Capítulo VI A Bruxa Lagarrona
Os mouros que viviam na região portuguesa de Évora moravam em boas casas, tinham fartura, pois seu rei, Praxadopel, era benévolo e sábio. Os cristãos, que habitavam as casas brancas, com cruzes de madeira, eram também felizes. Esse monarca mouro — Praxadopel — era dono de riquezas fabulosas. Em Montemur, região de flores douradas, possuía um castelo que era morada de anjos, talvez, tal a sorte de bonança que de lá se adivinhava. Desse castelo hoje só ha ruinas, pedras sobre pedras, uivos de lobos e chacais. Chama-se hoje em dia o "Castelo de Giraldo". Dá arrepios o velho castelo em ruinas. Mas, por que esse monte de pedras é importante para nosso relato sobre a Bruxa Lagarrona? E que nele, no fundo, enterrada no meio das pedras, está a sepultura de Montemur. Nela foram encontrados os restos mortais de sete pessoas e os pergaminhos escritos por Lagarrona, a guardiã. São Cipriano, estudioso dos fenômenos mágicos e de feitiçaria, através desses pergaminhos encontrou a casa da feiticeira, ainda em pé, apesar dos séculos. E essa casa é diabólica. . . No meio dela havia uma cova da altura de um homem. Pela banda de dentro era pintada, em toda a volta, de lagartos, cobras e lagartixas. Do lado de fora, viam-se quatro sapos, e várias figuras de meninos, pequenos e louros, com sorriso sádico, tendo nas mãos molhos de varinhas de ervas com os quais eles ameaçavam os sapos. Num dos cantos dessa casa mal-assombrada, a figura de um ser muito estranho — meio monstro meio homem, como um cavalo-homem feito em pedra. O que representaria? Um centauro? Uma estátua de mulher-serpente repousava noutro canto. Sereia negra? Mágica figura para bruxarias? Pelas paredes da casa podiam ser vistas muitas pinturas de caracóis, bichos peçonhentos, rãs; escaravelhos sagrados, símbolos do Egito mágico, vespas, carochas, tudo isso desenhado naquele antro de feitiçaria. O chão era todo ladrilhado de negro e um frio envolvia todo o ambiente. Um letreiro pintado ao chão continha a inscrição fatídica:
“O primeiro a abrir esta cova verá coisas jamais vistas”. — Cava por diante para que resistas ao grande temor que teu peito prova. Verás os sortilégios mágicos que prendem os homens, O filtro do amor que amarra as mulheres. Não temas, não temas, não mostres temor: Acharás sucessos, magia e amor. E por certo em tudo será vencedor."
Lagarrona, a grande bruxa, tinha, ao escrever esta inscrição, alguma coisa em mente: deixar seus segredos para quem soubesse interpretá-los. E Simão Mago sabia analisá-los, pois desde que fui iniciado como alto sacerdote estudava tudo sobre bruxaria e magia. Assim, as interpretações deste pergaminho, deu a Simão Mago a posse de um conhecimento esotérico antigo, tão fabuloso como os hieróglifos das pirâmides. Lagarrona nestes escritos deixou a interpretação das cartas, o método de deitá-las para adivinhar o futuro, feitiços para o amor, bruxarias para ganhar dinheiro, ter sorte no jogo, adivinhações por meio de bacias d'água, de espelhos mágicos, por meio de cebolas, de perfumes.
Durante séculos estes segredos, gravados no pergaminho, ficaram na torre do Castelo de Malta, pois o sacerdote que os encontrou, após traduzi-los para o português, ocultou-os em uma arca, a sete chaves. Um certo Fausto, tido como homem afortunado, que desejava muito ser remido da pecha de usurário(indivíduo obcecado por adquirir e acumular dinheiro, que não gosta de gastar, é seguro nos gastos; avaro, mesquinho, sovina), limpando a velha torre, cheia de teias de aranha e morcegos, achou os escritos antigos. E pretende dividir seus conhecimentos com a humanidade, mostrando-se assim generoso e condescendente.
