola torna-se um espaço de aprendizagem emocional e social, e não apenas de transmissão de conteúdos.
No cenário internacional, Hargreaves (2018) destaca que as escolas mais eficazes são aquelas que cultivam “culturas de cuidado”, nas quais professores e estudantes sentem-se valorizados e emocionalmente seguros. Esse sentimento de pertencimento, segundo Cohen (2013), é um dos principais preditores de sucesso acadêmico e engajamento escolar.
Gestão democrática e participação coletiva
A gestão democrática é o eixo articulador entre clima escolar e convivência. De acordo com Paro (2015), uma escola democrática é aquela que distribui o poder de decisão e reconhece o papel político-pedagógico de cada ator educativo. Isso implica construir práticas de gestão baseadas na escuta ativa, na transparência e na participação deliberativa.
Libâneo (2013) observa que a gestão escolar deve superar o enfoque administrativo e assumir uma dimensão pedagógica centrada na formação integral do sujeito. Lück (2019) reforça que a liderança escolar eficaz é aquela que mobiliza a comunidade para objetivos comuns, estabelecendo uma cultura de confiança e corresponsabilidade.
A BNCC (BRASIL, 2018) e os documentos orientadores da política de Educação Integral também reforçam a importância da participação e da convivência democrática como componentes fundamentais da formação cidadã. A escola, portanto, deve ser um espaço onde se aprendem valores sociais, éticos e políticos que sustentam a vida coletiva.
O papel do professor e da comunidade escolar
O professor é o principal mediador entre o estudante e o conhecimento, mas também entre o estudante e o ambiente social da escola. Freire (1997) defende que o educador deve agir como um facilitador do diálogo e da autonomia, promovendo a reflexão crítica. Em um clima escolar positivo, o professor atua não apenas como transmissor de saberes, mas como agente de convivência e promotor da cultura de paz.
A atuação integrada da comunidade escolar famílias, gestores e conselhos é outro fator determinante. Segundo Lück (2021), escolas com maior envolvimento da comunidade tendem a apresentar melhor desempenho e menores índices de evasão e indisciplina. Assim, o projeto político-pedagógico (PPP) deve refletir valores de solidariedade, participação e justiça social.
Discussão e análise crítica
As pesquisas recentes indicam que o clima escolar é um dos principais fatores associados à qualidade da educação (COHEN et al., 2009; VINHA; TOGNETTA, 2019). Escolas com clima positivo tendem a apresentar maior engajamento discente, menor violência e melhores resultados no aprendizado. Contudo, muitos gestores ainda reduzem o conceito a aspectos disciplinares ou administrativos, desconsiderando sua natureza relacional e cultural.
A gestão democrática, ao promover a corresponsabilidade e o diálogo, atua como mediadora entre convivência e aprendizagem. Quando há espaços institucionais de escuta tais como: Assembleias escolares, Conselhos de classe participativos e Mediação de conflitos, ou seja, os estudantes desenvolvem competências socioemocionais fundamentais para a vida em sociedade, como empatia, tolerância e senso de justiça (MORAIS, 2022).
Por outro lado, a ausência de práticas democráticas acentua desigualdades e fragiliza vínculos. A convivência torna-se conflituosa, e o clima escolar passa a refletir tensão e desmotivação. Nesse sentido, a formação docente precisa incluir conteúdos sobre gestão de sala de aula, mediação de conflitos e pedagogia relacional (LÜCK, 2019; TOGNETTA; VINHA, 2019).
A implementação de programas de educação para convivência e formação de lideranças escolares tem se mostrado eficaz em diversos países, como Finlândia e Portugal, cujas políticas educacionais priorizam o bem-estar e a cooperação (HARGREAVES, 2018; FULLAN, 2016).
O Fortalecimento do Clima Escolar como Processo Sistêmico
O fortalecimento do clima escolar depende fundamentalmente de ações sistêmicas e integradas que envolvem, primordialmente, o planejamento participativo como base para a construção coletiva do projeto educativo. Conforme destacado por Vinha, Morais e Moro (2017), essa abordagem participativa é essencial para criar um "senso de justiça" onde as regras são percebidas como necessárias e legítimas. Este processo deve incorporar de forma genuína a escuta e valorização dos sujeitos escolares, reconhecendo seus saberes e experiências como elementos constitutivos da identidade institucional, pois, como afirma Araújo (2020, p. 45), "a qualidade das relações pedagógicas está diretamente vinculada ao reconhecimento da alteridade".
A mediação pedagógica contínua surge como eixo transversal essencial, requerendo profissionais capacitados para transformar conflitos em oportunidades de aprendizagem e crescimento. Tognetta (2019) corrobora essa perspectiva ao afirmar que "a resolução dialógica de conflitos se constitui como espaço privilegiado para o desenvolvimento moral". Paralelamente, é imperativo desenvolver práticas de gestão baseadas em evidências, que utilizem dados concretos sobre a convivência escolar para orientar intervenções precisas. Estudos demonstram que escolas que implementam sistemas de avaliação institucional sistemática apresentam melhores indicadores de clima escolar (COHEN et al., 2009).
