12/06/2018

As Manifestações Discursivas No Ciberespaço: Superando Deturpações e Banalizações

Adilson Cristiano Habowski, Mestrando em Educação pela Universidade La Salle. Graduado em Teologia pela Universidade La Salle – Canoas. Integrante do grupo de pesquisa NETE/UNILASALLE/CNPq. E-mail: adilsonhabowski@hotmail.com

Elaine Conte, Professora do Programa de Pós-graduação em Educação pela Universidade La Salle, Canoas/RS. Líder do Núcleo de Estudos sobre Tecnologias na Educação - NETE/UNILASALLE/CNPq. E-mail: elaine.conte@unilasalle.edu.br

RESUMO: O presente texto analisa a possível relação entre a evangelização cristã e as tecnologias digitais, identificando as (in)viabilidades de uma propagação e vivência da fé através das tecnologias. É um estudo imprescindível para a Igreja, bem como para as reflexões teológicas, visto que estamos numa sociedade entrelaçada por influências globais e interconexões com o outro, o diferente, a constante inovação, a rápida interação e as diversas manifestações discursivas depositadas no ciberespaço. Observamos que existe uma determinada banalização das coisas sagradas e das mensagens de fé associadas ao religioso no ciberespaço. O cuidado reside para que essa nova forma de evangelização não sofra deturpações da postura reflexiva perante a vida, à construção da própria identidade (suscetível à necessidade de velocidade desorientadora) imposta pelo ritmo contemporâneo da indústria cultural.

Palavras-chave: Tecnologias; Evangelização; Identidade; Desafios.

 

THE DEBATE ON DIGITAL TECHNOLOGIES FOR EVANGELIZATION

ABSTRACT: This text examines the possible relationship between the Christian evangelization and digital technologies, identifying the (in) a propagation viabilities and experience of faith via technologies. Is an essential study for the Church, as well as for theological reflection, since we're in a society intertwined by global influences and interconnections with each other, different, constant innovation, the fast interaction and the various discursive manifestations deposited in cyberspace. We observe that there is a certain trivialization of the sacred things and the associated religious faith messages in cyberspace. The careful lies to which this new form of evangelisation not suffer misrepresentations of reflective stance towards life, the building of own identity (susceptible to need for speed disorienting) imposed by the pace of contemporary culture industry.

Keywords: technologies. Evangelization. Challenges.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Compreender as múltiplas dimensões das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) e relacioná-la com as possibilidades de evangelização[1] é trilhar um mundo de aporias (controverso), pois mexe com toda a tradição cristã que está fortemente alicerçada numa vivência comunitária, que se dá pela presença física nos seus diversos rituais, além de identificarmos pouquíssimas pesquisas aprofundadas sobre a temática. No entanto, isso serve de impulso para reflexões e novas indagações norteadoras para o nosso tempo, a saber: Que impactos estas mudanças tecnológicas têm na evangelização? Quais os possíveis caminhos e as potencialidades do surgimento de uma reflexividade pela via TIC para tornar possível uma experiência de fé reanimada nas estruturações religiosas? Estas duas questões nos interpelam para a tomada de posição sobre o assunto. Conforme Habermas, “pelo fato de não sabermos se é dada a possibilidade de sucesso, devemos ao menos tentar. Sentimentos apocalípticos não produzem nada, além de consumir energias que alimentam nossas iniciativas”[2]. Diante desse contexto, estamos ancorados em uma abordagem hermenêutica voltada para a compreensão e a interpretação de textos e discursos inscritos no mundo da cultura. Na verdade, parece que a modernidade é guiada por uma ansiedade existencial inevitável num mundo que opera sobre resultados e cobranças pessoais, em que percebemos na terapia da fé e na postura reflexiva um dispositivo para contextualizar os desafios impostos à própria vida e à formação identitária.

Caracterizar as experiências de fé nos meios tecnológicos é desafiador e necessário, visto que requer um diagnóstico das modificações ontológicas e sociológicas que as novas tecnologias digitais vêm provocando nas relações entre as pessoas e o mundo, especialmente nas formas de conviver com as pressões externas. Por ocasião dos acelerados avanços das tecnologias digitais, vivemos num processo de mudança social e cultural onde as pessoas têm ânsia de serem vistas (e mostrar que são melhores que o outro) e de ter mais (sucesso financeiro a qualquer custo), o que acaba tornando as pessoas desumanizadas, infelizes, alienadas em relação ao outro, e o mundo mensurável por ações que fragilizam, objetificam e segregam a própria experiência humana. O ciberespaço é também uma arena de segregação e pode influenciar nos modos de ser das pessoas e que são facilmente percebidas, no sentido de novas linguagens, atitudes, ideologias e trocas de valores, fazendo com que o mundo se complexifique de uma forma não patológica, ou seja, oportunizando a tomada de consciência e a (re)organização da própria aprendizagem vital.