A velha bruxa não era analfabeta, Cipriano teve seu primeiro encontro com a Bruxa na Mesopotâmia, na Babilônia, [atual Iraque] onde se reuniam os ocultistas que estudavam a magia dos antigos Caldeus [sobretudo Astrologia]. Considerando essa informação como fato possível, uma Bruxa ou feiticeira na/ou daBabilônia seria, naturalmente, versada naquele tipo magia característica da cultura Mesopotâmica, aquela normalmente classificada como magia das trevas, da mão esquerda, magia negra: Goecia, necromancia, vidência, evocações, parcerias com demônios, envultamentos [encantamento à distância: os bonecos de cera e as agulhas], oráculos.
Essas bruxas e bruxos foram aqueles que preservaram alguma coisa das tradições da magia das tribos nômades e reino antigos de tempos ainda mais arcaicos entre os quais destacam-se os Caldeus e os Assírios.
Era uma Magia de sombras, freqüentemente desprovida de escrúpulos, sem critérios éticos, que livremente associava-se com entidades não humanas e pouco confiáveis: demônios, gênios, formas-pensamento, elementais, espíritos de pessoas mortas.
Uma bruxa assim poderia, mesmo ter existido. E não somente uma, mas várias. As bruxas Lagarronas seriam algo como uma categoria de feiticeiras. O maior desafio seria estabelecer a verdadeira identidade da bruxa.
Devo recorrer ao primeiro enfrentamento de Cipriano com a Lagarrona, que relato a seguir:
“Voltando o grande e sábio Cipriano, mago da Fenícia, de uma festa de Natal, e não podendo atravessar os campos em consequência de haver uma grande cheia no rio por onde teria que passar, teve de se abrigar num túnel formado pela natureza e ali, ao frio e fome, passar a noite. Então, valeu-se de artes de magia, para salvar-se do frio e da fome. Embrulhou-se num manto que fez com palavras invocatórias, e comeu um maná tal qual o maná dos judeus. E adormeceu num seguro lugar daquela gruta. Próximo à meia-noite ouviu passos e divisou uma luz. Temendo que fossem malfeitores, encolheu-se por trás da ponta duma grossa pedra. Pouco depois soou naquela cova úmida uma voz cavernosa, que dizia:
— O mágico Cipriano, rei dos feiticeiros, por ti aqui venho com quatro fogachos vivos e peço-te que me dês passagem por esta escura gruta, pois sou a Bruxa Lagarrona, a maior das feiticeiras.
Cipriano ia levantar-se e dar passagem à velha feiticeira, mas teve de recuar a estas palavras:
— Ó Lúcifer, Filho da Luz, ergue-te e vem até Lagarrona para que ela vença Cipriano da Antióquia, já que rompendo com a prática da feitiçaria se converteu à fé cristã. Eu, a Bruxa de Évora, consolo as esposas infelizes, traídas e escorraçadas, com meus pós de sapo e arruda, curo e trago dinheiro, e ele hoje nada mais faz, apenas embruxado em seus mantos dorme e ora.
O santo Cipriano ainda usava de magia, mas só para o bem, então teve que consolar-se do atrevimento de Lagarrona, e disse:
— No entanto, estás fazendo um feitiço errado, velha bruxa, e, pelo demônio, eu, só eu posso te ajudar!
— Pelo Deus dos idólatras, eu tenho fórmulas corretas, que erro é este? — pergunta Lagarrona.
— É o feitiço do amor, que leva pele de cobra de zuague, e raiz de urze, que deve ser queimada em nome de Belzebul o Baal das Moscas.
— Sim. Estás falando certo, mas onde está meu erro? — indaga a Bruxa de Évora.
— É porque não usaste o ingrediente principal, e que tua mãe, a Bruxa Bambina, te revelou — disse o santo.
— Tu és um pagão ainda, Cipriano. Qual é esse ingrediente? pergunta a velha Lagarrona.
— É a raiz da arruda, a planta que é protetora e traz a sorte — disse Cipriano, fazendo o sinal de Satã.