Estas dimensões, quando articuladas de forma coerente e permanente, criam as condições necessárias para o estabelecimento de relações de confiança mútua e de um ambiente propício ao desenvolvimento integral. A efetividade dessas ações, contudo, depende do compromisso institucional com a transformação da cultura escolar, tornando-a mais dialógica, inclusiva e acolhedora, fundamentada numa "ética coletiva construída democraticamente" (POWER; HIGGINS; KOHLBERG, 1989, p. 134).
Considerações Finais
A construção de um clima escolar positivo configura-se simultaneamente como um desafio complexo e uma necessidade urgente para as escolas contemporâneas, transcendendo a esfera pedagógica para se afirmar como questão ética fundamental. O fortalecimento das relações humanas autênticas, o diálogo permanente entre os sujeitos e a gestão democrática participativa constituem-se como pilares essenciais para a efetivação de uma educação verdadeiramente qualificada e socialmente transformadora. Como demonstrado ao longo deste estudo, o clima escolar e a qualidade da convivência representam dimensões profundamente interdependentes que influenciam não apenas o rendimento acadêmico mensurável, mas principalmente o desenvolvimento integral do estudante em suas múltiplas potencialidades.
A escola precisa, portanto, reconhecer-se conscientemente como espaço privilegiado de convivência ética, crítica e solidária, onde se aprende necessariamente com o outro e para o outro, num processo contínuo de construção coletiva. Esta transformação exige, contudo, uma ruptura com modelos tradicionais de gestão e uma reavaliação profunda dos processos avaliativos, que devem incorporar dimensões qualitativas do desenvolvimento socioemocional. A formação docente precisa incluir, de maneira estruturante, o desenvolvimento de competências para a gestão de relações interpessoais e a facilitação de dinâmicas grupais positivas, preparando os educadores para atuarem como mediadores de conflitos e facilitadores de processos democráticos.
Neste contexto, a avaliação sistemática do clima escolar surge como ferramenta indispensável para orientar intervenções precisas e monitorar o progresso rumo a ambientes educacionais mais saudáveis. A coleta regular de dados por meio de instrumentos validados, como os propostos por Vinha, Morais e Moro (2017), permite identificar fragilidades específicas e potencialidades a serem desenvolvidas em cada contexto institucional. Simultaneamente, torna-se imperativo superar a visão fragmentada que separa o "ensinar conteúdos" do "educar para a convivência", compreendendo que ambas as dimensões se alimentam mutuamente no processo formativo.
Recomenda-se, com base nas evidências analisadas, que políticas públicas educacionais e programas sistemáticos de formação continuada enfatizem prioritariamente a importância da cultura participativa e do cuidado relacional como fundamentos indissociáveis da prática pedagógica. A implementação de projetos institucionais que promovam a mediação de conflitos, a assembleia escolar e a corresponsabilização na gestão do espaço comum mostra-se como caminho promissor para a consolidação desse paradigma. É fundamental que a escola estabeleça canais permanentes de escuta, nos quais as vozes de estudantes, professores e funcionários possam contribuir para a construção de um projeto educativo verdadeiramente compartilhado.
A articulação entre a gestão pedagógica e a gestão da convivência deve materializar-se em projetos integrados que contemplem desde o planejamento curricular até a organização dos espaços físicos, sempre visando favorecer interações mais qualificadas. A sustentabilidade de um clima escolar positivo depende da criação de uma memória institucional afetiva, que celebre conquistas coletivas e aprenda com os desafios superados, fortalecendo progressivamente uma identidade escolar baseada no respeito mútuo e na confiança.
Promover intencionalmente um ambiente escolar acolhedor, democraticamente estruturado e afetivamente significativo representa, em última instância, um investimento estratégico tanto na aprendizagem cognitiva quanto no exercício pleno da cidadania ativa. Desta forma, a escola consolida-se como ambiente propício não apenas para a aquisição de conhecimentos, mas para o pleno desenvolvimento humano, onde o aprender a conviver constitui-se como alicerce para todos os outros aprendizados. Cabe às instituições de ensino, em parceria com as comunidades, assumirem o compromisso histórico de transformar seus espaços em ambientes onde todos se sintam legitimamente pertencentes, valorizados em sua singularidade e permanentemente desafiados a crescer como seres humanos integrais, capazes de construir uma sociedade mais justa, ética e solidária.
Referências Bibliográficas
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Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Docente no Ensino Superior, Ensino Fundamental, Médio e Gestor Escolar.
Elza Maria Simões: Bacharel em Administração, Professora de Matemática, Matemática Financeira, Pedagoga, Especialista em Educação Especial.