Nas tecnologias digitais as pessoas possuem o poder da liberdade na preferência de pesquisas, na transmissão de opiniões pessoais, na defesa de seus posicionamentos coletivos e ideologias. A liberdade que temos nessas tecnologias e que talvez não ocorra com tanta presença nos demais âmbitos sociais influencia com veemência os sentidos da fé voltados para a libertação, justiça e igualdade social, através do privilégio da reflexividade sobre a vida. As TDIC são fruto de uma maior liberdade de escolha e de poder que o ciberespaço dá as pessoas e transmite, possibilitando ao sujeito o projetar-se vital na tomada de decisões. Os desafios para a igreja está no (con)viver e no fazer pensar por meio das tecnologias, pois elas nos colocam desafios significativos para os entendimentos da fé cristã que são transmitidos através dos compartilhamentos democráticos. Pensar em modos de evangelização nas inter-relações com as tecnologias é uma demanda que precisa ser discutida, pois envolve o ser humano e o exercício reflexivo de mobilizar conhecimentos com o outro, como uma formação aberta aos sujeitos, que diminui as barreiras impostas pelo tempo e espaço, expandindo as possibilidades de compartilhar experiências.

2 UMA ANÁLISE SOCIAL DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS

As recentes transformações da sociedade propiciadas pela familiarização com as tecnologias digitais atingem todo âmbito social, político, econômico, cultural e religioso, criando novas exigências que alteram as percepções estabelecidas. Discorrer sobre as tecnologias nos faz pensar sobre a própria evolução humana, pois as TDIC são também responsáveis pelas mutações que transformam os modos de lidar com problemas e situações diárias, além de provocar mudanças nas formas de sentir, pensar e agir. Numa constatação sociológica, a presença das tecnologias causa transformações sociais em decorrência da velocidade das informações e dos processos de globalização e do aprimoramento tecnológico, que negligencia, muitas vezes, os questionamentos sobre os objetivos, os rumos e os sentidos da vida. A partir do momento em que uma sucessão de criações possibilitou a conexão digital entre as pessoas nas redes, os costumes e as práticas sociais sofreram modificações de hábitos concebidos inclusive através da instrumentalização da comunicação nas comunidades virtuais.

O acesso às redes no exercício de aprender juntos e em comunhão está correlacionado aos diversos âmbitos sociais em razão de que estamos numa sociedade tecnológica e global, além de possuirmos rápida atração e intimidade com os artefatos digitais que vão surgindo, tornando-se quase imprescindíveis na vida do ser humano. No entanto, ainda é necessário que estejamos aptos para participar e comunicar de uma experiência comum, visto que a tecnologia ainda não é algo democratizado em toda a sociedade brasileira, dependendo da região em que a pessoa se encontra.

Alicerçados na perspectiva de modernidade liquida[3], de Zygmunt Bauman, vivemos em uma sociedade marcada por ilimitadas possibilidades de escolhas, ausência de solidez, bem como de incertezas, caracterizada por uma lógica do presente, do consumo e dos desejos, que são constantemente restauráveis. O aprendizado das pessoas também acontece num processo provisório, portanto, líquido, sendo necessário permanecer constantemente em busca de sua atualização nas virtualizações dos conhecimentos tecnológicos. Sobre a virtualização[4],

 

Certamente nunca antes as mudanças das técnicas, da economia e dos costumes foram tão rápidas e desestabilizantes. Ora, a virtualização constitui justamente a essência, ou a ponta fina, da mutação em curso. Enquanto tal, a virtualização não é nem boa, nem má, nem neutra. Ela se apresenta como o movimento mesmo do “devir outro” – ou heterogênese – do humano. Antes de temê-la, condená-la ou lançar-se às cegas a ela, proponho que se faça o esforço de apreender, de pensar, de compreender em toda sua amplitude e virtualização.

