05/12/2025

CARTOGRAFIA TÁTIL: POR UMA GEOGRAFIA INCLUSIVA E MULTISSENSORIAL.

Márcia dos Santos.

Dulcinéia Alves Fernandes Fogari;

Ronaldo Camilo Ramalho;

Marcelo dos Santos Fogari;

Ivan Carlos Zampin;

RESUMO

Este artigo analisa o desenvolvimento e as aplicações da cartografia tátil no ensino de Geografia, com foco na inclusão de pessoas com deficiência visual. Partindo do marco teórico estabelecido por Regina Araujo de Almeida, pioneira no tema no Brasil, o estudo examina as bases conceituais, metodologias e práticas pedagógicas que fundamentam a produção e utilização de mapas táteis. Através de revisão bibliográfica abrangente e análise de experiências concretas, demonstra-se como a cartografia tátil não apenas viabiliza o acesso ao conhecimento geográfico para pessoas cegas ou com baixa visão, mas também enriquece o processo de aprendizagem para todos os estudantes, mediante abordagens multissensoriais. O artigo finaliza destacando a necessidade de maior integração dessas práticas na formação docente e nos materiais didáticos.

Palavras-chave: Cartografia Tátil, Educação Inclusiva, Geografia, Deficiência Visual, Mapas Multissensoriais.

1. INTRODUÇÃO

A cartografia tátil emerge como campo especializado do conhecimento cartográfico, dedicando-se à concepção, produção e utilização de mapas e outros produtos cartográficos acessíveis a pessoas cegas ou com baixa visão. Sua relevância transcende a esfera técnica, situando-se no âmbito dos direitos humanos fundamentais, particularmente o direito à educação e à informação, conforme estabelecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e reafirmado pela Constituição Federal Brasileira de 1988.

No contexto educacional brasileiro, a cartografia tátil assume papel crucial na efetivação de políticas de inclusão, possibilitando que estudantes com deficiência visual acessem conteúdos geográficos e cartográficos essenciais para sua formação cidadã. Como demonstra a trajetória de pesquisa iniciada por Regina Araujo de Almeida, pioneira nos estudos sobre o tema no país, a construção de uma linguagem gráfica tátil eficaz requer não apenas domínio técnico, mas profunda compreensão dos processos cognitivos envolvidos na percepção háptica.

Este artigo neste momento passa a analisar o estado da arte da cartografia tátil no Brasil, examinando suas bases teóricas, metodologias de produção e aplicações pedagógicas. Parte-se do pressuposto de que a cartografia tátil, longe de constituir mera adaptação de produtos cartográficos convencionais, representa possibilidade de renovação do ensino de Geografia mediante abordagens multissensoriais que beneficiam todos os estudantes.

A metodologia adotada combina revisão bibliográfica sistemática, análise documental de trabalhos acadêmicos e materiais didáticos, e sistematização de experiências pedagógicas bem-sucedidas. O estudo estrutura-se em quatro seções principais: referenciais teóricos, desenvolvimento das teorias, análise e discussão, e conclusões, seguidas de referências bibliográficas.

2. REFERENCIAIS TEÓRICOS

2.1 Fundamentos da Cartografia Tátil

A cartografia tátil fundamenta-se em pressupostos teóricos que articulam conhecimentos da Cartografia, Psicologia Cognitiva, Educação Especial e Design Inclusivo. Segundo Almeida (1994), sua base conceitual reside na adaptação das variáveis visuais propostas por Jacques Bertin (1967) para o sistema háptico, considerando as especificidades da percepção tátil.

A teoria da percepção háptica, desenvolvida por autores como Lederman e Klatzky (1987), fornece subsídios essenciais para compreender como as pessoas processam informações táteis. Esses estudos demonstram que o sistema háptico possui capacidades exploratórias específicas, como detecção de texturas, dureza, temperatura e formato, que devem ser consideradas no design de mapas táteis.

