08/11/2025

CARTOGRAFIA TÁTIL E EDUCAÇÃO AMBIENTAL: CAMINHOS PARA UMA GEOGRAFIA INCLUSIVA E MULTISSENSORIAL

Márcia dos Santos.

Dulcinéia Alves Fernandes Fogari;

Ronaldo Camilo Ramalho;

Marcelo dos Santos Fogari;

Ivan Carlos Zampin;

 

RESUMO

Este artigo analisa o desenvolvimento, as metodologias e as práticas de utilização da cartografia tátil no ensino de Geografia, enfatizando sua relevância para a inclusão de estudantes com deficiência visual e sua articulação com a educação ambiental. Ao dialogar com o marco teórico construído por Regina Araujo de Almeida, pioneira na elaboração de uma linguagem cartográfica tátil no Brasil, a pesquisa discute os fundamentos cognitivos da leitura tátil, as possibilidades de produção de materiais pedagógicos acessíveis e o papel da cartografia multissensorial na construção da alfabetização espacial e ambiental. Por meio de revisão bibliográfica, análise de políticas educacionais inclusivas e sistematização de experiências pedagógicas, demonstra-se que a cartografia tátil, além de garantir o direito de aprender para pessoas cegas ou com baixa visão, promove uma compreensão mais sensorial, crítica e cidadã do espaço, fortalecendo práticas de educação ambiental que valorizam percepções diversas do território. Neste sentido é notório que a consolidação da cartografia tátil como linguagem pedagógica demanda investimento em formação docente, políticas públicas permanentes e integração entre tecnologias digitais e abordagens sensoriais inclusivas.

Palavras-chave: Cartografia Tátil; Educação Inclusiva; Geografia; Educação Ambiental; Deficiência Visual; Multissensorialidade.

1. INTRODUÇÃO

A cartografia faz parte de um conjunto de ferramentas essenciais para a compreensão do espaço geográfico, auxiliando o ser humano a interpretar o mundo, planejar ações e compreender dinâmicas territoriais e ambientais. Entretanto, historicamente, o acesso às representações cartográficas tem sido restrito principalmente ao sentido da visão, criando barreiras para que pessoas cegas ou com baixa visão possam participar plenamente da construção do conhecimento geográfico. Diante dessa realidade, a cartografia tátil consolida-se como campo especializado, destinado à produção de mapas concebidos para serem percebidos pelo tato, ampliando o acesso ao conhecimento e promovendo igualdade de oportunidades no processo educativo.

Esse debate se insere no contexto das políticas de inclusão reconhecidas internacionalmente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) e nacionalmente pela Constituição de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), pelo Plano Nacional de Educação (2014) e pela Lei Brasileira de Inclusão (BRASIL, 2015). No âmbito pedagógico, a cartografia tátil constitui uma prática que responde à demanda de democratizar o ensino de Geografia e contribuir para a formação de sujeitos críticos e autônomos. Entretanto, a sua importância não se limita apenas à acessibilidade. Ao permitir que todos os estudantes cegos e videntes percebam o espaço por meio do uso combinado de sentidos, a cartografia tátil incorpora princípios da educação ambiental que valorizam a experiência sensorial e a construção coletiva do território.

A Educação Ambiental, entendida como processo contínuo de formação crítica sobre as interações entre sociedade e natureza, exige envolvimento sensorial, participação ativa e percepção espacial, dimensões que se beneficiam das práticas multissensoriais presentes na cartografia tátil. Assim, este artigo sustenta que a cartografia tátil constitui um caminho metodológico potente para promover aprendizagens geográficas e ambientais de modo inclusivo, sensível e socialmente comprometido.

2. REFERENCIAIS TEÓRICOS

A construção da cartografia tátil no Brasil está fortemente associada às pesquisas pioneiras de Regina Araujo de Almeida (1994), que propôs uma linguagem gráfica adequada ao tato, inspirando-se no sistema visual de variáveis desenvolvido por Bertin (1967). Almeida demonstrou que a representação tátil não é simples transposição de mapas visuais para o relevo, mas exige um redesenho metodológico que considere a percepção háptica como campo cognitivo autônomo.