Enquanto dispositivo tecnológico, o espaço virtual com a utilização de diversos recursos inovadores pode democratizar o acesso ao conhecimento, mas, sobretudo, possibilita o diálogo aberto, o agir coletivo e a interação entre os sujeitos, partindo de uma compreensão articulada com a vida para a transformação social. Assim, a esfera virtual pode ser importante para uma concepção reconstrutiva dos saberes e para a integração do pensar coletivo. No entanto, o virtual e a tecnointeração não são suficientes, surgindo a necessidade de uma relação intersubjetiva e emancipatória, que se manifesta na construção do pensar crítico dos sujeitos com as tecnologias. A partir de um cenário tecnológico dinâmico, inconstante e complexo, a humanidade precisa buscar novos sentidos de compreensão, enxergando para além das superfícies das interfaces digitais.

O cúmulo da cegueira é atingido quando as antigas técnicas são declaradas culturais e impregnadas de valores, enquanto que as novas são denunciadas como bárbaras e contrárias à vida. Alguém que condena a informática não pensaria nunca em criticar a impressão e menos ainda a escrita. Isto porque a impressão e a escrita (que são técnicas!) o constituem em demasia para que ele pense em apontá-las como estrangeiras. Não percebe que sua maneira de pensar, de comunicar-se com seus semelhantes, e mesmo de acreditar em Deus [...] são condicionadas por processos materiais[5].

 

Por ocasião da falta de conhecimento diante da popularização dos meios tecnológicos e suas rápidas mudanças e interrogações, Lévy (1993) destaca que muitos sujeitos preferem apenas efetuar críticas sobre a técnica, do que investir em estudos que visam o entendimento e o esclarecimento, para então propor novos rumos para a humanidade. Lévy ainda nos afirma que, “devemos aceitá-lo como nova condição. Temos que ensinar nossos filhos a nadar, a flutuar, talvez a navegar”[6]. Nesse sentido, a ideia de cibercultura, proposta por Pierre Lévy (2000), atinge diversas áreas humanas (política, socioeconômica, cultural, religiosa e outras) nos convidando a ressignificar a sociedade, entender o mundo e interrogá-lo, na tentativa de encontrar respostas para a melhoria da vida humana. Para tanto, é preciso romper com os preconceitos de que a comunidade virtual surgiu para destruir o mundo real e as capacidades do ser humano.

É neste processo que a cultura digital está inserida e vai sendo caracterizada ora como libertadora, por ocasião da facilidade de acesso tecnológico, ora como desorientada e superficial, pela falta de um pensar para além da lógica unificadora (que neutraliza as lutas vitais de diferenciação ética) e no sentido de um diálogo de reconhecimento recíproco dos modos de habitar o mundo. A sociedade digital é uma comunidade complexa que demanda orientação nas relações de poder vigente para impulsionar a vida. Com o passar dos anos, os discursos colocados em circulação também se deslocam conforme as características e imperativos de representação das pessoas, assim como o tempo de atenção e concentração entre as pessoas se torna cada vez mais inconstante. Neste quesito, estaríamos diante de uma geração intercambista, visto que os interesses em seus diversos âmbitos estão modificando constantemente.

Através de uma postura crítica e de contracultura ao mercado surgem os teóricos da Escola de Frankfurt, apontando críticas a esse sistema ideologizante, limitante de interpretações isoladas, alienantes e de condutas inadequadas, cujas configurações provêm das mídias culturais. Adorno e Horkheimer afirmam que “o cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem”[7]. Para tanto, a indústria cultural orienta o consumo de seus produtos, mantém, moderniza e investe nas mídias, fazendo uso das mesmas como caminho de transmissão de seus interesses à atual configuração das subjetividades e das condutas que conduzirão a própria vida. Pela diversão e entretenimento determinam a vida das pessoas, apresentam uma nova vida possível (utópica e irreal), que enfraquece as experiências compartilhadas pelo vazio de adequação ao mundo de ativismos práticos. Aquele que destoa ou não se mostra integra ao padrão de vida estipulado, é renegado e excluído socialmente, já que vive à margem da cultura funcionalista das grandes massas. Desta forma, “quem não se adapta é massacrado pela impotência econômica que se prolonga na impotência espiritual do isolado. Excluído da indústria, é fácil convencê-lo de sua insuficiência”[8]. Portanto,

Na indústria cultural, o indivíduo é ilusório não apenas por causa da padronização do modo de produção. Ele só é tolerado na medida em que sua identidade incondicional com o universo está fora de questão. Da improvisação padronizada no jazz até os tipos originais do cinema, que têm de deixar a franja cair sobre os olhos para serem reconhecidos como tais, o que domina é a pseudoindividualidade. O individual reduz-se à capacidade do universal de marcar tão integralmente o contingente que ele possa ser conservado como o mesmo[9].  