No campo da educação inclusiva, as contribuições de Vygotsky (1997) sobre a mediação pedagógica e a zona de desenvolvimento proximal oferecem fundamentação importante para o trabalho com estudantes com deficiência visual. Para o autor, o desenvolvimento cognitivo ocorre por meio da interação social e da mediação de instrumentos culturais adequados, ou seja, papel que os mapas táteis podem cumprir de maneira exemplar.

2.2 Legislação e Políticas de Inclusão

O marco legal da educação inclusiva no Brasil, estabelecido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), pelo Plano Nacional de Educação (2014) e pela Lei Brasileira de Inclusão (2015), cria condições institucionais para o desenvolvimento da cartografia tátil. Esses instrumentos legais garantem o direito à educação de qualidade para todos e impõem às instituições de ensino o dever de eliminar barreiras arquitetônicas, comunicacionais e pedagógicas.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), ratificada pelo Brasil com status de emenda constitucional, reforça a obrigatoriedade de adoção de medidas que assegurem o acesso à informação e à comunicação, incluindo sistemas e tecnologias de apoio apropriados.

3. DESENVOLVIMENTO DAS TEORIAS

3.1 Construção de uma Linguagem Cartográfica Tátil

A adaptação das variáveis visuais de Bertin para o sistema tátil constitui contribuição fundamental de Almeida (1994) para a cartografia tátil. A autora propõe seis variáveis táteis básicas: textura, forma, tamanho, orientação, densidade e elevação. Cada uma dessas variáveis possui características específicas que determinam sua adequação para representar diferentes tipos de informação geográfica.

A textura, por exemplo, mostra-se eficaz para diferenciar áreas com características distintas (como zonas urbanas e rurais), enquanto a forma, é mais adequada para representar elementos pontuais. O tamanho permite estabelecer hierarquias entre elementos similares, e a orientação pode indicar direção ou movimento. A densidade, por sua vez, possibilita representar gradientes ou intensidades, e a elevação pode denotar altitude ou importância.

A combinação dessas variáveis deve seguir princípios de clareza, consistência e redundância, garantindo que a informação seja percebida de maneira inequívoca. Como demonstram estudos empíricos, a legibilidade tátil exige simplificação seletiva dos conteúdos, eliminação de detalhes irrelevantes e ampliação adequada dos elementos representados.

3.2 Metodologias de Produção de Mapas Táteis

As técnicas de produção de mapas táteis evoluíram significativamente nas últimas décadas, abrangendo desde métodos artesanais até tecnologias digitais avançadas. Entre os métodos manuais, destacam-se o uso de papéis micro capsulados (como o Swell Paper), colagem de materiais diversos (tecidos, lixas, miçangas) e moldagem em argila ou massa modelável.

As tecnologias digitais, por sua vez, incluem impressoras braille, cortadoras a laser, impressoras 3D e sistemas de fresagem CNC. Cada tecnologia apresenta vantagens e limitações específicas, devendo ser selecionada conforme os objetivos educacionais, recursos disponíveis e características do público-alvo.

Independentemente da técnica utilizada, o processo de produção deve seguir etapas bem definidas, ou seja: definição de objetivos e público-alvo, seleção e adaptação da base cartográfica, escolha das variáveis táteis adequadas, produção do protótipo, teste com usuários e revisão final. Essa abordagem sistemática garante a qualidade e eficácia do material produzido.

3.3 Abordagens Pedagógicas para o Uso de Mapas Táteis

A introdução de mapas táteis em contextos educacionais requer estratégias pedagógicas específicas que considerem as particularidades da aprendizagem por meio do tato. Carmo (2010) propõe uma sequência didática que inicia com atividades de sensibilização tátil, passa pela exploração de mapas simples e familiares, e avança progressivamente para mapas mais complexos e abstratos.

Jogos e atividades lúdicas desempenham papel importante nesse processo, facilitando a compreensão de conceitos geográficos básicos como escala, distância, localização, direção e orientação. A construção colaborativa de mapas, envolvendo estudantes com e sem deficiência visual, mostrou-se particularmente eficaz para promover a inclusão e o aprendizado significativo.