A psicologia da percepção háptica, especialmente nos estudos de Lederman e Klatzky (1987), evidencia que o tato possui estratégias próprias de exploração, ou seja, é a forma de como seguir contornos, comparar texturas e perceber volumes, sendo capaz de construir imagens mentais estruturadas do espaço. Essa compreensão fundamenta o desenho de mapas táteis que devem ser claros, simplificados e coerentes, evitando sobrecarga informativa.

No campo da educação, Vygotsky (1997) destaca que o desenvolvimento cognitivo ocorre por meio de mediação cultural. Para o autor, instrumentos simbólicos como a linguagem e os materiais didáticos são elementos estruturantes da aprendizagem. O mapa tátil, nesse sentido, é instrumento mediador que possibilita a construção de representações espaciais e ambientais capazes de orientar deslocamentos, organizar informações, interpretar problemas geográficos e planejar ações sociais.

Em consonância, a educação ambiental, segundo a Conferência de Tbilisi (1977), pressupõe o desenvolvimento de consciência, sensibilidade e capacidade de intervenção no ambiente. Tais dimensões não são meramente abstratas: elas dependem da experiência vivida do território. A cartografia tátil amplia o acesso à experiência espacial, oferecendo condições para que pessoas cegas e videntes vivenciem o ambiente através da percepção, da linguagem e do corpo.

3. DESENVOLVIMENTO DAS TEORIAS

Almeida (1994) identifica seis variáveis táteis essenciais para a representação cartográfica: textura, tamanho, forma, orientação, densidade e elevação. Cada uma auxilia na diferenciação de elementos como áreas, linhas, pontos e relevos. O desenho tátil exige simplificação dos mapas, ampliando elementos relevantes e removendo informações secundárias. Esse processo está alinhado à própria lógica da educação ambiental, que requer leitura crítica do território, valorizando relações e impactos mais do que informações excessivas.

As metodologias de produção de mapas táteis variam entre técnicas artesanais como colagem de superfícies texturizadas, uso de cordões e placas de EVA e técnicas digitais, como impressão 3D, corte a laser e desenho assistido por computador. Carmo (2010; 2017) enfatiza que, independentemente da tecnologia utilizada, o processo deve incluir testagem com estudantes, respeitando suas experiências sensoriais e necessidades reais.

Além disso, a prática pedagógica com cartografia tátil deve ser gradual. Jordão (2016) demonstra que a aprendizagem espacial ocorre com maior profundidade quando se inicia pela exploração sensorial do próprio corpo, avança para o espaço imediato (sala, casa, escola) e, só posteriormente, alcança mapas regionais, nacionais e globais. Tal progressão também é central para a educação ambiental, que parte da vivência local para pensar escalas mais amplas de impacto socioambiental.

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO

A introdução de mapas táteis no ensino de Geografia produz impactos significativos na formação geográfica e ambiental, configurando-se como uma verdadeira transformação paradigmática na maneira de conceber e praticar o ensino da disciplina. Estudantes cegos relatam maior autonomia na construção de imagens mentais do espaço, capacidade de orientação e compreensão das relações territoriais, desenvolvendo uma consciência espiral mais aguçada e uma relação mais íntima com o território. Essa apropriação do espaço através do tato permite a construção de representações mentais ricas em detalhes e complexidade, demonstrando que a compreensão geográfica não se restringe ao campo visual.

Videntes, ao interagir com mapas táteis, desenvolvem novas percepções sensoriais, ampliando a compreensão da complexidade espacial e construindo empatia com diferentes modos de perceber o mundo. Essa experiência multissensorial revela-se particularmente eficaz para desconstruir visões simplificadas do espaço, pois obriga o estudante a estabelecer relações mais profundas entre os elementos geográficos representados. A exploração tátil de mapas estimula um processo cognitivo mais lento e reflexivo, favorecendo a apreensão de relações espaciais que poderiam passar despercebidas em uma leitura exclusivamente visual.