O sistema hegemônico que está por trás da indústria cultural é o mercado, que ao ditar os estilos de vida, através da manipulação cultural condiciona as subjetividades conforme as necessidades fabricadas. No contexto da educação, aprisiona as relações sociais a uma cultura mercadológica da informação atrelada a uma servidão. Segundo Adorno e Horkheimer, “a propaganda manipula os homens; onde ela grita liberdade, ela se contradiz a si mesma. A falsidade é inseparável dela”[10]. Outro elemento presente nos meios tecnológicos é a homogeneização das consciências por meio dos conteúdos propagados, dando prioridade para o sensacionalismo, o chocante e sem mencionar as contradições e a historicidade das problemáticas sociais. Isso acontece porque os meios de comunicação de massa nasceram e cresceram enraizados no processo de industrialização, que vem ocorrendo desde o século XIX. Em meados do século XX, o capitalismo criou premissas para uma sociedade consumista fortemente alicerçada pelas mídias. Esta lógica de mercado não só passou a ditar as tendências a serem consumidas, mas também o modo de pensar e agir humano na vida em sociedade, provocando uma forma de normatização da pessoa por meio da ditadura de certezas.

3 TECNOLOGIAS E EVANGELIZAÇÃO: REFLEXÕES

Neste tópico, observaremos as tecnologias com características de domínio ideológico exercido pela hierarquização e homogeneização, mas que conservam potencialidades para um agir coletivo e dialógico. Desde que seja norteado pelo aprender a pensar os enunciados que são divulgados no ciberespaço, o que implica esforço e envolvimento pela troca recíproca, autocriação e resistência. Torna-se imperativo o diálogo entre os interlocutores para atingir um consenso sobre algo a ser discutido, visto que algumas temáticas e posturas eclesiais geram grandes debates e discussões agressivas nos meios tecnológicos. Por isso, é necessária uma comunicação não instrumentalizada, mas de abertura ao diálogo com o outro, indispensável para obtenção do consenso e para a revisão constante das posições eclesiais, implicando em um compromisso constante e investigativo das práticas sociais. Rodrigues e Freitas afirmam que, “as tecnologias geradoras da sociedade digital não são capazes de garantir a autenticidade da mensagem cristã, de que a Igreja é depositária”[11], pelo fato de que as tecnologias são invenções humanas. “A mensagem de Cristo, embora utilize mediações humanas, faz com que a sua sacramentalidade nunca possa confinar-se apenas aos instrumentos digitais, antes postule relações crentes e quentes numa comunidade humana congregada pela fé”[12].

Conforme Lévy, “a circulação de informações é, muitas vezes, apenas um pretexto para a confirmação recíproca do estado de uma relação”[13], pois na articulação comunicativa é a dialética da intercomunicação que se coloca em questão, as intencionalidades discursivas, transformando os sentidos e os contextos. Para Rodrigues e Freitas, “comunicar bem é fundamental para o cristianismo. Sem comunicação – nas suas múltiplas expressões – não existe anúncio e sem anúncio não existe encontro com Cristo”[14]. Essa questão tem gerado debates ambíguos, pois de um lado, a tecnologia é apresentada como fantástica ferramenta para ampliação da atividade democrática e de propagação da fé, considerada ainda como potencial para uma revolução na inteligência coletiva. Pierre Lévy (2000) entende a cibercultura na perspectiva de uma economia colaborativa em rede. Por outro lado, o aparato tecnológico é compreendido dentro de um contexto com base em interesses fundamentalmente capitalistas e ideológicos, sustentado pela teoria crítica, em que a indústria cultural além de fornecer a desapropriação da habilidade de pensar, influencia a vontade dos sujeitos, a tal ponto de bloquear a disposição crítica de almejar e de eleger o melhor para si.