A integração de recursos multissensoriais, tais como: audiodescrição, legendas em braille e relevo, e elementos sonoros, faz-se ampliar as possibilidades de acesso à informação e atende a diferentes estilos de aprendizagem. Essa abordagem multimodal está alinhada com os princípios do Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA), que preconiza a oferta de múltiplos meios de representação, ação e expressão, e engajamento.

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO

4.1 Impactos na Aprendizagem de Geografia

Pesquisas realizadas no contexto brasileiro demonstram que o uso de mapas táteis produz impactos significativos na aprendizagem de Geografia por estudantes com deficiência visual. Jordão (2016) observou que estudantes cegos que tiveram acesso a materiais cartográficos táteis desenvolveram melhor compreensão de conceitos espaciais e maior autonomia na resolução de problemas geográficos.

Esses resultados corroboram estudos internacionais que indicam que a experiência tátil com mapas favorece a construção de mapas mentais, mais precisos e detalhados. A exploração tátil sistemática permite que estudantes com deficiência visual formem representações mentais espaciais equivalentes às construídas por meio da visão, embora por processos cognitivos distintos.

Para estudantes videntes, a experiência com mapas táteis mostrou-se igualmente benéfica, pois estimula a percepção espacial por meio de canais sensoriais alternativos e promove uma compreensão mais integral dos fenômenos geográficos. Essa constatação reforça o caráter inclusivo da cartografia tátil, que beneficia todos os aprendizes, independentemente de suas características sensoriais.

4.2 Desafios na Formação Docente

Apesar dos avanços teóricos e metodológicos, a cartografia tátil ainda enfrenta significativas barreiras para sua incorporação na prática docente. Carmo (2017) identifica como principais obstáculos a escassa formação inicial e continuada de professores em cartografia tátil, a carência de recursos materiais e tecnológicos nas escolas, e a persistência de concepções limitadas sobre as capacidades de aprendizagem de estudantes com deficiência visual.

A superação desses desafios exige, conforme propõe Bittencourt (2012), a integração da cartografia tátil nos currículos dos cursos de licenciatura em Geografia, com abordagem que articule teoria e prática. Experiências de formação que envolvem a produção e utilização de mapas táteis em contextos reais de ensino mostram-se particularmente eficazes para modificar concepções e práticas docentes.

4.3 Tendências e Perspectivas Futuras

O desenvolvimento recente de tecnologias digitais acessíveis abre novas perspectivas para a cartografia tátil. Sistemas de informação geográfica (SIG) acessíveis, dispositivos de interface háptica e aplicativos móveis com funcionalidades de acessibilidade ampliam consideravelmente as possibilidades de produção e uso de mapas táteis.

A combinação de impressão 3D com recursos de realidade aumentada e realidade virtual acessível configura tendência promissora, permitindo a criação de ambientes de aprendizagem imersivos e inclusivos. Essas tecnologias emergentes, contudo, não substituem a necessidade de materiais táteis convencionais, mas antes complementam e enriquecem o repertório de recursos disponíveis.

A cartografia tátil está evoluindo em direção a uma cartografia verdadeiramente inclusiva e multissensorial, que considera a diversidade de formas de perceber e interagir com o espaço. Essa evolução exige abordagens interdisciplinares que integrem conhecimentos da Cartografia, Ciência da Computação, Psicologia Cognitiva, Educação e Design.

5. CONCLUSÃO

A cartografia tátil constitui campo de conhecimento e prática essencial para a efetivação do direito à educação geográfica de qualidade para pessoas com deficiência visual. Seu desenvolvimento no Brasil, impulsionado por pesquisas pioneiras como as de Regina Araujo de Almeida, demonstra tanto a viabilidade técnica quanto o potencial pedagógico dessa abordagem.