Essas práticas contribuem diretamente para a educação ambiental ao promover experiências corporais e sensíveis com o espaço, reforçando a noção de que o ambiente é vivido e construído culturalmente. A dimensão tátil da cartografia permite uma compreensão mais concreta de conceitos abstratos como sustentabilidade, conservação e degradação ambiental, transformando-os em experiências palpáveis e significativas. Ao tocar um mapa que representa bacias hidrográficas, áreas degradadas ou biomas, o estudante realiza uma leitura que aproxima materialidade, percepção e ética, estabelecendo uma conexão emocional com as questões ambientais representadas.

A cartografia tátil, quando aplicada à educação ambiental, possibilita uma compreensão mais integral dos processos ecológicos e das intervenções humanas no território. A representação tátil de problemas como desmatamento, poluição ou conservação de ecossistemas permite que os estudantes percebam as dimensões espaciais desses fenômenos de maneira mais concreta e impactante. Essa abordagem sensorial favorece o desenvolvimento de uma consciência ambiental mais profunda e comprometida, pois transforma conceitos abstratos em experiências tangíveis.

No entanto, a inclusão da cartografia tátil ainda enfrenta desafios estruturais profundos, pois, a falta de formação docente específica, a escassez de materiais nas escolas e a prevalência de uma visão reducionista de deficiência que a percebe como limitação ou como diferença. Esses obstáculos refletem uma concepção ainda hegemônica de educação que privilegia o visual em detrimento de outras formas de conhecimento e que compreende a inclusão como adaptação e transformação das práticas pedagógicas.

A superação desses desafios exige a incorporação da cartografia tátil na formação inicial de professores de Geografia como conteúdo obrigatório e não como tema complementar. É necessário desenvolver programas de formação que articulem teoria e prática, permitindo que os futuros docentes vivenciem tanto a produção quanto a utilização pedagógica de mapas táteis. Paralelamente, é essencial promover políticas institucionais que assegurem a produção e distribuição de materiais acessíveis em escala, garantindo que todas as escolas tenham acesso a recursos cartográficos táteis de qualidade.

A integração com tecnologias digitais acessíveis, como impressão 3D e realidade aumentada com descrições sonoras, representa avanço significativo, mas não substitui a dimensão sensorial do toque. Essas tecnologias devem ser compreendidas como complementares ao invés de substitutas dos materiais táteis convencionais, ampliando as possibilidades de representação e interação substituindo a experiência direta com o material tátil. A combinação entre técnicas tradicionais e tecnologias digitais cria um espectro mais rico de possibilidades pedagógicas, atendendo a diferentes necessidades e preferências de aprendizagem.

A educação inclusiva e ambiental deve ser vivenciada, não apenas visualizada, exigindo uma abordagem pedagógica que incorpore o corpo e os sentidos como elementos centrais do processo de aprendizagem. A cartografia tátil, nesse sentido, representa muito mais que uma técnica de adaptação, configura-se como uma filosofia educacional que reconhece a diversidade sensorial como valor pedagógico e que compreende o conhecimento geográfico como construção multissensorial. Seu potencial transformador reside justamente na capacidade de ressignificar o ensino de Geografia, tornando-o mais experiencial, significativo e, sobretudo, mais humano.

5. CONCLUSÃO

A cartografia tátil representa um avanço significativo na democratização do ensino de Geografia, assegurando o direito ao conhecimento espacial para pessoas com deficiência visual e enriquecendo o aprendizado de todos os estudantes. Esta abordagem pedagógica inovadora transcende a mera adaptação de materiais, configurando-se como uma verdadeira revolução metodológica que ressignifica o processo de ensino-aprendizagem em Geografia. Ao incorporar múltiplos sentidos na construção do conhecimento geográfico, a cartografia tátil possibilita experiências educacionais mais ricas e significativas, capazes de atender às diversas formas de apreensão e compreensão do espaço.