As reflexões sobre a experiência da fé e a propagação da evangelização nos meios tecnológicos é uma demanda contemporânea e necessária, pois a vivência da fé cristã se caracteriza ao pertencimento a comunidade eclesial, já nas relações tecnológicas, a dimensão da comunidade contextual e do comprometimento é inexiste. Para Rodrigues e Freitas, “a pergunta não é ‘como estar presente no mundo digital?’ mas antes ‘como viver bem neste mundo?’. O plano digital é um dado assumido, harmonicamente integrado com as mais diversas dimensões do quotidiano”[15]. A rápida transmissão ideológica oprime as percepções para induzir ao consumo, não existindo possibilidade de avaliar outras alternativas. No ciberespaço as fantasias onipresentes recebem espaços fascinantes de uma sociedade progressivamente individualista e fragmentada, de leituras unilaterais e de entendimentos equivocados. É nessa perspectiva que, conforme Rodrigues e Freitas, a catequese tem como “desafio romper o círculo da individualidade, do anonimato e da assepsia espiritual, que o digital mal entendido pode ser usado para legitimar, como se estas fossem as caraterísticas que definem a sociedade digital”, sendo necessário “reassumir, talvez com mais afinco, a transcendência como núcleo central de toda a experiência viva de religiosidade e espiritualidade”[16].

A propagação da evangelização nos meios tecnológicos ainda traz o individualismo como característica recorrente. A utilização das tecnologias em prol de uma melhor formação pessoal através da evangelização é uma realidade distante, necessitando mais esforços de pesquisas e de posições eclesiais e teológicas. Mas, na fé cristã, o envolvimento com as tecnologias pode corromper a liberdade do sujeito, no sentido de viver um isolamento solipsista? Ou no ciberespaço reside possibilidades de interação e estimulação da própria fé? Embora no ciberespaço exista um deslocamento espacial dessa experiência, distanciando de uma comunidade física e real para uma experiência de comunidade que acontece apenas na virtualidade, em contrapartida, permite a formação de comunidades mais abrangentes e globais. Esta nova formação comunitária eclesial pode se dar no sentido de que, por exemplo, as pessoas podem assistir a uma celebração que está sendo transmitida a longas distâncias e encontrar neste espaço virtual um potencial de encontro de fé.

Nesse sentido, o modo de vivenciar a fé mesmo com pessoas distantes, na virtualidade da comunicação, não precisa ser conjecturado enquanto nulidade da experiência da fé cristã, pois as possibilidades interacionais nos oferecem uma nova compreensão de comunidade eclesial. O sentido de comunidade de fé não se extingue enquanto uma experiência de fé isolada ou individualista, pois além de participar de uma comunidade eclesial virtual nela é possível compartilhar e vivenciar a vida com outras pessoas. O fiel nas tecnologias virtuais, assim como acontece numa experiência real, busca nas comunidades de fé um elemento a mais para atribuir sentido vital, não mais em igrejas de pedras, mas na vasta igreja que se faz presente e atuante no ambiente virtual. Certamente, há mudanças nas formas de vivenciar a fé nos tempos atuais e virtuais. Ora, se com a convivência é possível ver, ouvir e ser tocado pelo mistério divino, por que estas mesmas dimensões não podem ser vivenciadas e sentidas por meio do ambiente virtual? João Paulo II (Encíclica Redemptoris Missio, n. 37, p. 63), referindo-se às mídias que estão presentes nas sociedades, afirmou que elas representam o “principal instrumento de informação e de formação, de guia e inspiração dos comportamentos individuais, familiares e sociais”. 

No entanto, é necessário ter um olhar crítico em relação aos conteúdos disponibilizados, às imagens que são consideradas como linguagem visual, que tem grande capacidade de fascínio e de rápido acesso e sucesso. Isso acontece devido ao ritmo de vida acelerado do ser humano e surge do cansaço e da diminuição de tempo disponível para leituras, favorecendo o menor esforço possível para a comunicação. Nas redes sociais encontramos informações descontextualizadas, superficiais e repetitivas, que servem ao entretenimento e divulgação das próprias atrocidades humanas. A linguagem imagética faz com que questões complexas sejam coisificados, permanecendo em sigilo as origens das causas, seja de realidade religiosa, política, cultural, social, político e econômico.