Os avanços alcançados nas últimas décadas na teorização, nas metodologias de produção e nas estratégias de utilização pedagógica, criam condições favoráveis para a ampliação do acesso a mapas táteis em diferentes contextos educacionais. No entanto, a plena realização desse potencial depende da superação de desafios persistentes, particularmente na formação docente e na disponibilização de recursos.

A cartografia tátil, em sua evolução contemporânea, transcende sua função original de adaptação de materiais para pessoas com deficiência visual, configurando-se como abordagem pedagógica inovadora que beneficia todos os aprendizes. Sua integração com tecnologias digitais acessíveis e com princípios do Desenho Universal para a Aprendizagem aponta caminhos promissores para uma educação geográfica verdadeiramente inclusiva e de qualidade.

O futuro da cartografia tátil depende, em grande medida, do fortalecimento de políticas públicas de inclusão, do investimento em pesquisa, desenvolvimento, e do compromisso das instituições educacionais com a eliminação de barreiras ao acesso ao conhecimento. Nesse esforço coletivo, a cartografia tátil continuará cumprindo seu papel essencial de tornar o mundo visível para aqueles que o enxergam com as mãos.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, R. A. de. Cartografia tátil: uma linguagem para a construção e leitura de mapas por deficientes visuais. 1994. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade de São Paulo, São Paulo.

BITTENCOURT, A. A. A linguagem cartográfica e a mediação da aprendizagem pelo processo de desenvolvimento de materiais didáticos táteis: Experiências com professores em formação contínua. 2012. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade de São Paulo, São Paulo.

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 2015.

CARMO, W. R. do. Cartografia tátil escolar: experiências com a construção de materiais didáticos e com a formação continuada de professores. 2010. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade de São Paulo, São Paulo.

CARMO, W. R. do. A cartografia tátil na formação de professores de geografia: da teoria à prática. 2017. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade de São Paulo, São Paulo.

JORDÃO, B. G. F. Cartografia tátil na educação básica: os cadernos de geografia e a inclusão de estudantes com deficiência visual na rede estadual de São Paulo. 2016. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade de São Paulo, São Paulo.

LEDERMAN, S. J.; KLATZKY, R. L. Hand movements: A window into haptic object recognition. Cognitive Psychology, v. 19, n. 3, p. 342-368, 1987.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris: Assembleia Geral das Nações Unidas, 1948.

VYGOTSKY, L. S. Obras escogidas V: Fundamentos de defectología. Madrid: Visor, 1997.

 

Márcia dos Santos: Graduada em Licenciatura Plena em Geografia, Pedagoga, Coordenadora de Gestão Pedagógica, Especialista em Gestão Escolar.

Dulcinéia Alves Fernandes Fogari: Professora Licenciatura em Geografia, Tecnóloga em Processos Gerenciais, Pedagoga, Psicanalista, Neuropsicopedagoga, Docente do Ensino Superior.

Marcelo dos Santos Fogari: Bacharel em Administração de Empresas com Ênfase em Análise de Sistemas, Licenciatura em Geografia, Formação em Power BI Módulos Avançados.

Ronaldo Camilo Ramalho: Graduação em Gestão Ambiental, Especialização em Engenharia Ambiental, Especialização em Política e Gestão em Segurança Pública, Especialização em Direito, Segurança Pública e Organismo Policial, Especialização em andamento em Teologia, Especialização em andamento em Enfermagem de Urgência e Emergência.

Ivan Carlos Zampin: Bacharel em Sistemas de Informação, Professor Doutor em Geografia, Pesquisador, Pedagogo, Docente no Ensino Superior, Ensino Fundamental, Médio, Especialista em Gestão Escolar, Gestão Pública e Psicopedagogia Institucional.

Assine

Assine gratuitamente nossa revista e receba por email as novidades semanais.

×
Assine

Está com alguma dúvida? Quer fazer alguma sugestão para nós? Então, fale conosco pelo formulário abaixo.

×