Sua articulação com a educação ambiental reforça o papel da escola na formação de sujeitos críticos, sensíveis e responsáveis pelo ambiente em que vivem. Através do manuseio de mapas que representam questões ambientais como desmatamento, poluição hídrica ou conservação de ecossistemas, os estudantes desenvolvem uma consciência espacial mais aguçada e uma compreensão mais profunda das inter-relações entre sociedade e natureza. Essa experiência sensorial direta com representações de problemas ambientais favorece o desenvolvimento de uma postura ética e comprometida com a sustentabilidade.

Todavia, para que essa prática se torne parte integrante da educação básica, é necessário investir de forma sistemática na formação docente, na produção de materiais didáticos acessíveis e na promoção de uma cultura escolar que valorize a diversidade sensorial como potência pedagógica. A formação de professores deve incluir, de maneira obrigatória, o domínio das técnicas de cartografia tátil e a compreensão dos fundamentos teóricos que as sustentam. Paralelamente, é preciso garantir a disponibilidade de recursos materiais e tecnológicos que viabilizem a produção e utilização desses materiais em escala.

A superação dos desafios atuais exige, ainda, a construção de políticas públicas consistentes que assegurem a continuidade das ações de inclusão e o financiamento necessário para a produção e distribuição de materiais cartográficos táteis. A articulação entre universidades, secretarias de educação e instituições especializadas em deficiência visual mostra-se fundamental para criar redes de apoio e compartilhamento de conhecimentos e experiências.

A cartografia tátil não torna o mundo apenas visível para quem lê com as mãos. Ela torna o mundo mais compreensível para todos, porque ensina a sentir o espaço, a decodificar suas complexidades através do tato e a construir representações mentais mais elaboradas e significativas. Esta abordagem multissensorial revela-se particularmente valiosa em um contexto educacional marcado pela diversidade, pois reconhece e valoriza as diferentes formas de aprender e conhecer.

Ao transformar a experiência espacial em uma vivência concreta e palpável, a cartografia tátil contribui para a formação de cidadãos mais conscientes de sua inserção no espaço geográfico e mais capacitados para intervir criticamente na realidade. Seu potencial inclusivo vai além da garantia de acesso ao conhecimento, promovendo uma verdadeira revolução na maneira como concebemos e praticamos o ensino de Geografia.

O futuro da cartografia tátil depende do reconhecimento de seu valor pedagógico não apenas como ferramenta de inclusão, mas como metodologia de excelência para o ensino de Geografia. Sua consolidação como prática educacional requer o engajamento de todos os atores envolvidos no processo educativo, ou seja, desde gestores e formuladores de políticas até professores e estudantes em um movimento coletivo pela construção de uma educação verdadeiramente inclusiva e de qualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VYGOTSKY, L. S. Fundamentos de defectología. Madrid: Visor, 1997.

 

Márcia dos Santos: Graduada em Licenciatura Plena em Geografia, Pedagoga, Coordenadora de Gestão Pedagógica, Especialista em Gestão Escolar.

Dulcinéia Alves Fernandes Fogari: Professora Licenciatura em Geografia, Tecnóloga em Processos Gerenciais, Pedagoga, Psicanalista, Neuropsicopedagoga, Docente do Ensino Superior.

Marcelo dos Santos Fogari: Bacharel em Administração de Empresas com Ênfase em Análise de Sistemas, Licenciatura em Geografia, Formação em Power BI Módulos Avançados.

Ronaldo Camilo Ramalho: Graduação em Gestão Ambiental, Especialização em Engenharia Ambiental, Especialização em Política e Gestão em Segurança Pública, Especialização em Direito, Segurança Pública e Organismo Policial, Especialização em andamento em Teologia, Especialização em andamento em Enfermagem de Urgência e Emergência.

Ivan Carlos Zampin: Bacharel em Sistemas de Informação, Professor Doutor em Geografia, Pesquisador, Pedagogo, Docente no Ensino Superior, Ensino Fundamental, Médio, Especialista em Gestão Escolar e Gestão Pública.

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