Os espaços criados nos artefatos tecnológicos para reflexões religiosas acabam recebendo uma abordagem que busca a repercussão de assuntos para criar escândalos, sem a confirmação de sua veracidade e recebendo um caráter informativo, emotivo e fantástico. A Igreja nestes meios tecnológicos é vista como espetáculo, deixando de lado as características da vida cristã que precisam ser destacadas, como a experiência da fé, a oração constante e as ações de caridade. Nessa perspectiva, a proclamação do Evangelho não se trata apenas da transmissão de informações, mas de comunicação com o transcendente, fazendo com que a evangelização se torne linear, tendo uma preocupação com intencionalidades voltadas aos índices das audiências, restringindo seu papel a um produto de consumo. Portanto, estamos num período de complexas teias de relações globais e mudanças, que marcam o nosso tempo e são viabilizadas pelas formas de comunicação conduzidas pelas tecnologias. Neste universo de novas possibilidades e de separação de espaço e tempo, tais mecanismos de desencaixe promovem a irreflexividade da própria vida, por isso, a igreja também acaba sendo influenciada e conduzida para transformações que já estão visíveis no dinamismo social. Identificamos com o estudo os novos desafios enfrentados pela igreja, pois estamos em um mundo sem fronteiras no sentido da fé, onde o sujeito é tolhido e confrontado até em suas bases ontológicas, postas em xeque e rearranjadas no espaço virtual, de múltiplas relações globais.

O perigo maior reside na possibilidade da mensagem cristã ser deturpada, colocando outras verdades de fé através de imagens. Conforme Trevisan, “o culto da imagem faz com que diariamente sejamos bombardeados por imagens de todos os tipos, formas e cores, que produzem uma mudança na maneira como nossas sensações percebem o real”[17]. A linguagem por meio das imagens tem potencial de distorcer a integridade das questões, pois à medida que nos deparamos com as imagens, sem uma pré-compreensão crítica acabamos por aceitar a realidade e o conteúdo representado, sem a existência do discernimento crítico e de consultar a veracidade das coisas. “A cultura imagética pressupõe, certamente, a impossibilidade de se trabalhar com a ideia de modelos ou referentes sólidos, operando com imagens, silhuetas ou simulacros de um real distante de um possível espectador”[18]. Ora, as imagens permitem que as pessoas acessem uma espécie de conhecimento direto, tornando-se “um mesocosmo ou ponto intermediário dentro de um esquema platônico, fazendo a relação entre o mundo sensível e o inteligível”[19].

As imagens midiáticas, descontextualizadas e com elementos da imaginação humana, quando usadas com finalidade de entretenimento, mesmo as temáticas religiosas e de evangelização cristã podem ser recebidas apenas como informações, perdendo a premissa da escuta atenta ao Evangelho e a realização de um compromisso fiel com o próximo. Não se questiona nesta questão o impacto positivo através das imagens, mas se questiona a repercussão de cunho religioso na vida do ser humano e se percebe uma contrariedade com a proposta da fé cristã. Nos meios midiáticos, a dimensão econômica ganha destaque devido ao alto custo das emissões, destacando patrocinadores que apenas tenham interesses por uma massa cada vez maior de consumidores, para que exista um retorno dos investimentos realizados, culminando no sucesso de venda dos produtos propagandísticos. Esta questão é facilmente perceptível nos índices gigantescos de audiência, influenciando na mentalidade das pessoas tornando como legado uma censura camuflada, havendo uma supervalorização do consumo enquanto aparência estrutural dos valores humanos, identidades e corações. E assim, tudo acaba se transformando com o tempo em objetos de consumo, inclusive a imagem de Deus e de ser humano.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que a vivência da fé na modernidade se constrói de forma fragmentada por meio das mídias, pois não se almeja a totalidade da fé cristã voltada para a alteridade mas supervalorizada no eu. É nesse sentido que percebemos que a fé vivida pela grande maioria dos cristãos não é suficientemente comprometida com o testemunho do Evangelho porque carece de referenciais básicos de discernimento das tecnologias. O ciberespaço supervaloriza o show do eu e a satisfação de necessidades pessoais por meio de expressões da fé consumidas, em termos de milagres e shows religiosos. A centralidade humana contradiz a construção do Reino de Deus que preza a alteridade, gerando a falta de esperança, a desilusão, a crise de sentidos de vida e a depressão que caracteriza as pessoas, pois elas não bastam por si próprias e são interdependentes do contato com outras pessoas e com o divino.