Triste, a bruxa desatou a chorar e deixou-se cair abandonada sobre uns ramos de árvores que os pastores para ali tinham arrastado de dia. O santo levantou-se com grande amor e caridade, e depois de lhe ter sacudido as vestes disse:
— Tu eras capaz de fazer mil feitiços, mas não o do amor, mas agora aprendestes. Agora sim, és capaz de praticar a magia do amor, mas e a magia fenícia?
Cipriano perguntava isso, porque a ele foram ministrados todos os segredos dos ídolos pagãos. Baal, Astarté, Vênus Carmona foram seus ídolos. Então, passados muitos anos, ele aprendera com Satanás, numa sexta-feira, as práticas da bruxaria de matar, de fazer nascer, de trazer a fortuna. E, por pena da grande bruxa, que era também sábia e magnânima, ele iria ministrar-lhe os segredos de Pompéia, dos pós de amarração, dos pós de cascavel e sapos, do ouro alquímico e da sorte. E, até o raiar do dia os dois riscaram fórmulas e fizeram preces demoníacas. De repente, explodindo em pólvora, Satanás apareceu. Trazia as fórmulas certas e corretas, e revela ao grande Cipriano e à sábia Lagarrona, como evocar os espíritos dos mortos. Pronto. Estavam os dois macabros, donos da grande sabedoria da magia negra. O que ocorreria a esses dois prova que é um perigo desenterrar os cadáveres e usar-lhes os restos de vida: Cipriano morreu degolado em Roma e a Bruxa de Évora foi também lapidada nas ruas escuras do lugarejo português. A magia tem também seus limites. E praticá-la para o bem só traz a sorte. Caso contrário... Só traz infelicidades e desilusões.”
Todavia, a moura pagã era, ao mesmo tempo, devota cristã: ...a velha bruxa já tinha feito a peregrinação a Santiago de Compostela... Já tinha ido à Sé de Braga, muitas vezes, pagar promessas...E, ainda: ...a velha bruxa não era uma herética. Era uma mulher que conhecia as rezas.
Enquanto me batia em estudos e viagens transcendentais relatos de avistamentos de bruxas vinham de todas as partes de Florianópolis, terra de colonização Açoriana. Talvez a ascendência portuguesa da Lagarrona justificasse a sua predileção por materializar-se na ilha, capital Catarinense.
Vários moradores relataram estupefatos, terem avistado uma bruxa negra, envolta em longo manto, sentada em uma longa vassoura de piaçava, com cabo lenhoso e retorcido sobrevoando o maciço do Morro da Cruz, circundando-o por três vezes, antes de fazer um voo rasante até a beira-mar insular, momentos antes do grande apagão, que deixou Florianópolis no escuro por três noites.
Noites tenebrosas em que ocorreram saques, pilhagens, estupros, vandalismo e o sumiço de obras sacras da catedral metropolitana. Os cidadãos não se arriscavam a saírem nas ruas, os alimentos deterioravam nas geladeiras. O cheiro pútrido do mercado publico municipal era nauseabundo e as pessoas temiam comer alimentos estragados. Abutres revoavam durante o dia e animais carniceiros atacavam durante a noite. Animais foram encontrados degolados no Sul da Ilha e uma praga de sapos verdes e gosmentos saiam da Lagoa do Peri e invadiam as casas, comércios, hospitais e plantações dos manezinhos desolados.
Indigentes, mendigos, rufiões e prostitutas relataram que na noite mais escura, quando um clarão de um raio iluminou os céus da ilha, uma figura sombria, se fez visível em pé sobre a igreja metropolitana, longo cajado em mãos, gargalhando assustadoramente.
Era mais que tempo de invocar a Lagarrona. Confesso caro leitor, que o medo era aterrador. Maior do que ir ao inferno e ver a alma de meu antecessor Simão Mago sendo severamente castigada, ainda maior que o horror de ter a cabeça quase decepada por uma cimitarra moura na cruzada e também maior do que ter sido tentado por Satanás a pactuar como Fausto e Cipriano.