A volta do humanismo nas escolas e nas salas de aula
Santiago, 18/03/2005 – A Unesco lançou no Chile um apelo aos governos e à sociedade civil para que retomem o sentido humanista da educação e da cultura. O objetivo é estabelecer políticas concretas que cheguem às salas de aula. Com essa aspiração aconteceu o encontro internacional “Sentidos da educação e da cultura: desenvolver a humanidade”, que começou na quarta-feira em Santiago com uma reunião aberta a todo o público, e que continuou com um workshop para especialistas em Valparaíso, 120 quilômetros a oeste da capital chilena, na quinta-feira e nesta sexta-feira. Na visão da Unesco, diante da crise de sentido que afeta a educação é preciso recuperar o enfoque humanista como principal orientador das políticas públicas dos Estados na matéria.
O encontro foi organizado pelo Escritório Regional de Educação da Unesco para a América Latina e o Caribe (Orealc); pelo Conselho Nacional da Cultura e das Artes e pelo Ministério da Educação do Chile, com o patrocínio da embaixada da França e a colaboração da Universidade do Chile. Foram expositores Luc Ferry, ex-ministro da Educação da França; Roberto Carneiro, filósofo e acadêmico português; o filósofo espanhol Fernando Savater, que fez uma videoconferência desde Madri, e Humberto Maturana, ganhador do Prêmio Nacional de Ciências do Chile, entre outros especialistas. Os painéis temáticos abordaram os problemas da geração, distribuição e uso do conhecimento na era global e os desafios que a educação enfrenta em relação a participação, diversidade, equidade e desenvolvimento social.
Com a globalização como pano de fundo, e no contexto das vertiginosas mudanças experimentadas pela sociedade, a educação deve procurar sujeitos autônomos para ter um desempenho em complexos cenários, segundo participantes do encontro. Foi dito que o desafio da educação é articular o conceito de “cidadão do mundo”, com linguagem global e patrimônio universal, e o de “cidadão local”, com linguagem e patrimônio próprios. A globalização aproxima os povos, mas sua grande desvantagem é a “hegemonia de algumas culturas que tendem a ofuscar as demais, motivo pelo qual deve-se buscar um equilíbrio para que não ocorra um consumo passivo do que vem dos grandes, mas que exista um intercâmbio”, disse à IPS a escritora de livros infantis brasileira Ana Maria Machado.
Dentro da diversidade de políticas adotadas pelos países latino-americanos para fortalecer as culturas locais, “começa a existir uma consciência do importante que é aproveitar com criatividade as instâncias da globalização” reconheceu a escritora. A também brasileira Maria Luiza Machado, diretora da Orealc, assegurou que já não é suficiente proporcionar as competições básicas às crianças e aos jovens de hoje, sendo necessário prepará-los para exercer a soberania e trabalhar pela democracia e a paz. Por isso, é necessário ampliar os espaços de aprendizagem para a ética, filosofia, artes e a “própria vida”, porque conhecimentos e aprendizados que se multiplicaram ainda não chegam à escola. O desafio é conseguir uma educação a serviço das relações humanas, acrescentou.
Nesse sentido, o ex-ministro da Educação da França (2002-2004) e palestrante convidado Luc Ferry disse á IPS que é preciso “fazer uma reflexão profunda sobre justiça social, educação, igualdade, eqüidade, bem com sobre o trabalho da mulher, a comunidade e a religião”. O ministro da Cultura e Artes do Chile, José Weinstein, propôs romper o marasmo em que, acredita, se encontra a educação. “Não queremos que o sistema escolar se torne auto-referente, mas que olhe a sociedade, a humanidade, em suas diferentes dimensões e estabeleça pontos com todos os setores”, afirmou. A arte “é necessária para que o sistema escolar possa cultivar a humanidade e a identidade comum, porque os artistas nomeiam, pintam ou cantam o próprio”, explicou.
O afastamento da arte do cidadão ficou clara no Chile em uma pesquisa feita pelo Ministério da Cultura, segundo a qual somente 40% dos habitantes de Santiago entrevistados disseram ter lido um livro em 2004. Dos adultos de nível sócio-econômico baixo, apenas 6% foram ao cinema no ano passado. Álvaro Marchesi, assessor do Instituto de Avaliação e Assessoramento Educativo e professor da Universidade Autônoma de Madri, la laguna e Salamanca, propôs uma estratégia para humanizar a educação, que inclui valorizar os professores, combater a segregação escolar e, principalmente, mudar o estilo escolar para a narrativa, com uma hora de leitura diária.
Ana Maria Machado destacou que a narração guarda a memória e a sabedoria, e constitui uma barreira para o esquecimento. “Ler histórias alheias amplia as experiências, incorpora à nossa consciência diferentes níveis de vida, se reconhece obstáculos, analisamos as dificuldades e a forma de superá-los”, argumentou. Por isso, a escritora espera que a proposta da Unesco “se traduza em políticas concretas, porque a grande saída para os impasses existentes na educação no mundo de hoje é a valorização do humano e a integração entre os diferentes setores da cultura, especialmente a narrativa”.
Além de lamentar a perda de liderança da Unesco no sistema educacional, Araceli de Tezanos, pesquisadora do Instituto de Pedagogia da Universidade de Antióquia, na Colômbia, disse à IPS que essa instituição “havia conseguido um processo de codificação de conceitos utilizados nas escolas e na formação de professores que permitia diálogos enriquecedores entre diferentes formações sociais e culturais”. A partir de sua experiência de professora primária no Uruguai e professora universitária na Colômbia e no Chile, Araceli enfatizou que “não se pode educar sem pensar que esses rapazes e moças são seres humanos, com diferentes modos de pensar e visões de mundo, mas que a escola os integra a um conceito cultural mais amplo”.
A educadora pediu a retomada das diretrizes educacionais da Unesco dos anos 50 e 60, com “experiências educativas como os sistemas das escolas unificadas rurais ou programas de ensino das ciências que terminaram por falta de financiamento e contribuição dos Estados”. Na opinião de Marchesi, a proposta da Unesco é de longo alcance, e “os governos e seus ministérios a devem traduzir em políticas e programas concretos, aplicáveis pelos professores e transformadores para os alunos, onde cada um cumpra sua missão e assuma suas responsabilidades”, disse à IPS.
O risco destas propostas é ficarem nos discursos teóricos, longe dos “milhões de professores que está lutando junto com seus alunos na sala de aula, e de milhões de pais que também estão lutando junto com seus filhos adolescentes”, acrescentou Marchesi. “Enquanto a sociedade orienta os alunos para a competição, a falta de solidariedade, a segregação, a separação de uns com outros, devemos opor, na prática e na ação, a integração, a solidariedade, os valores e a humanização”, enfatizou o especialista. “É uma contradição permanente na qual devemos viver, mas, na medida em que a sociedade mude, a educação também o fará, e vice-versa”, assegurou. (IPS/Envolverde)