Por ocasião das tendências instrumentalizadoras da realidade e das questões cristãs, torna-se improvável a potencialização da fé nos meios tecnológicos enquanto não existir mudanças substanciais, pois assim corremos o risco de deturpar a mensagem religiosa. Dada a importância que as TDIC vêm assumindo nas instâncias sociais e também eclesial, é necessário (re)aprender e criar novos pressupostos e meios para a evangelização da fé cristã. O importante é que o anúncio do amor de Deus para a humanidade seja captado como interpelação à libertação das pessoas, pois a adesão ao cristianismo requer uma mudança radical de vida. A finalidade deste processo comunicativo é conduzir o ser humano para uma experiência que seja salvífica, plenificadora e significativa. No entanto, este intuito nem sempre é testemunhado e experienciado nos espaços virtuais, pelo contrário, observamos fragilidades das relações interpessoais de posse e crises existenciais guiadas por esperanças utilitaristas, jamais satisfeitas.

Concluímos que os meios tecnológicos não são um fim em si, como algo neutro, mas uma fonte de possibilidades para estímulos de atitudes cristãs, pois nos novos espaços sociais constituídos pelo ser humano. O ciberespaço nos abre um novo campo extenso como nunca presenciado para a proclamação da fé cristã. Nesse sentido, as possibilidades tecnológicas precisam ser levadas em consideração para a evangelização, pois toda a cultura está fortemente ligada às tecnologias. O cuidado reside para essa nova forma de evangelização não sofra deturpações e mutações, o que muito bem a indústria cultural é capaz de fazer.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

ADORNO, Theodor W. Indústria Cultural e Sociedade. 5. ed. Trad. Juba Elisabeth Levy. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

HABERMAS, Jürgen. Passado como futuro. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Redemptoris Missio. 7. ed. São Paulo: Paulinas, 2005.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2000.

LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência: O Futuro do Pensamento na Era da Informática. São Paulo: Editora 34, 1993.

RODRIGUES, Luís Miguel Figueiredo; FREITAS, Tiago André Fernandes. Catequese para nativos digitais. THEOLOGICA, 2ª Série, 47 (2), 2012. Disponível em: < http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/9902/1/Catequese%20para%20nativos%20digitais.pdf> Acesso em: 10 de maio 2017.  

TREVISAN, Amarildo Luiz. Pedagogia das Imagens Culturais. Da formação cultural à formação da opinião pública. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.


[1] Entendemos aqui por evangelização a ação religiosa usada pela Igreja católica para revelar e comunicar aos homens os acontecimentos de Cristo, a fé da Igreja, a realidade e a força de encontrar na fé o entusiasmo para revitalizar a dimensão humana e histórica da salvação por meio da fé.

[2] HABERMAS, Jürgen. Passado como futuro. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993, p. 94.

[3]Bauman (2001) destaca que a modernidade está num período de privatização, individualização e de consumismo, ocorrendo um desvinculamento das relações de poderes e um derretimento das tradições, viabilizando uma ruptura entre a construção individual e a construção política da vida em sociedade.

[4] Lévy, Pierre. As Tecnologias da Inteligência: O Futuro do Pensamento na Era da Informática. São Paulo: Editora 34, 1993, p. 11.

[5] Ibidem, p. 15.

[6] LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 15.

[7] ADORNO, Theodor W. Indústria Cultural e Sociedade. 5. ed. Trad. Juba Elisabeth Levy. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p.101.

[8] Ibidem, p.16.

[9]Ibidem, p.128.

[10] Ibidem, p. 2009.

[11] RODRIGUES, Luís Miguel Figueiredo; FREITAS, Tiago André Fernandes. Catequese para nativos digitais. THEOLOGICA, 2ª Série, 47 (2), 2012, p. 628.

[12] Ibidem, p.629.

[13] LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência: O Futuro do Pensamento na Era da Informática. São Paulo: Editora 34, 1993, p. 21.

[14] RODRIGUES, Luís Miguel Figueiredo; FREITAS, Tiago André Fernandes. Catequese para nativos digitais. THEOLOGICA, 2ª Série, 47 (2), 2012, p. 627.

[15] Ibidem, p. 622.

[16] Ibidem, p. 628.

[17] TREVISAN, Amarildo Luiz. Pedagogia das Imagens Culturais. Da formação cultural à formação da opinião pública. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002, p.22

[18] Ibidem, p.114.

[19] Ibidem, p.63. 

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